A Grande Beleza (La Grande Bellezza), de Paolo Sorrentino (Itália, 2013)

dezembro 22, 2013 em Em Cartaz, Luiz Soares Júnior

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O feio, o sujo, o vácuo
por Luiz Soares Júnior

“Uma cultura nasce no momento em que uma grande alma despertar do seu estado primitivo e se surpreender do eterno infantilismo humano; quando uma forma surgir no seio do informe; quando algo limitado, transitório, se originar no ilimitado, contínuo. (…) Uma cultura morre quando tiver realizado a soma de suas possibilidades sob a forma de povos, arte, línguas, Estado, etc. , e em seguida retoma a espiritualidade primordial. (…) Alcançado o destino, realizada a idéia, a totalidade das múltiplas possibilidades intrínsecas, com a sua projeção para fora, fossiliza-se repentinamente a cultura. Definha. O seu sangue coagula. O seu vigor diminui. Ela transforma-se em civilização”.

Oswald Spengler, O Declínio do Ocidente

“Eu sou uma artista; não preciso explicar nada”, fala, com ar inspirado de quem toma metadona, uma performer suicida para o personagem principal de A Grande Beleza, Jep Gambardella (Toni Servillo). Paolo Sorrentino deve entender igualmente do riscado – nutre-se de um enxame de imagens flutuantes, de bailados de associações e de projeções que impossibilitam virtualmente a qualquer interlocutor ou espectador o acesso a qualquer naco de vida – quanto mais de vida inteligível!

A Grande Beleza é um filme natimorto; nenhum de seus planos possui um grão de vitalidade ou manifesta qualquer epifania, nenhuma de suas seqüências consegue segmentar o real em um cadinho encantatório de duração e de gesto, nenhum de seus contracampos convoca para a carne do mundo aquela cisão inelutável e irremediável, cisão-brecha onde o espectador se entrincheira, aspirando a habitar o campo… Em Fassbinder, Straub, Cassavetes, estas três funções coexistiram, bailaram e se perseguiram uma à outra – la fiamma che non si spegne… Eu estava lá, eu vi. O cortejo hipnagógico de imagens que povoam o bestiário barroco do filme de Paolo Sorrentino conglomeraram-se em uma colossal fortaleza de significantes, implacável mirante de pedra contra o qual nosso imaginário e nosso desejo rebatem violentamente. Não há lugar “para mim” num filme como este, pois o diretor já se encarregou de tomar – encenar, violar, tripudiar – o meu lugar. Eis o destino inelutável de tantos barrocos, sobretudo um barroco decorativista como este: apodrecer cedo demais, desperdiçar as virtualidades do fora de campo e o esconde-esconde lúdico do fora de quadro em nome da magnanimidade, grandiloqüente e estática, de um campo iníquo, povoado de pôsteres e de poses publicitários…

O ersatz de minha subjetividade, encarnado na figura do escritor e bon-vivant Jep, tem à sua disposição um cortejo de mulheres deslumbrantes de botox e horror vacui, de paisagens refinadas (um aqueduto romano em plano geral; bustos imponentes, em primeiríssimo plano; o Coliseu à noite), e sobretudo destas imprecações em pianinho, monótonas e pérfidas, com que burgueses bem-pensantes se alfinetam, entre o conhaque e a cocaína… conhecemos bem estes jogos, estes “filmes que necessariamente todos têm de ter visto”, estes revanchismos de quem publicou o primeiro livro e comeu a última editora, estes ressentimentos de fim de festa e necessário olvido… e aqui cabe a questiúncula do diabinho de Kipling, ainda e sempre:  “É bonitinho…mas é arte?”

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A Grande Beleza cultiva uma ranzinzice particularmente ferina com os males de nossa época e de nossa Kultur – o episódio do botox, o da performer “niilista” -, paga o pedágio do que parece ser de bom tom em círculos cultos – e sobretudo cult, indies do nosso meio;  não é a mesma coisa, definitivamente. O preço a pagar? Sarcasmo e recalcada repulsa por tudo aquilo que fede a paixão, a verdade… a mim também, cá entre nós, sempre repugnaram os baluartes do Bom, do Belo e do Justo, mas não é disto que falo. O que me parece uma doença – ou antes: o diagnóstico de um estado comatoso, digamos tudo – de nossa época pós-pós reside neste excessivo ceticismo, um ceticismo niilista, apocalíptico, para com tudo e todos que ainda ousam respirar sob o sol, e sofrer… A Grande Beleza, como o disse, cumpre o pedágio deste niilismo reativo, caracterizado por uma sintomática impulsão à defesa, à crítica pela crítica, sem que a vontade se insurja e reconstitua sobre as cinzas do império derrubado um mundo outro. E não é para isto que a arte serve – para o exercício de um niilismo ativo, na palavra nietzschiana? Uma retroescavadeira aqui deve ser apenas um meio, pois o verdadeiro Telos não reside na destruição, e sim na planta de um prédio novo, na renovação do terreno, no lançamento de novas mudas

