Cobertura da CineOP – 9a Mostra de Cinema de Ouro Preto

junho 25, 2014 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Dalila Martins, Em Campo

cineop

Buraco negro – o arrepio dos corpos em paisagens críticas
por Dalila Martins

De quando o lugar nubla o tempo pelo peso de suas entranhas; um buraco negro: Ouro Preto. Cavada a duras penas, a cidade sustenta seus abismos de pedra por entre igrejas flutuantes numa espécie de disposição guignardiana, porém grave. O foco é o retumbante, restolhos e detritos da violência escravista em que a mineração se apoiou para erguer suntuosidades, atualizado para “como distinguir a periferia adiante do (des)centro histórico?”. A sede da 9ª Mostra de Cinema Patrimônio, o CineOP, que este ano ocorreu mais cedo que de costume, entre 29 de Maio e 2 de Junho, estava baseada no Centro de Convenções, o antigo Parque Metalúrgico, uma parte baixa da cidade, nos limites do parque turístico. Lá, os debates sobre Educação, Restauração e História aconteciam, dividindo a atenção com o Cine Vila Rica, o teatro onde os filmes eram exibidos. Arte e indústria: dois pólos do fazer cinematográfico que remetem à velha questão de substituição do cariz aurático pelo valor de exposição. Na era da reprodutibilidade técnica, não obstante, há uma zona nebulosa inerente a todos os momentos transitórios, caracterizada pelo delay e pela persistência fantasmática, uma questão temporal que se traduz no espaço como sobreposição – opacidade e transparência coalescentes -, algo que se precipita todas as noites por entre os montes gerais. Digamos que o festival trata disto, do que é e não é simultaneamente, ou melhor, dos descaminhos do longínquo que se apresenta fulgurante em um triz, por mais próximo que esteja: o patrimônio cinematográfico como ruína.

Em tempos de crise político-administrativa na Cinemateca Brasileira, instituição que já havia sobrevivido com parcos recursos durante décadas, esforçar-se para pensar os circuitos processuais de resgate, conservação e exibição de antigos filmes emerge como difícil necessidade. Se a explosão do digital desloca consideravelmente a discussão para a problemática do imaterial e da virtualidade onipresente, pouco se lembra de que a matéria opera por resistência ao desaparecimento, tantas vezes tendencioso para além da entropia natural. No eixo temático Preservação, com curadoria de Hernani Heffner, homenageou-se Cosme Alves Netto – católico e comunista -, diretor da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro entre 1965 e 1996, cuja militância se estendia desde o recebimento clandestino de obras barradas pela censura na época da ditadura militar à difusão do cinema brasileiro curtametragista em festivais ao redor do mundo, passando pelas atividades do grupo Ação Popular. Uma ligeira pena, mas não surpreendente, que o documentário de abertura, Tudo por Amor ao Cinema (2014), de Aurélio Michiles, seja nada mais nada menos que um melô cinéfilo antissubversivo, cujo mérito repousa em dois pontos apenas: primeiro, reavivar a memória do papel agregador e agitador dos museus nos anos de 1960 e 1970 (outro exemplo seriam as experimentações do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo sob a gestão de Walter Zanini); segundo, a sequência acerca do incêndio no MAM do Rio que, além de empregar imagens do registro das cinzas e destroços feitas por Walter Carvalho – claro -, dá forma à ironia do fato de a Cinemateca, altamente inflamável, ter permanecido intacta, pela justaposição tenebrosa de duas fotos quase idênticas, uma com semblantes obtusos, a outra com o sorriso largo de Cosme, no melhor estilo meme.

Tal assombro evocado na sequência da contenção da catástrofe de 1978, em Tudo por Amor ao Cinema – reza a anedota que o espírito de Paulo Emílio Salles Gomes, recém-falecido, bloqueara as chamas – ganha corpo nos filmes de Luiz Rosemberg Filho, um dos homenageados da Temática Histórica desta 9ª edição. A Universo Produção recuperou dois de seus filmes dados como perdidos há 30 anos: O Jardim das Espumas (1970) e Imagem (1972). De título tão justo e apropriado, O Jardim das Espumas pode ser entendido como a ressaca de Terra em Transe (1967). Em Glauber, se o jovem intelectual Paulo Martins padece de uma intensa dúvida entre a poesia e a política, num movimento pendular, flertando ora com o populista Felipe Vieira, ora com o conservadorismo colonialista de Porfírio Diaz, em Rosemberg, o universo está cindido irreparavelmente, seus fragmentos reverberam e sua aparência é deformada.

