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O fundo do coração e outras superfícies

“Nada de grandioso no mundo se realizou sem paixão”

Hegel, Prefácio à Fenomenologia do Espírito

“A Realidade não é arte, mas uma arte realista é aquela que cria uma integral estética da realidade”

André Bazin, O que é o cinema?

A sentença que propriamente ameaça saltar para fora e estilhaçar, com uma pressão de hidrogênio afetivo, o bojudo universo centrípeto dos personagens de No Coração do Mundo – sim, eles sonham, mas moram em Contagem -, propulsionando o filme mais diretamente para o hors champ da consciência atenta do espectador, parceiro infiel daquelas vidas em naufrágio que nos são contadas em planos longos e saturados de falas e gestos idioletos – é aquela em que Selma (Grace Passô) explica a Marcos (Leo Pyrata) o significado da condição ‘no coração do mundo’: “O coração do mundo é pra onde a gente quer ir, é onde a gente quer pisar, onde o nosso desejo manda”. É bom lembrar ao espectador que o plano de fundo desta elocução idealista de Selminha é um falso plano clássico, pois a centralidade, a ausência de brilho, a profundidade de campo do fundo de cordilheira enevoada pertencem a um contexto de representação publicitária (eles querem vender fotos numa escola, e para isso, como de hábito em toda bild publicitária, constroem uma falsa imagem do mundo em que vivem); a sentença onde se expõe e expia a noção de coração do mundo tem, portanto o papel de instaurar uma autenticidade desejosa dos personagens – que pela primeira vez no filme se revelam de maneira mais tematizada, através de uma elocução escolhida, que flerta com a metáfora, se encanta como performance e almeja à sobranceria metafísica -, mas sobre um fundo rigorosamente inautêntico, como aquelas sessões de portrait de Nadar de que o cinema artificioso nos acostumou desde suas pré-Origens; então, uma questão, que nasce da intrusão anterior: não seriam autênticos, para os que sonham como estes aqui, os expedientes sórdidos, criminosos de que se servem para dar um sobrevoo sobre a imanência da miséria, e assim instaurar o seu coração do mundo sobre os escombros do que sobrou?

Um plano clássico (bem centrado, sem brilho evidente da manipulação a posteriori, com profundidade de campo devedora de paisagem europeia) denuncia assim o classicismo em nosso ‘tempo’ como um a fórceps do capitalismo para reproduzir o real e o valor segundo um desejo degradado de consumo. Este é o plano com maior evidência crítica (o mais para-si, talvez) de No Coração do Mundo, mas também o que dá ao filme uma unidade rigorosa e o impulsiona em direção a seu destino de crônica desolada; num sentido negativo este plano fake se sobressai (revejam o filme, e verão um quadro sobre o quadro que o define como o sucedânio falsificado de um verdadeiro plano), e contempla todo o filme de uma baixeza acintosa, pois foi construído por Selma e Marquinhos para vender ‘se possível a própria alma’, devedor portanto de um classicismo passadista, de um mundo artificioso, compósito, uma vez que as personagens, os afetos, os valores e os lugares de ação de que o filme é densamente povoado, pertencem antes aos perdedores e aos irreconciliados – todos aqueles que não cabem nesta ética de espírito protestante e nesta estética Jugendstil, que os montes enevoados evocam, e que portanto aparecerão bem na foto, de Nadar a Doisneau; um mundo horizontal completo: dos pequeno-burgueses endomingados aos punks libertinos vendidos a 40 dólares no MOMA -; a irreconciliação, vista pela filosofia unicamente sob o ponto de vista da negação, pode gerir e gerar mundos, pode ser a argamassa de um plano de cinema, a pedra de toque de um diálogo no campo e contracampo? No Coração do Mundo nos mostra que sim, e ainda: que a irreconciliação, que nos acostumamos a ver sob a forma pura da diferença em filmes de Godard, Kluge, Farocki, Schroeter, Syberberg (os alemães são especialistas em televisivas épicas diferenciais, todas perfumadas com doses cavalares de má consciência) pode revelar-se sob os auspícios da jouissance, e nos dar uma narrativa saborosamente temperada com gestos inauditos de personagens que não caberiam jamais numa peça de fatura clássica, mas que pela intensidade de suas elocuções e pelas posições estratégicas no espaço do plano em cinemascope (ontem para serpentes e enterros, segundo Fritz Lang, hoje talvez para enterros e estudos de caráter, como descrições de estados de coisas terminais) que recriam um classicismo (sim, esta arte antes de tudo da presença) à parte, feito de pespontos e arrazoados que agora ocupam o centro do plano e imprimem uma densidade rarefeita, como uma centralidade desbalanceada (No Coração do Mundo, obra irreconciliada sobre a impossível mas desejável reconciliação, é um filme de oxímoros) à ação dramática e à plasticidade do que se revela hic et nunc, acolhido por um plano de cinema, arte talvez ultrapassada para a representação de algoritmos, mas idealmente talhada para o corpo ou conjunto de corpos constitutivos da mundanidade; mas afinal, do que estamos falando?

