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Tesão e tensão

1.

Maya Deren foi uma cineasta, escritora e coreógrafa experimental muito ativa e influente nos anos quarenta e cinquenta do século passado. Nasceu na Ucrânia, em Kiev, em 1917, como Eleonora Derenkowska, mas seus pais fugiram do antissemitismo para os EUA em 1922. Deren estudou poesia moderna e participou de um grupo trotkista antes de fazer seu primeiro filme, em 1943, junto com seu marido da época, Alexander Hammid, e um orçamento de duzentos e cinquenta dólares. Meshes of the Afternoon é também sua obra mais famosa, figurinha quase obrigatória em listas de melhores curtas-metragens de todos os tempos, e uma das obras de vanguarda mais importantes do meio. O curta mudo acompanha a própria Deren num percurso onírico e desorientador onde ela encontra outras versões dela mesma e uma figura sombria que parece a morte personificada (com um espelho por rosto). Muitos enxergaram ali um drama psicanalítico, outros uma síntese surrealista do filme noir. Meshes… até hoje, mesmo tendo muitos imitadores, não se parece muito com nenhuma outra coisa. Apesar de elementos narrativos simples e efeitos de edição que já encontrávamos no cinema clássico, a combinação que ela e Hammid oferecem é familiar de uma maneira extremamente perturbadora (assim como os duplos do filme).

Nessa época ela andava em Nova Iorque com gente como André Bréton, Anaïs Nin e John Cage. Em 1944 ela colabora com Marcel Duchamp no curta Witch’s Cradle, nunca finalizado, onde construções espirais se misturam com repetidos motivo gráficos relacionados ao ato de tecer. Como aponta Sarah Keller, autora do livro Incomplete Control, Deren completou seis filmes, quatro dos quais entre 1943 e 1946, período no qual escreveu também os textos mais associados com seu legado. Os hipnóticos At Land (1944) e Ritual in Transfigured Time (1946) foram feitos nesse período. Depois das suas viagens de campo ao Haiti, no entanto, que começaram em fevereiro de 1947, ela demorou quatorze anos para terminar dois filmes que são considerados obras menores ou reiterações das suas inovações iniciais (Meditation on Violence (1948) e The Very Eye of Night (1958), esforços fracos mas ainda assim interessantes)

Seus filmes dão a ver, não explicam nada. Sem o excesso conceitual nem a plasticidade abstrata que viria a caracterizar o cinema experimental americano do período, Deren coloca a sua própria figura em jogo para tratar da relação tortuosa da coreografia do corpo em cena e das subversões espaço-temporais que a montagem pode trazer à tona. Cada meio material era para ela ao mesmo tempo abertura inventiva e fechamento operacional de um mundo. Como artista, Deren misturava um interesse apaixonado nas oportunidades técnicas singulares que o meio cinematográfico permitia com uma vontade de reorganizar a nossa percepção da maneira mais radical possível. Como podemos depreender de textos como “Anagram” e “Cinematography: The Creative Use of Reality”, Deren queria que o cinema se prestasse a reformular as dimensões de ritual e magia que sempre acompanharam a nossa espécie.

O cinema não seria um modo engenhoso de se contar um romance, mas sim uma nova irrupção do transe , recalcado pela modernidade. Ela chega a dizer em “Anagram” que “toda fílmica deveria se construir como ritual”. Daí o seu interesse por antropologia e pela possessão em transe dos Haitianos que filmou e entrevistou.

Sua experiência no Haiti claramente a transformou, e se alguns entendem que pode ter funcionado como uma espécie de freio ou desvio na sua carreira cinematográfica, o trabalho etnográfico amador que ela produziu em cima desse contato é mais do que notável.

Além do livro Divine Horsemen, uma meditação generosa e muitíssimo bem-escrita sobre o vodu haitiano, Deren também filmou no país uma série de transes de possessão que claramente retomavam, com outra intensidade, seu interesse prévio na potência do cinema para criar transes e configurar coreografias coletivas.

