Pensamento em desconcerto

setembro 1, 2016 em Em Pauta, Raul Arthuso

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por Raul Arthuso

Em tempos “pós-linguagem”, um ato deliberadamente gramatical é potencialmente radical. Ao mesmo tempo, esse tipo de gesto fica muitas vezes tachado de conformista, pois na cultura cinematográfica, como na Roma antiga, não basta ser, é preciso parecer. Monte Hellman anda no meio-fio perigoso do gênero cinematográfico como quem brinca numa pinguela, tirando do gênero imprevistas associações sobre o mundo, a humanidade, o gênero e a própria linguagem do cinema. Passando pelo faroeste, o horror, o drama de guerra, o policial, o road movie, a obra de Hellman encara de frente o conflito inerente ao trabalho de encomenda dentro de certos paradigmas de convenções com a perspectiva de libertação artística dentro das restrições. Ao contrário de muitos cineastas oriundos dos anos 1960, que lutavam contra as restrições num ambiente de certa liberdade criativa, Hellman atacou, ao longo de sua carreira, o gênero em suas entranhas.

O gênero cinematográfico em seu modelo hollywoodiano industrial consolida um ideal da fábula oral de fundo moralista que a literatura não foi capaz de levar ao limite: a reprodução eterna da experiência narrativa adaptável às transformações do tempo. A razão é simples: a fábula moral é feita de imagens, ações, causas e consequências; a literatura, de palavras, cuja força visual e de significação vão, ao longo da era moderna, contradizendo a transmissão sem grandes transformações da fábula. Apropriando-se das conquistas literárias, o gênero cinematográfico revive essa potência na prática industrial de produção. Dentro do esquema hollywoodiano, ele tende à reprodução em série, à identificação rápida da superfície, ao envolvimento consciente com o reconhecível, por mais que o resultado possa ser inconsciente – é possível alegar não gostar de filme de horror pois são previsíveis os efeitos de seus procedimentos; a antecipação é parte central no gênero, muito por causa da relação fluida com o espectador. Continuidade, inteireza, completude são palavras-chave para se entender as construções, interações e efeitos do gênero num filme.

A obra de Monte Hellman trabalha com a implosão da continuidade ontológica do gênero. O foco dessa operação está na criação de uma desconformação, que, não sendo propriamente uma ruptura estrutural com o gênero, nem um distanciamento brechtiano, mantém o espectador em uma separação terrível e fascinante diante do esperado. Hellman obtém o efeito investindo no detalhe e no específico, compondo sua ficção de fragmentos alheios, mas reconhecíveis. A estranheza que não choca, mas perturba, cria uma espécie de despertar emocional frente à fabula sem convidar o espectador a sair da sala. Essa acomodação curiosa é a mais poética e assombrosa modernidade do cinema de Hellman.

O tempo

tem direito de se meter

em tudo, coisa boa ou má.

No começo de sua carreira, o investimento se dava de forma mais ostensiva. A Besta da Caverna Assombrada (Beast from Haunted Cave, 1959) é, de início, um filme policial, com um roubo a banco e um conflito amoroso que se encaminham para a reclusão do grupo num lugar inóspito. A presença de um monstro inexplicável, devorando as personagens ao mesmo tempo que destrói a trama policial, dá uma amostra mais efusiva do método. Não só as personagens são tomadas de assalto por essa ameaça fantástica como os elementos de composição do filme se transformam: o tom fica pesado, a fotografia escurece, a cenografia adota uma tendência ao gótico. A construção se anuncia no prólogo do filme: uma câmera fotográfica assume o ponto de vista da câmera cinematográfica e, sob o clique do obturador, congela a imagem-cenário onde se desenrolará a trama. Essa quebra no fluxo das imagens em movimento antecipa a interrupção do próprio filme, sentida com mais força aqui que em qualquer outro filme do cineasta. O prólogo – filmado anos depois, a pedido do produtor Roger Corman para deixar o filme mais longo e vende-lo para um distribuidor – é o momento mais marcante e consciente de A Besta da Caverna Assombrada, talvez um apontamento – especulo – revisando o que o restante do filme trazia inoculado…