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Falei mais acima de jouissance, mas deveria falar também de mais-valia do gesto bem torneado, de idiossincrasia amaneirada do trabalho vocal (sotaque incluso, como desenho de som: lembram-se da intrusão audaciosa do primeiro tiro, que de princípio já define todo o filme?), de disegno equilibrado da narrativa, de filme ensaiado e ensaiado para dar ao espectador o gosto do que nos é mostrado: sim, falei de jouissance. Mas serão os filmes irreconciliados, a princípio social, mas ao cabo formalmente: abundância de tempos mortos e discurso moroso, desvitalizado num filme de ação, ou ações; um senso de humor entre chaplinesco e becketiano lumpemproletário, pois fala-nos do corpo atrapalhado pelas escaramuças operadas pelo espaço, onde o espaço e a narrativa, que deveriam acolher o corpo antes, fazem o possível para exclui-lo, mas também de uma fala constantemente equivocada, difratada, incapaz de realmente exprimir o que se passa dentro dos personagens, e portanto gera com frequência o quiproquó, arrematado em geral por um palavrão, espécie de ato final da cadeia linguística. No Coração do Mundo é um título paradigmaticamente clássico (quantas vezes não sonhamos associar classicismo e mundo, res e Ideia, e portanto habitar um mundo que não fosse mais alteridade, habitar seu coração e chamá-lo de nosso?), mas na ausência de um classicismo impossível senão for pelas vias tortuosas da publicidade ou evocações suspeitamente kitsch de nostalgia das Origens, o filme escolhe a irreconciliação como a única pedra de toque para a resistência nos tempos em que o plano de cinema abdicou de ser um plano, em nome de uma miríade de imagens sem nome, para recuperá-lo com a força e a fraqueza com que o filme nos conquista e abandona pelo meio do caminho (como em toda vida digna do nome, filmes ascendem e decaem, como inspiram e infartam, e No Coração do Mundo jamais vai abdicar destes picos de pressão barométrica, pois, como todo filme de jouissance mas também de irreconciliação, quer nos afetar tanto quanto criticar um estado de coisas descrito e ‘ressentido’). No Coração do Mundo se serve das coisas e dos corpos como de uma plataforma para a Ideia ausente, e no-la restitui como pujança inspiradora para fazer desta crônica de coitados cujo telos é incerto e a manhã titubeante uma pequena épica do cotidiano. Será possível a esta altura outra épica senão a desenhada pelos braços em arco na hora de desembrulhar o papelote de heroína, ou dos passes em falsete dos funks da noite infindável pelo consumo de maconha? Pedro Costa, em No Quarto da Vanda (2000) já havia estabelecido todo um programa (que ainda permanece vigente em No Coração do Mundo) modernista e ético para os tempos que correm: a irreconciliação é a força motriz de uma arte pequena e instantânea, feita de gestos escusos e entonações fugidias, mas a audácia presente tanto em No Quarto da Vanda (filme mais neutro-lumièriano sob o ponto de vista cinematográfico, como devedor plástico de Giacometti e, pelo tamanho e escopo, mais épico que No Coração do Mundo, que nos apresenta uma ação entrecortada e generosamente repartida entre todos os seus personagens – um filme conjunto, com um trauma tópico pelos seus “heróis” -, enquanto que em Costa a Vanda reinava como rainha decaída) quanto no filme de Gabriel Martins e Maurílio Martins é que eles insistem em moldar uma arte desaparecida e uma gente desaparecida para o grand monde segundo o diapasão que um dia foi de nobre fatura – em No Quarto da Vanda, toda a história da plástica clássica o assombra como se do fundo de seu próprio abismo; em No Coração do Mundo, é a narrativa e as personagens que referenciam o filme num mundo perdido para os contemporâneos, muito severos, muito cheios de para-si para, como ontem, aprenderem como Pasolini aprendeu com Chaucer e Boccaccio, aprenderem e apreenderem a embocadura do povo, aqui tão presente, o mundo da jouissance: rodas de boteco e papos desaforados abundam numa espécie de hors champ muito próximo da superfície em No Coração do Mundo, a gaiatice e seu humor debochado imantam o filme do princípio a fim, e a irreconciliação se demarca mesmo pelo fato de que esta não anula a desolação, não é um engenho químico que se oponha ou sirva de cura para o horizonte deprimente de todo o filme. Ambas convivem com pertinácia única, de forma tal que podemos mesmo pensar em termos dialéticos (reconciliação para Hegel, irreconciliação para Kojève e Bataille, em todo caso falaremos sempre do verso e do reverso do idealismo), e fazer do close no rosto dolorido de Ana ao final o contracampo do primeiro tiro ouvido, justamente aquele que reduz a pó a comemoração na qual o casal se comprazia, na abertura do filme: andamos muito, ou o princípio retoma-se no fim, como em tantas summas passadas mas vigentes sob o ponto de vista da vida humana, sempre cá e sempre lá para reencontrar-se ao final? Os irreconciliados, de Karl Marx ao casal Straub e Huillet, serão sempre aqueles que se sabem devedores da reconciliação como aquele sonho ou ideal do ego que jamais conseguiremos alcançar novamente, que permanecerá em potência ou virtual, a iluminar nossas ações e valores como aquela estrelinha na qual o protagonista narrador de Vasco Pratolini converte o irmão moribundo Dante, em Cronaca Familiare. Não queremos todos ser felizes, e não sabemos todos que a felicidade íntegra faz parte do embuste idealista, e que a felicidade enquanto tal consiste unicamente na fruição destas extensões em movimento (os corpos, humanos ou não) e intensidades afetivas, nestes papos e biritas que povoam com singular alacridade o filme de Gabriel e de Maurílio, como se o filme não devesse acabar e a vida não devesse estacar no contracampo? Pasolini falava do filme ideal como o plano-sequência infinito da realidade, e tantas cenas de No Coração do Mundo merecem esta supra-extensão abissalmente fascinante: a sequência de abertura durante a festa do casal, Dona Sônia e seus revezes com o filho, Marcos e Selma tentando acender um impossível cigarro (imagem-paradigma do propósito do filme, de sua impossibilidade constitutiva?), a sequência em chiaroscuro e tempi dilatados do assalto, digna de antologia… o fundo do coração também é uma superfície, pois tudo o que nos afeta através da pele acaba por atingir a alma, a superfície das superfícies ressoantes: o fundo do coração, com suas iridescências incandescentes, seus lampejos e ricochetes energéticos não seriam a endoscopia endógena dos distúrbios que se passam na superfície da derme, e portanto ligam-se seguindo paradigmas míticos, opostos segundo um destino monista. No Coração do Mundo, em seu programa de título, já não parece fazer uma referência ao classicismo que nos viu nasceu mas também, no caso desta arte de presenças cada vez menos valorizada em um universo de simulacros, que nos afetou desde o cinema físico dos primórdios ao cinema espiritual dos nórdicos, e que uma e outra coisa pertencem ao mesmo mundo, superfície e profundeza para um mesmo homem?