 

2.

Em 1946, Deren começa a frequentar aulas de Gregory Bateson na New School. Bateson estava na época desenvolvendo seu estilo singular de antropologia, que bebia de cibernética, de teoria dos sistemas e dos jogos assim como dos desdobramentos incipientes da ecologia. Deren conhece também a esposa de Bateson, Margaret Mead, antropóloga já estabelecida e, como o marido, participante das famosas conferências de Macy sobre cibernética, que reuniram por anos figuras como Norbert Wiener, Claude Shannon, John Von Neumann e Heinz Von Foerster. Bateson e Mead haviam trabalhado com a cultura balinesa na Indonésia, e oferecem a Deren a possibilidade de editar o material que eles haviam filmado. Nos seus cadernos, sua excitação transparece ao pegar os rolos de filme de Bali feitos pelo casal. Ela fala de como é incrível manipular a velocidade dos filmes com as própria energia muscular, o que ela chama de “cópula derradeira” entre ela e o filme. O interesse de Deren, a princípio, era de fazer um filme que funcionasse como uma “fuga” intercultural de gestos rituais, misturando imagens balinesas com imagens de jogos infantis e outras atividades lúdicas, projeto que ela abandona quando começa a perceber a dificuldade de traçar relações simples entre contextos tão díspares.

Durante as aulas que Deren assiste, Bateson estava também desenvolvendo seu conceito de “platô”, que veio depois a ser usado e expandido por Gilles Deleuze e Félix Guattari no livro Mil Platôs, de 1980. Bateson explica o conceito a partir de uma cena que ele testemunha de uma mãe balinesa desempenhando um jogo erótico com o filho, puxando o seu pênis de brincadeira. O antropólogo estranha o fato da mãe parecer provocar o filho até o momento em que ele está próximo de um pequeno clímax só para interromper o jogo, para frustração da criança.

O pesquisador entende que seria razoável imaginar que as curvas dos nossos comportamentos em geral fossem limitadas por fenômenos comparáveis com o orgasmo — que serviria como uma espécie de protótipo para toda tensão cumulativa que leva a uma descarga. Ao ensinar a criança a desviar a tensão sexual cumulada ao invés de dissipá-la na consumação imediata, os balineses estariam oferecendo um outro modelo de acúmulo de tensão interativa. Bateson enxerga outros padrões de comportamento da cultura balinesa que evitariam o clímax dessa maneira, em transes, em brigas e nas artes.

Essa economia libidinal seria não só diversa da nossa, ocidental, mas do princípio geral da cismogênese [schismogenesis], o conceito inventado por Bateson para tentar descrever processos de interação cumulativa entre grupos sociais que geram divisão entre eles, uma espécie de escalada progressiva de tensão que intensifica recursivamente os comportamentos dos dois lados (como, por exemplo, na corrida armamentista entre Estados Unidos e União Soviética)

Deren escreve nos seus cadernos que essa frustração de clímaces dos balineses teria como propósito “a canalização da energia que seria gasta em exaustão conclusiva, convertendo-a em um platô de tensão que serviria à continuidade das relações comunais e pessoais”.

Deren também registrou o seu incômodo com o diagrama que Bateson fazia desse processo: “O tratamento de Bateson ao princípio Balinês do clímax frustrado sempre me incomodou, particularmente como ele é ilustrado naquele diagrama da linha ascendente, interrompida com uma cruz, e aí só uma linha pontilhada indicando, suponho, onde ele deveria ter ido. Não parecia algo tão simples como um aborto negativo conclusivo.” Então, Deren oferece sua própria interpretação: “Na verdade, aquela linha, depois que começa a subir, não só desaparece no ponto X do diagrama de Bateson. O que acontece é que a energia que seria necessária para a aceleração ascendente da curva climática é canalizada, ao invés, em um platô de duração. A duração no tempo, então, é enormemente estendida e pode até suportar interrupção, de um modo que a curva acelerada não pode.”