Mas esta ranzinzice, esta misantropia para com nosso Zeitgeist narcisista, é característica daqueles doentes que não suportam certos espelhos que lhes são estendidos pelo Outro, certas versões concentradas e in vitro dos horrores que os habitam: o filme ironiza impiedosamente os jogos vazios com os significantes, o torneio  vertiginoso dos simulacros, o neo-barroco reificado dos desfiles de moda, justamente porque é um filme que se nutre destes mesmos fastidiosos brinquedos – é este o cancro que o carcome, o espelho estilhaçado. E nós com isto?

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Quem à primeira vista o filme de Sorrentino leva a pensar é em Fellini. Sobretudo o último Fellini – o pior: um baú de ossos e de fantasmas, infiltrados de mau gosto e de um narcisismo grosseiro, um punheteiro amaneirado (e minha principal reserva para com certos barrocos reside justamente nesta impossibilidade em que estão estes cultores idólatras das próprias imagens em trabalhar o fora de campo de forma satisfatória – portanto, em me deixarem habitar o filme; em reservarem um lugar para o espectador, presente e possível, mas também futuro). Mas sigamos por vias mais nobres. Na história do cinema, La Dolce Vita (1960) de Fellini atualizou para o período da Guerra Fria o ceticismo e ironia autofágicos de um escritor como Petrônio diante da Roma de seu tempo: a ronda exuberante das obsessões, taras e exílios (perceptivos, espaciais) dos personagens, num Scope constantemente vacilante, desbalanceado, são uma espécie de panorama mise en abîme, onde se inscrevem, ritmadas pela letargia do consumo e pela  vertigem ressacada da culpa, as letras de ouro que condenaram Balthazar em seu festim: uma geração se consome aqui por excesso de possibilidades, por empanzinamento. A Comilança (1973), de Marco Ferreri, lançava a pá de cal nesta infernal equação entre mais-valia e desespero, condenando os membros paradigmáticos das instituições de Poder (um juiz, um empresário, um oficial da Marinha, etc) a encenarem uma alegoria semi-pornográfica sobre a part maudite de que falava Bataille: em La Dolce Vita, Steiner, o intelectual, aposta a vida num único e derradeiro lance, no qual o valor de uso se afirma soberano; em A Comilança, é toda uma classe e uma consciência (infeliz) que irão postular o suicídio como a possibilidade nec plus ultra de realização existencial: é tudo o que nos resta, etc.

Mas tanto Fellini quanto Ferreri – estes pessimistas gastrônomos, estes decadentistas neurastênicos – foram antes de tudo realistas – digamos tudo: em cinema, a base infra-estrutural sem a qual não se chega a lugar nenhum: materialistas; conheciam fina e laicamente os subterrâneos da classe e do gosto que ironizaram, seus foras de campo… tanto A Comilança quanto La Dolce Vita constituem mapeamentos detalhados destas instâncias fenomenológicas onde até mesmo um fantasma como o dinheiro deixa o rastro, “suja por onde passa”: o gesto, o ritmo, a equação entre o espaço e o ritmo (na mise en scène)… são diagnósticos clínicos incrivelmente verossímeis dos modos de agir, de ver e de ser visto desta gente – a  rigor, começam como documentários – voilà! Os detalhes na confecção dos prato em A Comilança, as idiossincrasias dos personagens  em Fellini… Sorrentino, por sua vez, parece não fazer idéia de o que significam os personagens, o meio (espacial, de classe e de existência) por onde trafegam; eles vivem exclusivamente em nome e em torno do décor – não o contrário.

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Daí que tudo pareça flutuante, o raccord não raccorde causal e nem implique necessariamente o seu uso, a sua filiação à seqüência: um close de um chapéu espalhafatoso aqui, uma vista geral do aqueduto lá, um campo versus contracampo de entrevista acolá. Nada parece urdido e semeado: o reino das imagens, e não dos planos de cinema. Lembremo-nos de um seriíssimo texto de Serge Daney sobre One from the Heart  (1982) do Copolla… O décor não os expressa, mas os subsume (digere e vomita): eles são os meros fantoches deste museu de Madame Tussaud para indies de péssimo trato que é A Grande Beleza. Ia dar outro grande exemplo de um filme em que décor e gesto são como quintessências de um mesmo dinâmico e luminoso corpus orgânico, onde o plano-container cicatriza as imagos e as mise en scènes de toda uma geração: As Intrigas de Sylvia Couski (1975), de Adolfo Arrieta. Mas não vale a pena. Não, não vale.

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