Nos dois filmes seguintes, Hellman vai burilando seu élan de acomodação do detalhe de composição na trama convencional, de modo que a interrupção já não está tão presente e a fruição de Flight to Fury (1964) e Guerrilheiros do Pacífico (Backdoor to Hell, 1964) permitem um assentamento mais vigoroso. Filmados na mesma leva, com baixos orçamentos, ambos os filmes são obras em que a atenção formal está nas modulações da narrativa, e são o tom geral e o ritmo que seguram a obra no eixo. A intriga de Flight… é precursora do neo-noir dos anos 1980, cambaleando por meandros confusos: as identidades são negadas e a identificação do espectador é menos com valores – o mocinho, a femme fatale, o bandido – e mais com tipos visuais. A transformação da trama em um filme náufrago (de aviação!) problematiza a questão dessas identidades e a irreverência da obra fica mais evidente quando o espectador atenta para o sentido do nome da femme fatale: Destiny. Outra modulação e Flight… se torna um faroeste contemporâneo, de dois homens urbanos jogados numa selva desconhecida em busca de diamantes que não pertencem a nenhum deles. Quando o resultado do gunfight é a perda desse objeto de desejo, como última ação desesperada do perdedor prestes a morrer, fica no ar o fim para o qual a busca do destino leva, e mais uma vez Hellman coloca o gênero em crise, ao interditar o troféu ao vencedor do duelo. O desconcerto do final de Flight… antecipa a potência das melhores obras do diretor.

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Disparo para Matar (1966)

Disparo para Matar (The Shooting, 1966), A Vingança de um Pistoleiro (Ride in the Whirlwind, 1966) e Corrida sem Fim (Two-Lane Blacktop, 1971), por sua vez, já trazem a tradição e a crise, o detalhe e o absoluto, o gênero e seu oposto. A acomodação desses contrários alcança nesses três filmes o ponto alto na poética de Hellman. Em todos eles, os elementos de composição da narrativa convencional são levados ao mínimo: o faroeste de Disparo para Matar tem basicamente três caubóis e uma garota sem passado num deserto a perder de vista; A Vingança de um Pistoleiro traz ladrões, homens da lei e dois forasteiros escondidos numa cabana com uma família que os toma pelos bandidos procurados pelo xerife; Corrida sem Fim é um road movie com três personagens sem nome e um carro percorrendo uma estrada sem fim concreto ou motivo aparente. A crise da narrativa benjaminiana sustenta as obras, reduzindo os elementos ao fundamental numa lapidação que, menos que esvaziamento, cria uma tensão do gênero. Mantendo as convenções em seu estado germinal, Hellman se dedica sobretudo ao ritmo, ao elemento plástico da imagem, à cadência das falas, à coreografia dos movimentos, às sonoridades e tom de cada cena. São obras em que o absoluto da paisagem e da natureza contrasta com a presença fugaz do humano, a razão e a emoção se embaralham nos deslocamentos fluidos, inevitáveis e despropositados, e a fala e o silêncio modulam cada instante. As narrativas não têm um fim – seja o término ou a finalidade inerente a toda narrativa de gênero; apenas se desfazem, como a película queimando em Corrida Sem Fim. O ponto alto da obra de Hellman é a representação da crise da narrativa enquanto escancara sua face dentro dos filmes: pessoas em busca de algo nunca revelado, o desequilíbrio que só se harmoniza no desconcerto, o deslocamento pelo espaço que catalisa o esvaziamento das personagens. É o ideal do cinema clássico – apagar seus elementos de composição enquanto narra – numa chave absolutamente moderna.

Ethan Edwards: “O que você viu foi uma rena usando o vestido da Lucy. Eu encontrei Lucy lá no cânion. Enrolei-a no meu casaco, enterrei com minha próprias mãos. Achei melhor esconder isso de você.”