O Jardim das Espumas, Luiz Rosemberg Filho

O Jardim das Espumas (1970), Luiz Rosemberg Filho

A realidade em crise e conflitante de Terra em Transe aqui se revolve até a conformação da contradição; por conceber o absurdo como fato, a ficção científica se torna o único gênero adequado para o assunto de Jardim das Espumas, a antítese social daquela sociedade. O enredo é árido: um emissário dos planetas ricos é sequestrado por uma facção radical ao visitar o continente paupérrimo de San Vicente para selar acordos comerciais e, enquanto seus sequestradores são presos e investigados, ele percebe que seus planos são inférteis para aquele lugar. Já o efeito é a rarefação. Com mínimos diálogos, estabelecidos somente entre os poderosos e que efetivamente nada significam, correspondendo a uma variação mesquinha de vontades de potência, numa espécie de afasia política semelhante ao Blá Blá Blá (1967) de Andrea Tonacci, o filme se arrasta numa arritmia estridente e desconcertante – a trilha sonora, um misto de tambores ritualísticos e música eletrônica, é de vital importância para essa sinistra ambiência. O dito assombro, antes peça de humor gracioso, aqui se configura em terror, aquele da tortura sistemática aplicada em corpos nus, anônimos e indiferenciados; o sequestro perde seu caráter de intervenção e funciona como um perpetuum mobile de crueldade civilizada, em que os agentes e as vítimas alternam seus papeis – a racionalização da violência. Se muito se indagou como era possível a lírica depois de Auschwitz, Rosemberg é capaz de inserir imagens do terceiro Reich e dos milhares de cadáveres nos campos de concentração nazistas, de modo nada abjeto e, ainda, redireciona a questão delicada para o contexto dos regimes ditatoriais da América Latina. A comparação, que evita o paralelismo simplista e imprudente, é ajustada pela mediação digna de um Godard em Nossa Música (2004), com pontos cegos e desequilíbrios certeiros – a tela negra, vazia, do intervalo; o silêncio desassossegado -, e assim consegue abordar tabus que permanecem.

O trabalho com os corpos é a marca estilística mais impressionante dos filmes de Luiz Rosemberg Filho, talvez porque sua abordagem veemente, muito próxima das práticas cênicas do Teatro Oficina do final de 1960 e início de 1970, até hoje encabeçado por Zé Celso Martinez Corrêa – trupe que lhe serviu de elenco em América do Sexo (1969), extremamente pautada pela virulência do Teatro do Absurdo, de Antonin Artaud – trate da carnavalização de maneira agônica, adensando o espírito tropicalista de modo a reflexioná-lo, descolando-o de sua tônica eternamente alegre e celebrativa. Seus corpos são mortais, irritam-se, ferem-se e sangram, mesmo em deleite. São amarrados, apertados, estapeados, pisoteados, furados, atirados, capados, humilhados, exauridos. Em Crônica de um Industrial (1978), uma espécie de desmascaramento do milagre econômico brasileiro, o empresário nacionalista, de esquerda na juventude, tenta aliviar a culpa da traição de seus ideias e compensar sua derrocada existencial com sexo agressivo, que mais parece um constante estupro de sua amante. Em O Santo e a Vedete (1982), o clássico mote chanchadesco da garota que sonha ser a estrela de um show de variedades não guarda pudores quanto ao fato de o corpo ser moeda de troca para alcançar objetivos na lógica do espetáculo. Quase que didaticamente, ainda, uma panorâmica lateral em A$$untina das Amérikas (1976) mostra, no meio de uma rua do centro do Rio de Janeiro, uma figura imóvel, fantasiada de esqueleto, outras dançando e rebolando em frenesi e, então, alguns corpos letárgicos, amontoados num jipe e que, por fim, levantam-se e caminham como zumbis, aos olhos do povo mudo e hipnotizado na lateral da cena. Imagem, por sua vez, é uma espécie de nucleação, síntese ou conceitualização material disso tudo – um suplício estendido e abafado -, quiçá uma ponte para o devir vídeo de seu trabalho, como sugere a curiosa sinopse: “No real, apreendem-se: a) as imagens precisas que se situam em um momento determinado de nossas contradições históricas e suas consequências; b) as imagens de um estado tão repressivo quanto a linguagem determinante de um sistema; c) a moralidade das mortes na busca da vida; d) a imobilidade enquanto reflexo de um mundo irritante, sem futuro, cansativo, castrador, indefeso, surdo e mudo; e) com a boca fechada, agimos no silêncio da história; f) o sangue é nossa realidade e nossa enfermidade. O mundo nos observa em silêncio… O cinema é um despertador. Ele começa a questionar. O isto corresponde às imagens de nossos sofrimentos.”

