Museum Hours, de Jem Cohen (Áustria, 2012)

maio 5, 2014 em Em Vista, Filipe Furtado

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Formas de olhar
por Filipe Furtado

Estamos no Museu de Arte de Viena. Vemos um guarda (Bobby Sommer) sentado, estático em seu espaço de trabalho, enquanto a banda sonora apresenta uma colagem de sons externos. É este o plano de abertura de Museum Hours, primeiro longa de ficção do documentarista Jem Cohen, e uma carta dos princípios que organizam suas ideias e sua proposta estética: o espaço institucional do museu, o mundo à sua volta, a forma como a arte se relaciona com os dois e as formas como nós nos relacionamos com ambos.

Museum Hours é um filme bastante ambicioso, porém também muito refrescante, justamente pela maneira como lida com uma série de elementos já bastante codificados. Os documentários de Cohen sempre se destacaram pela forma que recorrem, sem culpa, a princípios narrativos externos a eles. Museum Hours, porém, inverte a lógica: há um enredo de ficção – a amizade entre o guarda do plano inicial e uma turista que ele conhece no museu, uma das premissas dramatúrgicas mais essenciais possíveis, reforçada por múltiplos significantes de figuras deslocadas e solitárias que povoam os festivais de cinema – que nos é apresentado por um olhar rarefeito que associamos não só ao filme documental, mas sobretudo ao filme híbrido, tão popular no cinema de festivais contemporâneo quanto seu fiapo dramatúrgico sempre o foi. Mas a forma como Museum Hours articula suas ideias é inseparável da maneira com que dialoga com tal herança.

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Se o híbrido entre documentário e ficção se tornou um dos principais nortes da produção de cinema para festivais desde o aparecimento, no começo da década passada, de No Quarto de Vanda (2000), de Pedro Costa, e La Libertad (2001), de Lisandro Alonso, isso acontece a partir de alguns princípios bem claros de autoficção e de aproximação entre cineasta e personagem. É um sub gênero que progrediu conduzido sobretudo por um desejo de um retorno ao campo, um certo fetiche pelo rústico, e também uma tentativa de se aproximar de o que é popular, sejam tipos, espaço ou costumes. Trata-se, portanto, de uma atualização da parcela mais realista dos cinemas novos da década de 1960, mas que troca a sociologia pela antropologia. Museum Hours causa um deslocamento nesse processo: é um filme híbrido que se aproxima de seu espaço de uma maneira que guarda vários pontos de contato com de outros exemplares do gênero (incluindo a crença um tanto ingênua numa pureza de coisas simples), mas que o coloca em crise justamente por aplicá-lo a um espaço ao qual a princípio ele não pertence: um museu cosmopolita de uma grande cidade europeia. Esse movimento, por si só, desloca e estremece seus sentidos, conferindo-os um estranhamento revigorante. Não deixa de ser muito interessante pensarmos na forma com que o filme lança mão da sua relação com Pieter Bruegel – que se torna o foco central das suas observações sobre arte – e as percepções sobre sua obra e suas qualidades documentais – a certa altura o filme se interrompe para realizar uma palestra sobre o tema – para realizar uma dobra a mais sobre esta ideia.

Pois o feito de Museum Hours é colocar em questão a arte como instituição – e não somente a dos museus. A relação de Cohen com arte sempre primou pela pluralidade (sua entrada no cinema se deu por documentários sobre música, assim como o guarda do filme é, ele próprio, um ex-membro da cena punk rock européia) e, se seus filmes geralmente revelam pouco interesse por códigos já estabelecidos, isto se deve justamente a uma crença na pluralidade de arte e a um tom sempre casual, desinteressado em enquadrá-lo em algum ideal. Em seu passeio pelo Kunsthistorisches e na forma como sua curiosidade aos poucos costura relações variadas entre as obras, expostas ali, e os sons, cores e movimentos à sua volta, Museum Hours permite um olhar mais amplo sobre a instituição-cinema e as várias maneiras que o olhar sobre ele e dentro dele pode se viciar. Daí a importância da maneira com que o filme ao mesmo tempo bebe e se distancia do hibridismo em voga: o ato simples de Cohen é o de desconfiar do olhar dominante ao seu redor. Mesmo as tentativas de buscar um olhar renovado exigem esta desconfiança constante, para que algum frescor possa ser preservado. O risco do academicismo e da acomodação – uma questão de olhar, tanto quanto de estética – estará sempre à espreita. Que o filme reestabeleça esta desconfiança sem, com isso, lançar mão de um decadentismo fácil só aumenta sua grandeza.

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Museum Hours é todo construído através de trocas de olhares e experiências entre o guarda Johann e a turista Anne (Mary Margaret O’Hara), e, por toda a simplicidade da sua trama central, há uma exatidão na maneira com que Cohen traça o seu progresso que garante que ele nunca se reduza a uma simples justificativa dramática de um dispositivo. Se frequentemente o cinema pode assumir um olhar de visitante a passeio, para quem as coisas interessam apenas a certa e funcional distância, aqui radiografamos dois olhares que saem deste estado suspenso inicial e, pelo viés do seu encontro, chegam a um envolvimento muito mais direto, uma caminhada reproduzida pelo próprio cineasta, que não só jamais trabalhara num chave tão próxima da ficção, mas também nunca construíra um registro tão próximo e convidativo. Trata-se de uma tentativa muito bem sucedida de redimensionar o potencial de encantamento do espaço público, como na sequência em que um dos visitantes do museu acidentalmente olha para a câmera de Cohen.

Afinal, é um filme sobre formas de olhar. A câmera de Jem Cohen passeia por rostos e objetos – e, pelo olhar do filme, são todos tratados com equivalência – e aos poucos estabelece uma prioridade específica para tratar cada um deles. É um discurso que se resolve de forma prática no plano, por mais que o filme tenha muitos momentos discursivos. Neste sentido, usa-se muito bem da ocupação de Johann e de como ela o deixa com muito tempo livre para pensar. O desejo é buscar um olhar despojado sobre o museu, seus corredores, obras e visitantes, e dali encontrar um olhar despojado sobre o cinema como um todo.

Museum Hours tem crença nas suas ideias, mas assume que é um filme contaminado pelo seu entorno. O que Jem Cohen busca exprimir, e encontra com sucesso raro, é a passagem do olhar documental objetivo para uma ficção subjetiva, e uma forma de livrar tal negociação do peso institucional do chamado “cinema contemporâneo” e o discurso que o fundamenta. No processo, encontra novas formas de ver e animar as coisas, e, muito mais que a maioria dos seus pares, realmente encontra imagens que, na sua banalidade, nos chegam novas.

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