À primeira vista, Noite do Silêncio (Silent Night, Deadly Night 3: Better Watch Out!, 1989) é apenas um slasher movie de produção ultra modesta de encomenda, cuja distribuição direto em home vídeo vem apenas sublinhar a suposta convencionalidade do filme. Todos os paradigmas do gênero estão presentes na trama: a garota inocente, o assassino em série, o policial, o médico, jovens apaixonados na noite escura, e a faca que fará jorrar até a última gota de sangue. Mas Noite do Silêncio apresenta os elementos convencionais do gênero a uma distância sutil.

Já de início, o filme se situa no período de fim de ano, utilizando-se de signos do Natal na construção do monstruoso: um Papai Noel assassino reaparece insistentemente nos primeiros minutos, trazendo ao corriqueiro bom velhinho uma carga traumática da violência, com sua roupa vermelha que é amor, mas também é morte. Tudo não passa de um sonho. Ou melhor, um experimento científico: uma garota sensitiva adentra a mente de um rapaz perturbado, cujo cérebro foi reconstituído em laboratório, para ajudar a trazê-lo do coma. Detalhe: a garota é cega mas, dentro da mente do homem em coma, ela consegue ver. Em pouco minutos, Hellman apresenta uma gama de significações onde o horror se insere que destoa da linearidade própria do filme de gênero. O filme de horror é também um conto de Natal, o Papai Noel traz presentes e a morte de forma indistinta, o assassino está em coma, a protagonista com quem compartilhamos o ponto de vista é cega – ela sente, intui, mas vê apenas no seu íntimo. O horror aqui é e não é ao mesmo tempo. Ao contrário do slasher corriqueiro, onde o humano se vê ameaçado por uma entidade de força sobre-humana num corpo convencional, o humano aqui já se desfez: o olho e o cérebro, os principais órgãos mobilizados pela experiência cinematográfica, estão defeituosos nas personagens principais da trama. O gênero em Noite do Silêncio é representado pela cegueira e a mente destruída que, em contato por um experimento médico, ganham uma conexão cujo fim é se restituírem, integrar-se. A precariedade material do filme alerta para a ruptura entre o esperado e o visível na medida em que, em vez do super-homem slasher e a vítima assustada com sua presença e aproximação iminentes há um grotesco homem debilitado e uma garota capaz de prever a aproximação do assassino, a ponto de dizer em dado momento que não adiantar fazer nada para impedir sua ação. Essa pequena blague entre visão e mente, olhar e raciocínio, como pilares em ruínas da fábula do filme, impõe um afastamento vivaz.

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Noite do Silêncio (1989)

Noite do Silêncio está recheado de comentários irreverentes relacionados ao horror. Richard (Bill Moseley) é uma espécie de “Frankenstein moderno”, criado por um médico na luta por reconstituir o cérebro massacrado e traumatizado de um moribundo. Dr. Newbury (Richard Beymer) quer trazer Ricky de volta à vida, e usa a bela Laura (Samantha Scully) para entrar na mente do homem em coma. Essa ligação ativa uma comunicação entre ambos. Ricky acorda como o personagem ancestral de Mary Shelley, caracterizado com uma maquiagem grotesca absurdamente inverossímil, mexe-se como um zumbi, remete a uma besta. Por sua vez, o Frankenstein original já era um “Prometeu moderno”. Então, ao contrário de seu auge criativo, Hellman arma seu jogo com o gênero pela mise en abîme de piadas de canto de boca, uma irreverência após a outra: Mary Shelley, A Bela e a Fera, o filme de zumbi, o médico e o monstro, chapeuzinho vermelho, Halloween. Onde os elementos do gênero eram tensionados ao essencial nos seus filmes anteriores, em Noite de Silêncio Hellman aplica finas camadas de véu da cultura, cuja soma cria um conjunto de aparências mais ou menos reconhecíveis, mas completamente deslocadas. Se, no melhor de seu cinema, as personagens simplesmente eram, aqui elas simplesmente parecem.