Imagem (1972), Luiz Rosemberg Filho

Imagem (1972), Luiz Rosemberg Filho

Nos três vídeos de Rosemberg escolhidos para esta edição – Farra dos Brinquedos (2014), Sobre o Conceito de Espetáculo (2013) e Linguagem (2013), este último integrante do encerramento da 17ª Mostra de Tiradentes ao lado de Já Visto Jamais Visto (2013) de Tonacci, bem como em Passagens (2006), exibido como sua participação no debate dos homenageados – a mise em scène de corpos contorcidos de seus filmes se transfigura na inserção resistente, seja de talking heads performando textos críticos irreconciliados, seja de fotografias, gravuras e reproduções pictóricas de cunho afetivo, num fluxo incessante de imagens e ruídos televisivos. É como se a violência, antes resultado de tortura física e psicológica escusa, agora dissesse respeito à superexposição midiática de decupagens e cortes impiedosos – o espetáculo como avesso da guerra, nos termos de Sandor Krasna, o duplo de Chris Marker em Sem Sol (1983). E a sopa de pedras, expressão com que Glauber se referiu a Jardim das Espumas, cede vez ao didatismo relativo a uma criança embasbacada perante um mar de sonhos e feitiços, procurando por um ponto de fuga no horizonte enquanto se torna infinitamente dissoluta. Essa criança, no entanto, nada tem de infantilidade regressiva, respondendo, inversamente, à ingenuidade épica, ao que a razão esclarecida gostaria de ter sido. O ato enunciativo dos rostos femininos e infantes registra os mitos inerentes à sociedade do espetáculo de modo a amenizar os seus mistérios, na medida em que os fixa como acontecido, contextualmente, resguardando, contudo, sua singularidade. Assim, sem lançar mão de uma explicabilidade de reportagem, que demanda a verificação imediata das informações, procura fazer com que os conceitos tratados se aproximem dos objetos a que dizem respeito, isto é, do corpo videográfico mesmo, promovendo a magia nominalista, pela qual a linguagem audiovisual não significa nada além de seu próprio sentido – a interdição de toda e qualquer ideologia. Talvez por isso a predileção de Rosemberg pela trucagem de Georges Méliès e pelo jogo de máscaras, desvios lúdicos anti-pornográficos.

O outro homenageado de autoria não negociada – termo cunhado por Cleber Eduardo para definir a Temática Histórica -, falecido em março no auge de sua carreira como diretor, Ricardo Miranda também cria com maestria um espaço fílmico de enunciação, tensionando corpos e textos em paisagens minimalistas. Sua trilogia inacabada, denominada Inquietante Estranheza, composta por Djalioh (2011) e Paixão e Virtude (2014), remete ao conceito estético das Unheimlich, desenvolvido na obra literária de E. T. A. Hoffmann e analisado numa perspectiva psicanalítica por Sigmund Freud, em artigo homônimo de 1919, algo como o horror experimentado por aquilo que deixou de estar oculto no mais íntimo e familiar – daí seu apreço pelo folhetim.

