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A parte e o todo

Comecemos pelo título do filme: “no coração do mundo”. Que lugar é este a que alguns personagens se referem repetidamente, e que o filme tenta transformar em mote, em um leitmotiv romântico que atrai os protagonistas, impulsionando-os? É um lugar abstrato, o ideal íntimo de cada um, mas que teria a força poderosa de colocar esses personagens em movimento, em direção a um objetivo. No Coração do Mundo é isto: um filme sobre personagens que, diante do marasmo de um cotidiano estreito, sem horizontes, que se apresenta no município de Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte, desejam fazer a vida andar. Sair da estagnação, dos limites de um espaço periférico, com seus rostos conhecidos de sempre, a violência de sempre, impelidos por um sentimento de urgência expresso no título do filme.

Esse movimento está presente nos três personagens que poderíamos chamar de principais: Selma (Grace Passô), Ana (Kelly Crifer) e Marquinhos (Leo Pyrata). Cada um deles tem diferentes razões para buscar sair da estagnação. Selma é ambiciosa, o tipo arrivista que, para cada janela aberta, traz um negócio pronto a tiracolo. Ana não tem uma inquietação particular, mas se vê impelida a reagir ao marasmo do dia a dia ao dar-se conta da violência diária do trabalho como cobradora de ônibus e do fardo carregado com o pai doente. Marquinhos é o típico filho-problema, um pouco maloqueiro, ocioso, que no fundo não consegue lidar com a chegada da vida adulta e permanece preso pelo cordão umbilical à condição de filho, enquanto vai se dando conta de que a vida está sendo engolida pelo marasmo que ele próprio cultivou. É o malandro que percebe que virou mané. Lá pela metade do filme, Selma apresenta ao grupo a possibilidade de um golpe, e juntos esses três personagens tentarão, por vias tortas, fazer a vida andar.

Esse sentido de unidade, de comunhão entre movimentos, no entanto, é menos evidente e menos vital do que os dois parágrafos acima sugerem. Por que isso ocorre? É que No Coração do Mundo parece um filme dividido entre dois impulsos. De um lado, um desejo de se assentar no cotidiano, de dar a ver uma vida em comunidade, por meio de uma estética da convivência que se manifesta nas longas cenas de conversas, longas confabulações entre personagens que se conhecem desde sempre, nas quais aflora certa intimidade, mas também a letargia da qual os três personagens em questão procuram escapar. De outro, coexiste igualmente no filme uma certa febrilidade formal, um desejo de invenção que se revela no diálogo com o universo pop e com o cinema de ação, mas, em termos mais amplos, em um gosto generalizado pelo artifício, a vontade de pensar o cinema como criação de formas, criando jogos de imagem com a decupagem (lembrar do monólogo de Grace Passô sob o fundo falso na escola). Nesse sentido, digamos que No Coração do Mundo lembra tanto o cinema de André Novais Oliveira, parceiro, sócio e amigo da dupla de diretores, quanto Quentin Tarantino – por exemplo na cena de Grace Passô limpando a arma enquanto fala com a mãe ao telefone ou no triângulo de traições que resulta no tiroteio no final.

Falar em dois impulsos não significa falar em dois sentidos necessariamente contraditórios. Mas é curioso que a calmaria que o filme constrói nas longas cenas de conversa, longe de constituir um polo repulsor, que impeliria os personagens a querer sair dali, revele-se, na maioria das vezes, tão cativante: há uma evidente atração por parte do filme (e de nós espectadores) por aquelas longas confabulações. Se os protagonistas repudiam o dia-a-dia e procuram dele escapar, de sua parte o filme parece vidrado nesse cotidiano: é evidente que o filme ama Contagem, mesmo que seus personagens detestem (vide Ana: “Que bairro feio!”; ou Selma: “Meu tempo aqui já deu”). Isso está expresso no olhar da câmera. Tanto que, sem se restringir aos três protagonistas, No Coração do Mundo desdobra sua trama por uma série de personagens secundários que, nos melhores casos, como os de MC Carol, Bárbara Colen e Robert Frank, imprimem um magnetismo particular apenas por sua mera aparição.

