Cedo Demais / Tarde Demais (Trop Tôt, Trop Tard), de Jean-Marie Straub e Danièlle Huillet (França/Egito, 1982)

setembro 27, 2013 em Colaborações especiais, Em Vista

cedodemais1

Primeira vista
por Dalila Martins (colaboração especial)

É conhecida a anedota dos cercamentos de pastos de ovelha na Inglaterra do século XVII para o fornecimento de matéria-prima às nascentes manufaturas tecelãs: a origem da propriedade privada. Em “Question paysanne en France et Allemagne”, redigida em 1894, Friedrich Engels se pergunta como o Partido Social Democrata poderá ganhar o apoio do campesinato, abrangendo suas causas e reivindicações, se a pauta socialista da abolição da propriedade individual parece conflitar com os direitos de posse da terra e de liberação dos encargos e serviços feudais, conquistados pelos camponeses franceses no final do século XVIII. O esforço do filósofo é esclarecer o falso impasse, demonstrando que, apesar de possuírem a terra, os camponeses se endividavam para conseguir trabalhá-la. Haviam perdido a proteção e o usufruto da associação de marca auto-administrada, anteriormente comum. Assim, mantinham-se privados dos meios de produção e estavam fadados à proletarização na medida em que o campo se tornava um adendo das cidades industrializadas, tal qual as imagens do interior francês relegado à beira de estradas, apresentadas em panorâmicas, planos fixos ou captados de veículos em Cedo Demais / Tarde Demais (1982), de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet. Pois é justamente ali onde o filme se detém: cerne da instituição de propriedades, do estabelecimento de limites, e da privação inerente a esse processo.

cedodemais2

O leitmotiv está delineado: os camponeses se revoltam cedo demais e chegam tarde demais para assumir o poder. Isso ocorreu durante a Revolução Francesa e durante a Revolução Egípcia de 1952, os casos contemplados pela obra díptica. Ordena-se, portanto, um espaço de recalque permanente e seu mapeamento acontece não apenas por meio do teor dos textos lidos em voz over, verbalizações explícitas da temática campesina – uma carta de Engels a Karl Kautsky, datada de 20 de fevereiro de 1889, em que as mazelas agrárias precedentes a 1789 são contabilizadas, e o posfácio de “Lutte de classes en Egypte de 1946 à 1968”, escrito por Mahmoud Hussein em 1969 – mas também pela peculiar releitura de um documento do cinema de origem, A Saída dos Operários das Fábricas Lumière (1895), aludido na seção B, em uma sequência que dura a exata extensão de um rolo de 16mm, na qual operários egípcios deixam seu local de serviço ao fim de uma jornada. Ora, há de se perguntar o porquê da inserção de uma paisagem fabril em um filme rodado, em sua grande maioria, fora dos grandes centros urbanos e, ainda, por que esse ambiente foi registrado de maneira similar ao cânone do primeiro cinema. Todavia, não se trata de requentar antigas fórmulas ou de testar aplicações normativas, traçando filiações para o pretenso estabelecimento de um significado único que explique a citação, e sim de compreender como a obra contém em si os dilemas históricos, de como seu conteúdo referente à tradição está sedimentado em forma através de núcleos que resistem à comunicação absolutista e totalitária – seus pontos de fuga – e que, sendo assim, sua montagem é curso que se desenvolve nos intervalos e continua a se revolver a cada exibição.

fabricalumiere1

A Saída dos Operários das Fábricas Lumière (1895), Louis Lumière

Comecemos pelo início. O que na vista primordial discorria acerca deste lugar da emergência de determinações e consequentes separações? Na tentativa de decifrar o mistério Lumière no capítulo de abertura de “O Olho Interminável – cinema e pintura”, Jacques Aumont se afasta da questão do empreendimento do dispositivo – o cinematógrafo – para encontrar uma estética de matrizes pictóricas no conjunto dos filmes denominados “vistas”. Para tanto, ele destaca dois pontos de discussão: o efeito de realidade e o quadro. Mais tarde, veremos como a citação de Straub-Huillet faz cada um desses pontos influir no outro, não obstante, por agora, concentremo-nos no enquadramento. Enquadrar nada mais é do que limitar um campo de visão, definindo um fora-de-campo.