Paixão e Virtude (2013), Ricardo Miranda

Paixão e Virtude (2014), Ricardo Miranda

Em Paixão e Virtude, ao trabalhar um conto de Gustave Flaubert – pensar aqui em adaptação incorreria em erro -, Miranda transpõe o emblemático discurso indireto livre do escritor francês para o transbordamento da narração e das vozes das personagens sobre os atores, ilhas mediúnicas postas à prova, dissecadas e tornadas estéreis. Para além dos créditos múltiplos, em que uma personagem corresponde a mais de um ator e vice-versa, há uma constante miscelânea de pontos de vista. Essa miscelânea, não obstante, manifesta-se em rupturas e distanciamentos. São catarses orquestradas entre seduções e ceticismo, turbulências precipitadas entre cientificismo positivista e pulsão de morte romântica.

As palavras do título, paixão e virtude, referem-se não apenas à trama de amor e traição entre uma senhora aristocrata, esposa de um banqueiro, e um jovem químico, mas a essa estrutura que organiza irrupção e contenção, movimento e estase, transgressão e ordem. É um filme iniciado com a origem do mundo – uma vagina -, citação do quadro de Gustave Courbet, e que termina com uma fenda rochosa em ambiente marítimo ao contrário, lembrando que, no Brasil, certas ideias estão mesmo de cabeça para baixo, por mais naturalizadas que estejam. A considerar, neste sentido, o plano que apresenta, apartado em uma fazenda brasileira, Ernesto duplicado, isto é, interpretado simultaneamente por Barbara Vida e Paulo Azevedo, escrevendo uma carta à amante insistente do outro lado do Atlântico. A versão feminina, mais próxima da consciência objetiva do narrador, tenta convencer-se – ou seja, convencer a sua versão masculina – a se libertar do vínculo de insaciabilidade auto-destrutiva que lhe impede de se consolidar como indivíduo isolado produtivo, um cientista a favor do progresso, pleno de direitos. Num momento enfático, os dois olham em questionamento para a ama negra, sentada no canto inferior esquerdo, nos limites do quadro, procurando por algum sinal de concordância a respeito do livre-arbítrio. Ela, em sua condição de escrava, mercadoria sem subjetividade, vira o rosto e encara o espectador através da câmera – arrepio dentro da casa grande.

Quando disse que pensar em adaptação na obra de Ricardo Miranda incorre em erro é porque seu cinema funda o espaço para o texto, como matéria de peso, magnético, instalar-se. Perante seu curta documental A Nostalgia do Branco (1979), sobre o poeta simbolista João da Cruz e Sousa, pode-se arriscar que o estudo da instalação foi precedido pela estudo da escultura. Diferentemente da instalação, sempre atual, à mercê das contingências, os monumentos urbanos, erigidos em comemoração a pessoas de autoridade, impõem um espaço virtual absoluto, inquebrantável, sem dúvidas. Aos fundos alvos planificados, interpõem-se planos de mata, densos mas porosos, e inscrições em livros, confessionais, particulares, descrevendo sensações efetivas, selvagens. A narração de trechos do poema em prosa Emparedado (1898) parece evocar o olhar em suspenso da ama negra de Paixão e Virtude, a contrapelo. Discorrendo obscuramente, ora acerca da difícil necessidade de romper o muro formal ditado pela cartilha parnasiana e cultivar o verso livre, ora acerca dos preconceitos sofridos por um filho de escravos intelectual na sociedade brasileira do final do século XIX, o poema aludido em película parece servir como manifesto por um cinema de invenção em um país subdesenvolvido em oposição à esfera de influências da indústria cultural, lazer intrínseco ao milagre econômico. Diante do mundo totalmente administrado, o arrepio, segundo palavras seculares: “Se caminhares para a direita baterás e esbarrarás ansioso, aflito, numa parede horrendamente incomensurável de Egoísmos e Preconceitos! Se caminhares para a esquerda, outra parede, de Ciências e Críticas, mais alta do que a primeira, te mergulhará profundamente no espanto! Se caminhares para a frente, ainda nova parede, feita de Despeitos e Impotências, tremenda, de granito, broncamente se elevará ao alto! Se caminhares, enfim, para trás, ainda, uma derradeira parede, fechando tudo, fechando tudo — horrível! — parede de Imbecilidade e Ignorância, te deixará num frio espasmo de terror absoluto…”