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Falei muito em reconciliação – ou seu oposto, que acaba por reencontrá-lo após íngreme caminho -, mas esqueci-me talvez de ser mais precisamente revelador no tocante ao conceito de happy end. Happy end? Sim, também, pois se trata antes de tudo de uma liquidação das pendências, de uma anulação de todo saldo devedor, e portanto da jouissance obtida como, à semelhança do ato sexual, todo esforço acaba por redundar na satisfação budista do Nada. A reconciliação, de Hegel e para além de Hegel, nunca foi outra coisa: estamos quites, não devemos mais nada (parênteses do capitalismo: você pode vender sua alma ainda, Adrien…). Se no horizonte deste filme irreconciliado, que se perde para se encontrar e se busca sem nada achar – de fato, o filme nos abandona no meio do caminho, com Ana no ônibus -, é possível falar-se senão em uma profunda irreconciliação, na impossibilidade portanto de saldar qualquer dívida: salário, busão lotado, esporro do patrão? Em certo momento Marcos, a consolar um amigo que perdeu o irmão numa ação criminosa, revela-nos o ponto da sutura, aquele sem o qual nenhuma arte, obra de representação, poderá aceder ao diálogo com o Outro-espectador, sob o risco de (agora sim, num mau sentido) permanecer no meio do caminho, e nada revelar do objeto de que trata: salário, busão lotado, esporro do patrão. É possível abandonar este triângulo de maldição, e permanecer uma arte autêntica? Se não é possível, seria necessário? Os moradores de Contagem sabem que o sistema lhes deve, e muito, e tratam de cobrar aquilo que lhes é de direito. Quando Nietzsche falava em dívida e escravidão, falava é claro em sua psicose (o psicótico é aquele que perdeu absolutamente a inocência: haverá sempre alguém para julgá-lo por detrás da cortina que se abre para a manhã, sempre uma mediação sob o em-si das coisas aí), mas também em Justiça: a justa medida de representação para um mundo cada vez mais injusto, mais indigno daquele ou daqueles que se incumbem de interpretá-lo. O cinema feito hoje no Brasil aprendeu com alguns grandes (Costa, Straub e Huillet, Green) que a reverência à arte clássica será sempre nosso ponto de partida, jamais de chegada: assim, No Coração do Mundo é um grande filme americano transplantado para os subúrbios brasileiros, mas nenhum tique, entonação ou impressão da estrutura a princípio americana permaneceu para contar a História. Assim como aprendemos a reverenciar a arte das Origens, também sabemos que é essencial saber abandoná-la num ponto de inflexão da curva que assinalará o nosso verdadeiro nascimento, diante de nós mesmos, e, em consequência, para a alteridade que será sempre aquela encarregada de nos julgar. Num tempo cada vez mais feito, consumido e julgado pela televisão e agora por youtubers absolutamente tatibitates, um grande cinema precisa continuar a ser feito, mesmo que sua lição não possa ser ouvida pelo majoritário sistema de consumo e julgamento vigentes. Tanto melhor. O Segredo sempre pertenceu à arte como seu mais fiel tesouro, e a revelação desta grandeza deve ser dirigida sobretudo àqueles capazes de merecer a sua luz, e portanto digerir a sua generosa oferta.


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