“Se o campo é a dimensão e a medida espaciais do enquadramento, o fora-de-campo é sua medida temporal… O fora-de-campo como lugar do potencial, do virtual, mas também do desaparecimento e do esvaecimento: lugar do futuro e do passado, bem antes de ser o do presente” (Aumont).

Um cedo e um tarde, portanto. Mas quando esses cedo e tarde se tornam demasiados? Com a consolidação do cinema hollywoodiano, o quadro viria a ser o conformador do imaginário, o instaurador da ficção, jogando com o campo e com o fora-de-campo ao narrar histórias e transformando o antecampo – posição daquele que enquadra – em tabu, isto é, coroando a cisão entre o sujeito que filma e o objeto filmado. Para Aumont, o que ocorre nas vistas panorâmicas do catálogo Lumière é, contrariamente, uma fragilização dessa fronteira; os elementos da futura linguagem cinematográfica ainda maleáveis e carentes daquela repetição formadora notada por Luc Moullet. Nesse sistema gerido pela polaridade arbítrio-aleatoriedade, as barreiras erigidas entre sujeito e objeto fílmicos não são rijas, ambos permanecendo marcados por sua origem comum no real. Em decorrência, seus enquadramentos são personificações de pontos de vista, o que não deixa de se configurar como desmesura, uma vez que o cinematógrafo tinha limites claros em possibilitar a visualização do quadro para o ajuste fino do cinegrafista. Conquanto, é nesse ilusório contrassenso do ponto de vista como ponto cego que repousa o foco de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub. Se de fato a percepção visual do cinegrafista coincide com a vista daquilo que é registrado na película, o casal parece, então, apontar para o paradoxo realista da concordância entre Louis Lumière e seus empregados: uma fissão de classes – ato que libera energia com violência pela instabilidade de um núcleo.

cedodemais1

Entretanto, a referência à Saída dos Operários das Fábricas Lumière não se resume a essa denúncia externalizante, afinal, o casal não insere a obra como material de arquivo, mas opta por refilmá-la. Retomar o ponto de vista; escolher a distância justa para que não haja interferência no fluxo dos trabalhadores, para que a câmera não intimide, mas capte o movimento cotidiano; colocar-se no alvo da crítica, olhando e observando o olhar em retorno; reconstruir o documento e medir seus valores histórico e formal (a saída ainda acontece? De que maneira?). Diferenças incorrem, evidentemente. No Egito, não há mulheres deixando o expediente, apenas homens, muitos de túnica, alguns de calças compridas à moda ocidental. Vemos cores, ouvimos o som direto do apito da fábrica e a saída ocorre sem ser dirigida – muitos param, encarando a câmera. Já o filme de Lumière é silencioso, em tons de cinza e repleto de mulheres em seus saiotes, ensaiando o movimento apressado. O que há de comum, além das bicicletas que deslocam e da arquitetura que baliza? Do jogo contemplativo resulta uma triangulação de referências ao redor de um centro reprimido: o que une Straub-Huillet a Lumière e aos operários não é uma vista naturalizada de um hábito, e sim o ato da produção, insistentemente mantido às escuras ao longo da história do cinema. No texto “Workers leaving the factory”, a partir da análise de alguns filmes de ficção, documentário e noticiário que serviram de material de arquivo para uma instalação homônima, Harun Farocki conclui que o cinema tendeu a desenrolar suas narrativas após o expediente e que, mesmo na vida real, os conflitos sociais, usualmente, não se dão no local de trabalho:

“When the Nazis crushed the labor movement in Germany, they did so in apartments and neighborhoods, in prisons and camps, but hardly ever in or in front of factories. Although many of the worst acts of violence this century — civil wars, World Wars, reeducation and extermination camps — have been closely linked to the structure of industrial production and to its crises, nevertheless most took place far away from the factory setting”.