A transformação do clímax ascendente do tesão como tensão distendida em outro patamar de intensidade interativa, aqui, parece anteceder a formulação posterior de Deleuze & Guattari. Deren achava que o diagrama de Bateson dizia mais a respeito do próprio antropólogo do que dos balineses. A grande diferença entre a compreensão dos dois se encontra, talvez no final, onde ela diz que a duração canalizada de um platô pode suportar interrupção de uma maneira que uma curva ascendente não pode. O prazer não se dá apenas em saltos quantizados, mas pode se modular gradual e continuamente, como o tônus muscular.

Onde Bateson enxerga uma espécie de negação da culminação por meio de uma estabilização intensiva, Deren sente uma intensificação progressiva que vai além do pontilhado da curva sem jamais se estabilizar. Sem, exatamente, negar o clímax, mas sim distendendo e modulando sua espessura. Ela também chama atenção para o fato de que a demora para chegar ao clímax na atividade sexual não é considerada uma negação, mas sim um feito desejável. Onde Bateson entendia uma espécie de negação do orgasmo como princípio da modulação temporal de toda atividade tensional, Deren enxerga uma outra versão do orgasmo. O que resultaria, também, em uma outra prototipagem do aparelho libidinal para as descargas tensionais e os platôs de duração modulados pela arte. Ou seja, a descarga dissipativa depois de tensão cumulativa ritmada não é o único modelo do orgasmo. Você pode, inclusive, tomar o gozo como modelo de atividade tensional sem retirar dele um único esquema dinâmico de carga e descarga (no mínimo você tem as possibilidades de múltiplas descargas sem tempo de recuperação, no aparelho feminino; e de descargas secas que antecedem uma descarga maior, no aparelho masculino; isso sem nem entrar nas inúmeras possibilidades de distensão e modulação de intensidade de tradições tântricas e que tais).

Deleuze e Guattari se servem dessa ideia de um platô de duração que não almeja o clímax para conceber a estrutura experimental do segundo volume de Capitalismo e Esquizofrenia: Mil Platôs. O platô para eles constitui uma multiplicidade que está sempre no meio, sem começo e sem fim. Essa possibilidade de uma intensidade distendida leva os autores a retomar o “Corpo Sem Orgãos”, de Artaud, na direção de experimentalismos que pudessem destituir a compreensão funcional e rígida das partes do nosso corpo, tanto pela via da ascese quanto pela via do excesso.

A cineasta foi inspirada pelo mesmo movimento de distensão interativa. Mas Deren aponta para a concreção de uma economia libidinal distinta.

 

3.

Em 1960 Nam-June Paik visita Karlheinz Stockhausen com a intenção de explicar para ele que a forma fixa teria que ser mantida na arte experimental por ser baseada na forma do sexo (uma só direção, um só crescendo): “(você pode imaginar um crescendo multidirecional? a gente só tem um coração) clímax, catarse, natureza humana — Ying Yang — Natureza da natureza — próton e elétron”

Mas, antes que Paik dissesse qualquer coisa, quase como se já antecipasse seu argumento, Stockhausen começa a falar que é preciso se livrar da forma fixa porque ela é como o sexo, ela não tem liberdade alguma. E aí então Stockhausen teria lhe explicado a possibilidade de um amor livre e calmo.

Deren não estava dizendo o mesmo de Stockhausen. Além de afirmar que a descarga dissipativa não é a única forma de culminação, Deren sabia que há múltiplas maneira de se compor um crescendo. invoca uma frustração de clímaces para construir platôs de tensão, um circuito que, como diz Sarah Keller, constrói sentido a partir de ressonâncias, e não de resoluções. Mesmo quando uma forma se completa, é como gesto ilusório que precisa se desfazer no próximo movimento. Seu cinema é feito de uma frustração contínua e engenhosa que se demora nas ambivalências enganosas da imagem filmada e montada. Como nas sacadas impossíveis (impossible gags) de Buster Keaton, mas com um ímpeto de ritualismo cíclico, mais do que de vaudeville

Susanne Langer diz que o ritmo é a resolução de tensões anteriores por meio da configuração de novas tensões. Deren resolve as tensões que cria de modo que a resolução continua reversível, podendo ser anulada numa reversão seguinte, ou retomada em outro plano de concreção. Os gestos que se repetem em At Land criam um espaço quase abstrato onde o gesto se transforma em protocolo iterativo. É como se estivessem acontecendo antes e depois de sucederem na tela.