Disparo para Matar e A Vingança de um Pistoleiro trazem a potência das modulações e elementos fundamentais de ritmo, tonalidade e plástica no confronto das personagens com a paisagem. Noite do Silêncio transforma essa paisagem física em virtual. As personagens estão tensionadas pela paisagem cultural de nosso tempo neoliberal-tecnológico-interativo onde todas as formas podem se encontrar na democracia universal da aparência. Ricky se assemelha a outros monstros do cinema de gênero, mas em verdade não é nenhum deles, assim como Laura não é tão bela quanto besta – ela consegue prever o futuro, mas nada faz para salvar o irmão ou a avó. São existências incompletas, sem olho ou mente. A crise da narrativa é construída aqui pelo excesso de aparências difusas. Não se trata de citações. A referência, como um paradigma do cinema contemporâneo, retoma elementos da tradição cultural ocidental em sua integridade. A referência só existe quando é possível apontá-la, ou seja, dizer “esta é uma referência a tal coisa”. Quando digo que Richard se parece com Frankenstein ou sua relação com Laura é como a bela e a fera, tenho plena consciência de que a semelhança se sustenta apenas até certo ponto, pois o filme nada mais faz do que esboçar traços que meu referencial ativa.

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Noite do Silêncio (1989)

Formalmente, isso aparece nos usos dos pontos de vista e no pequeno estudo de campo-contracampo contido no filme. São muitos planos subjetivos sem corpo e pontos de vista sem agente. Algumas transições de cena são realizadas com uma tela, como se alguém olhasse. Mas quem? Por vezes, a tela está lá apenas; em outras, o ponto de vista é de Laura, que efetivamente não está vendo. O plano subjetivo não tem quem veja: basta às telas, superfícies e aparências estarem lá para serem vistas, não importando muito se realmente se vê ou não. Em fins dos anos 1980, isso é uma formulação radicalmente premonitória ou no mínimo crítica: todos estamos cegos. O campo e contracampo complementam esse trabalho, mas também aparecem apartados: onde se espera um novo plano que revele o interlocutor, a câmera nega esse corte direto. O campo-contracampo mais marcante do filme é o primeiro encontro físico de Richard e Laura: a garota anda até a janela, pressentindo a presença do morto-vivo. De seu rosto, corta para o vidro e Ricky aparece do lado de fora, mais assombroso, como um espectro, mas ainda assim separado pela janela. A montagem campo-contracampo, com a negação plena desse recurso pela montagem interditada ou da subjetiva sem corpo, media a busca de Ricky por Laura, como dois planos em busca de uma montagem. Quando, ao final, Ricky e Laura finalmente estão em conjunção novamente – na derradeira piada do filme, quando um completa a frase do outro, como num jogral, desejando “Feliz Natal e bom ano novo” – eles são aparições no campo da imagem e espectros no som. A dinâmica de Noite do Silêncio é de espectros sem corpo, tanto na figuração do filme quanto em sua construção formal: seres que remetem a figuras, olhos sem mentes, planos sem contra-planos.

Por essa razão a palavra “desconcerto” cabe como uma luva: o filme é desarmonioso, descompassado, desmedido. Suas limitações técnicas saltam com facilidade porque sua verdadeira matéria são as aparências. Enquanto coloca as aparências em crise, o filme expõe sua face aparente. Essa sinceridade que se harmoniza com força descomunal nos melhores filmes de Hellman deixa o descompasso evidenciado aqui.

O pensamento é o pensamento do pensamento. Plácida luz. A alma é de certa forma tudo que existe: a alma é a forma das formas. Súbita, vasta, placidez incandescente: forma das formas.

A obra de 1989, com suas irreverências e blagues contaminadas no plano formal, num jogo de aparências em mise en abîme que problematizam o cinema contemporâneo, é uma pequena intuição para o monumental Caminho para o Nada (Road to Nowhere, 2010), no qual aparência, metalinguagem e contemporaneidade, corpos, planos e modulações são emanações vigorosas de um espírito moderno a assombrar o nosso tempo, sem pé nem cabeça.