Straub-Huillet tocam, portanto, a ferida da cinematografia, o antecampo oprimido, terreno da incomunicabilidade: o trabalho alienado. Nas palavras de Serge Daney: “O que falta? O trabalho dos homens e os homens no trabalho. E o que há para entender? Sempre a mesma coisa: os homens criam os deuses (ou os operários, os patrões; os atores, os espectadores) e em troca os deuses os despossuem de seu mundo, os transformam em estrangeiros para eles, os alienam. Porque se trata de fato de alienação e de reapropriação, de experiência e de má consciência, de toda uma problemática existencialista à qual se liga o cinema dos Straub”.

Uma vez nomeado o enigma, faz-se necessária a volta ao porquê da sequência da fábrica ter sido montada em meio a paisagens interioranas, naturais. O que a segunda natureza tem a ver com a primeira? Por que algo da esfera da construção encontra o reino do acaso e da necessidade? Primeiramente, há de se apontar uma pregnância da figura humana em todos os planos de Cedo Demais / Tarde Demais, ainda que ela não esteja presente visivelmente. Os campos retratados foram cultivados por camponeses e são indício de suas lutas e condições. Do mesmo modo que cada árvore, cada punhado de terra e cada sopro de vento resiste às mãos do Homem, cada uma dessas substâncias da Natureza é testemunha da resistência humana a seu próprio sistema de leis – o mal-estar da civilização.

cedodemais3

Isso posto, volta-se à peculiaridade das vistas Lumière, a precariedade de seu regimento. Quando os limites da cinematografia ainda não estavam demarcados, o aparente disparate do real ficcionalizado para a geração de efeitos de realidade era uma prática (com ênfase no sentido de técnica) corrente (com ênfase no sentido de movimento). Isto é, a ordem para as trabalhadoras exagerarem suas passadas e seguirem seus rumos sem reparar na câmera de nada incomodava enquanto concepção do registro de um fim de jornada qualquer, pelo contrário, era compreendida como traço de impecabilidade – o típico valor burguês cunhado por Aumont, responsável pelo cinema se afastar da herança das feiras de curiosidades e se aproximar da arte, ainda que uma arte menor, aquela dos pompiers revivalistas, pintores de Academia que retomavam temas e formas clássicas. Dialeticamente, em toda sua produção, Jean-Marie Straub e Danièle Huillet exerceram como método a inscrição em filme de gêneros artísticos, literários e filosóficos considerados de alta cultura, cânones da tradição: óperas, pinturas, peças, tratados, poemas, romances, etc. Contudo, em seu caso, o conceito de impecabilidade, aquela virtude tola e no entanto digna, já estridente nas origens, é torcido e se converte em rigor estruturante.

Em “Straub-Huillet: o menor planeta do mundo”, Alain Bergala descreve as peculiaridades do trabalho do casal no set de filmagem junto aos técnicos de som e de imagem, Louis Hochet, Caroline Champetier e William Lubtchansky. A busca concreta do ponto estratégico, de onde se poderá filmar todos os planos de uma mesma cena mudando somente o eixo e a objetiva – processo que geralmente se inicia anos antes com a visita sistemática às locações munidos de um visor –, a insistência em não dublar, não acrescentar cobertura de ambiente ao som direto das tomadas, nem utilizar falas em off para encobrir uma falha de captação, a rígida atenção dada à entonação dos atores e à musicalidade dos textos, a precisão de obter ao menos dois planos valendo para o som, para a fotografia e pela atuação, bem como a precaução de rodar cada cena em dois chassis de maneira a evitar acidentes, todas essas idiossincrasias apontam para os caprichos do cinema de invenção, onde pesa o tênue fator da propriedade – período no qual, inclusive, eram épicas as brigas por patentes. Realizar com propriedade; reapropriar-se ludibriando o risco da desapropriação. O curioso é que, em Cedo Demais / Tarde Demais, tal rigor estruturante serve – verbo familiar à questão camponesa – ao contingente dos campos, estimulando a irrupção do acaso nas bordas da razão instrumental. Ao transmutar a imprevisibilidade em necessidade estética – seus planos são projetos políticos –, apelando para o que está enraizado no campo mas permanece lábil no quadro, Straub-Huillet tomam o partido da História. E assim, os efeitos de realidade são levados ao pé da letra: à primeira vista estilo; intervenções de fato.

Share Button