De outro modo, também distinto, Humberto Mauro soube abalar com despretensiosa elegância – e um lirismo natural, diriam alguns – o que se esperaria de uma cartografia postal da cidade do Rio de Janeiro, fixa, pomposa, cambiável pois abstraída. Em As Sete Maravilhas do Rio de Janeiro: Primeira Maravilha e Segunda Maravilha (1934), encontrados por acaso em meio à coleção Jurandyr Noronha em bom estado de conservação, ao invés de a decupagem destacar os planos excluindo o entorno como resto indesejado, a fotografia cintilante anima os pontos de observação e o encadeamento da montagem engendra uma topografia dinâmica e concreta de todo o ambiente: por entre os morros cariocas, pontos de referência, tudo é movimento, maquínico ou atmosférico, e vive.

assetemaravilhas

As Sete Maravilhas do Rio de Janeiro: Primeira Maravilha e Segunda Maravilha (1934), Humberto Mauro 

Na mesma sessão, foram projetados os rolos em sequência hipotética de O Rei do Samba (1952), de Luiz de Barros. Uma série de cenas musicais, executadas especialmente para a câmera, tanto pela frontalidade dos corpos, quanto pelos olhares e sorrisos francos, insuflam o fraco mote de um compositor que perambula por bordéis, festas grã-finas, shows e favelas, negligenciando a família em nome do samba. Todavia, a efusividade das performances, por causa das saídas e entradas abruptas dos rolos que sustentam segundos de escuridão, depura-se, a cada vez, em leve melancolia, semelhante à de um O Anjo Nasceu (1969), de Julio Bressane. Percebe-se, então, o grau fictício de tal lugar, que escapole quanto mais tentamos apreendê-lo.

Outro filme restaurado em exibição, também captado na cidade do Rio de Janeiro, foi Copacabana Mon Amour (1970), de Rogério Sganzerla pela Belair. Este, definitivamente fantasmagórico e monumental, o registro sócio-histórico e místico, a um só tempo, em tom de escárnio, de uma cidade espectral, a ex-capital do Brasil. O cinemascope colorido, geralmente fundamentado por panorâmicas, em câmera na mão acompanha entidades marginais e loucas – como Sonia Silk, a fera oxigenada incorporada por uma brilhante Helena Ignez -, expelidas pela paisagem, enquanto o som veicula a genealogia da violência: “Imóvel diante da grande miséria nacional, o otário só pode seguir dotado de sol, da cachaça e da magia, até um dia acabar de vez com nossa evidente necessidade do samba, da necrofilia e da saudade!”.

Copacabana Mon Amour (1972), Rogério Sganzerla

Copacabana Mon Amour (1972), Rogério Sganzerla

Não seria a capacidade de purgar bravamente um corolário de sensações simultaneamente vibrantes e espantosas, lábeis e ainda irracionais, sem conformá-las de imediato a uma coleção de filmes ou a um filosofês tacanho, uma das tarefas essenciais da crítica de cinema? Se a história do cinema brasileiro pode ser determinada como um processo espiralado ou vertiginoso de alguma coisa entre a exponenciação de projetos intermitentes e a idolatria de filmes invisíveis, nada mais justo que indagar-se a respeito da abordagem das obras pelos críticos. Seria pelas vias do afeto, pura e simplesmente, aquelas do cinéfilo regressivo? Ou o excesso de apego não seria diretamente proporcional à perversidade legista? Será que as obras não estão interessando? Qual de fato é a (mais)valia dos conceitos? Estas foram algumas questões que Rubens Machado Jr. fez ecoar no abismo reflexivo por ele desvelado durante o debate Vertentes do Cinema Moderno e de Experimentação no Brasil. Como resposta, sugeriu – assim, de improviso 100% pertinente – que rememorássemos uma velha crítica que levava em conta o social, perguntando-se sempre sobre as implicações e premências de se pensar esse ou aquele filme hoje em dia, junto ao contexto de produção da época, formalizado como refluxo. Uma nova crítica que convida o sujeito da análise a estabelecer uma relação háptica com a obra, nela instalar-se numa escala mundana, sem álibis, apenas com o próprio corpo frágil e transitório, submetido à falência da fala e ao mover-se involuntário do estar, esmiuçando os fragmentos como matéria da memória: a obra como paisagem ruinosa que, por compreender tudo, passado e futuro, camufla-se muito bem – imagem dialética da literalidade.

Share Button