No início de Caminho para o Nada a câmera literalmente entra na tela de um laptop que exibe o filme Road to Nowhere a partir de um DVD. Uma mulher, trivialmente, faz as unhas. Logo em seguida, acontece um assassinato que puxa os créditos inciais do filme de Mitchell Haven (Tygh Runyan), duplo de Monte Hellman – como as iniciais apontam – mas cuja semelhança parece outra das blagues do diretor, pois o filme joga com essa ideia de realidade e ficção. Em sua premissa, Mitchell Haven faz um filme que se apropria de elementos de trama policial hitchcockiana a partir de um caso real de conspiração nunca esclarecido pela justiça. Elementos da história real se confundem então com o filme de Haven: a blogueira que investiga a conspiração e se interessa pela produção do filme; o investigador da companhia de seguros servindo de consultor para o roteiro; e, principalmente, Laurel Graham (Shannyn Sossamon), atriz principal, que se parece muito com Velma Duran. Mas Laurel não só é parecida, ela é Velma Duran. Ou melhor, ela assumira, na conspiração original, a identidade da filha de Nestor Duran (Fabio Testi), contratada por Rafe Taschen (Cliff de Young), por sua vez, muito semelhante a Cary Stewart, ator que encarna o mafioso na ficção de Haven. Confuso, sem dúvidas, mas límpido, como o gesto inicial do filme já aponta: não existe realidade, só aparência, e nela, a dúvida. Como Haven comenta para sua interlocutora, “Você quer saber se eu imprimi a verdade ou a lenda?”, retomando a preciosa formulação fordiana.

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Caminho para o Nada (2010)

Mas o que é lenda e verdade quando não é mais possível saber o que é lenda e o que é verdade? Essa distância sutil é o mote da encenação e do tom estranho de Caminho para o Nada. Diferentemente de Um Corpo que Cai, não interessa se Laurel é Velma; isso só levaria ao fracasso (como de fato leva à tragédia pessoal de Mitchell), já que o conceito de identidade não faz sentido quando o fascínio está todo na imagem, na impressão. A verdade dentro do filme dentro do filme se perde nas diluições que as encenações problematizam, pois Hellman recusa ao espectador esclarecer o que de antemão é encenação, artifício, cinema, imagem, superfície. Cria-se, então, um curto-circuito, pois a distinção do que é filme e o que é filme-dentro-do-filme fica por conta do curioso: como em todo o cinema de Hellman origem e destino são prerrogativas de uma tradição que já não faz muito sentido. O curto-circuito é ainda maior quando se nota que esse mise en abîme quase barroco não chama a atenção para si. Caminho para o Nada se assemelha a um grande improviso que, desleixado em sua aparência, guarda uma espontaneidade enganadora, na qual é muito fácil ignorar que as personagens trocam de personas sem aviso, os tempos convivem num mesmo espaço e o mundo é um grande palco de histórias. Como o Improviso de Versalhes, de Molière, as fronteiras entre bastidores, palco e plateia são rompidas por uma tensão inerente ao tom da obra. As cenas de Caminho para o Nada se travestem de bastidores quando são obra final – ou seriam a própria conspiração de Nestor Duran e Rafe Taschen, que só poderia se concretizar na dimensão pública contemporânea do audiovisual?

Assim, o desconcerto entre gênero cinematográfico e linguagem poética que perpassa a carreira de Hellman e ensaiou uma dimensão problemática em Noite do Silêncio, se torna uma potente arma que se volta contra o próprio cinema. Os grandes cineastas da história se interessaram em algum momento pela natureza do duplo inerente à imagem cinematográfica, especialmente a ontologia material da película fotossensível. Monte Hellman em Caminho para o Nada retoma essa discussão sem nostalgia, questionando a virtualidade das telas e a fina camada superficial da imagem digital, sua fluidez em relação à realidade contemporânea e a destruição da dimensão pública do cinema. As fronteiras foram todas estilhaçadas. “This is a true story” (essa é uma história real), afirma a cartela final dos créditos de encerramento de um filme onde as noções “true” ou “false” já perderam importância. A busca da verdade para além do que se vê é o verdadeiro caminho para o nada.

John Sartoris: “A genealogia é uma tolice. Sobretudo na América, onde importa apenas o que um homem conquista e mantém, e onde todos nós temos antepassados comuns e a única casa da qual podemos dizer com alguma certeza que descendemos é a do Old Bailey. Porém, o homem que afirma não dar a mínima para os seus ancestrais é só um pouco menos presunçoso do que aquele que baseia todas as suas ações no precedente do sangue.”

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