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Por isso o mote romântico “no coração do mundo” é como um chiclete que não gruda: ele paira naquele universo como um desejo, mas não chega a constituir um motor, e afunda em meio ao fascínio do filme pelo cotidiano. O romantismo expresso nesse leitmotiv é antes uma vontade de romantismo: é algo que atrai o gosto de seus diretores, mas que não chega a impregnar o todo do filme. Nisso No Coração do Mundo revela sintomas típicos de um longa de estreia (ainda que, tecnicamente, não o seja, se considerarmos a participação de Gabriel Martins em O Nó do Diabo): é um filme em que muitos elementos, desejos, ideias coexistem sem nem sempre harmonizarem-se plenamente, nem sempre encontrando uma unidade que permita a esses impulsos aprofundarem-se. É um filme de momentos fulgurantes, mas cujo todo hesita. Repleto de boas ideias de direção, mas com um roteiro que insiste inutilmente dar todos os nós possíveis em uma estrutura multiplot um tanto manca. Mas, ainda assim, um belo filme.

Falemos dos bons momentos então, pois é por eles que o filme importa. O primeiro é, claro, a cena de abertura, a homenagem que Ana contrata para o aniversário de Marquinhos. Em plano-sequência, a câmera vai se aproximando de Leo Pyrata e Kelly Crifer, que trocam olhares e palavras quase inaudíveis sob o espetáculo de luzes, fogos e a voz de Karine Telles, terrivelmente animada e terrivelmente falsa. É um grande momento de síntese em que o afeto e a intimidade coexistem com o interesse do filme pelo artifício e pelo espetáculo. Até que o romantismo da cena é bruscamente interrompido por um tiro, como um balão que estoura e deixa ver a fragilidade do artifício. Essa primeira manifestação da violência será retomada em outro grande momento, logo adiante: na escola, Marquinhos e Selma tentam empurrar para o diretor seu trabalho produzindo fotografias da classe. Corte para Dona Sônia (Rute Jeremias) encomendando a camiseta do filho. O prosaísmo da cena e a câmera impassível, que não se envolve emocionalmente, somados à justaposição criada pela montagem, instituem uma brutalidade que nos faz lembrar de Samuel Fuller.

Marcantes também são os rostos de Kelly Criffer e Leo Pyrata por todo o fim do filme, passado o golpe malsucedido – na mata, na estrada, na volta ao cotidiano. São rostos que misturam medo e um sentimento de derrota, de fracasso. Sentimento esse que ganha ainda mais amplitude na cena em que Leo Pyrata, já de volta ao bairro e após se despedir de MC Carol, percebe que está sendo observado pela mãe. Esse peso do olhar da mãe, com o fracasso entre os dois, seguido por uma mãe que retoma seu caminho para o trabalho sem dizer nada, pois há distâncias entre os dois que, para o bem de ambos, é melhor que permaneçam intactas, está entre os grandes momentos do filme.

No Coração do Mundo foi desenvolvido a partir de dois curtas realizados por Gabriel Martins e Maurílio Martins anteriormente: Contagem (2010) e Dona Sônia pediu uma arma para seu vizinho Alcides (2011, este apenas de Gabriel). Nesse sentido, o filme é uma espécie de acerto de contas com um universo, tanto real quanto ficcional. Desse apego a um universo resultam tanto a força quanto as fraquezas do filme: pois se por um lado ele preserva e amplia o que havia de melhor num filme como Contagem, por outro, essa ponte direta entre os curtas e o longa não se faz sem um certo ruído, criado pela estrutura multiplot. A unidade do todo não é apenas a soma das partes. Que na próxima aventura os diretores consigam encontrar essa unidade e levá-la às últimas consequências.


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