Ao terminar o seu artigo sobre corte, “Creative cutting”, Deren conclui que a “duração intensificada, ou pelo menos continuidade, é atingida ao nunca se permitir que um único movimento se complete — como no salto de dança fílmico”. A interrupção do gesto intensifica a tensão, ao invés de dissipá-la. De fato, a interrupção permite a transposição dessa tensão para outro plano. Este parece ser o procedimento essencial do cinema de Deren. Um passo começa na praia e termina numa sala de jantar, a aproximação de uma personagem que deveria ser concluída num plano acaba recomeçando, sem nunca concluir seu movimento, acumulando e modulando tensão. Essa tendência de cortar um gesto no meio carrega tanto a possibilidade de deferir indefinidamente a sua concreção quanto a possibilidade de carregar a sua dinâmica, transfigurada, para outro plano.

Nesse artigo, ela sugere que toda composição cinematográfica se baseia na transformação de duração em tensão. Se o cinema faz isso de maneira explícita, ou didática, podemos dizer que toda forma de arte negocia a transformação da tensão material contida num campo problemático num jogo de gozo ritmado. Toda arte é coreográfica no tanto que desata apetições corporal por meio da diagramação interativa de apetições materiais atadas. Toda arte é erótica na sua modalidade de negociação ritmada de gozo. Dá até para dizer que arte é a transdução de tensão material em tesão ritmado.

Tanto as ideias quanto a prática artística de Deren propõem uma modulação da tensão que não se baseia apenas no movimento unívoco do prazer como descarga dissipativa. Contra Freud, gozo não é só redução de tensão. Você não precisa nem ser masoquista, exatamente, para perceber que o gozo pode estabelecer patamares insuportáveis de intensificação interativa. Para Elizabeth Grosz, toda a obra de Freud pode ser compreendida como uma “generalização e abstração do modelo do orgasmo masculino como fundamento principal da própria vida”. Talvez seja um exagero dela, mas é no mínimo uma crítica pertinente (o mesmo talvez possa ser dito do Bergson de Evolução Criadora, como já apontou Rebecca Hill, onde a vida é essa tumescência que se carrega contra a queda da matéria só para explodir).

Ao invés, então, de pensar na arte e no sexo como rodeios cada vez mais complicados rumo à morte, Deren nos ajuda pensar a própria vida como um rodeio a todo tempo atado, rompido e complicado em direção ao gozo discreto e contínuo. Deren é esse tipo raro de artista que revela e aponta os mecanismos por trás dos efeitos ao mesmo tempo que se serve, na maior cara de pau, de todos os mecanismos disponíveis. Ela que escolheu para si o nome Maya, afinal (materialidade e ilusão ao mesmo tempo). Como sugere Ute Holl, autora do ótimo Cinema, Trance and Cybernetics, o conhecimento das regras de transformação não impede que Deren também acabasse possuída pelos transes que ela própria criava. Se o atual colapso da civilização passa também por libido velha e mal-encanada, se o bolsonarismo é principalmente um tesão mórbido e impotente, a arte experimental e popular precisa fazer sua parte na diagramação de outros jogos eróticos e na produção de outros modelos de tensão e descarga. O tesão é a própria espessura interativa da vida, e o seu espaço de fase contém muito mais ritmos latentes do que o mero acúmulo tenso rumo à dissipação.

 


Vinícius Portella é escritor e baterista. Concluiu este ano o doutorado em literatura comparada pela UERJ e publicou, em 2017, o romance Procedimentos de Arrigo Andrada.


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