Uma Relação Delicada (Abus de Faiblesse), de Catherine Breillat (França/Alemanha/Bélgica, 2013)

março 1, 2015 em Em Cartaz, Luiz Soares Júnior

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Delito clínico
por Luiz Soares Júnior

Esta idéia da morte instalou-se definitivamente em mim como um amor.(…) Não penso que o dia em que me transformei em um morto-vivo tenha sido efeito de uma série de acidentes – a impossibilidade de descer as escadas, de me recordar de um nome, de me levantar – que teriam causado mesmo inconscientemente a idéia da morte, mas estes acidentes trouxeram consigo a idéia de que o grande espelho do espírito refletia agora uma realidade nova”.

O tempo redescoberto, Marcel Proust

I wish I had a dollar for everyone that died within that year. Got ‘em hot by the collar, plenty an old maid shed a tear/ Now within my heart, it sure put on a squeeze/ Oh, that Legionnaire’s disease”

“Legionnaire’s Disease”, Bob Dylan

Em 1978, Fassbinder participou do filme coletivo Alemanha em Outono, e expôs-se como nunca em um jeu de massacre de que é a testemunha e o algoz. Discutindo de forma exaltada com a mãe, cheirando cocaína, engalfinhando-se fisicamente com o namorado da época, um “retrato do artista como jovem cão” se encena ali; se imola também. À imagem do grupo “terrorista” Baader Meihoff, massacrado na prisão pelos esbirros do Estado, o artista precisa expiar sua alienação, sua auto-complacência, seu narcisismo in extremis: o idealismo é indissociável, nestes tempos e sob estes arcanos ideológicos, do masoquismo. Que espécie de pedagogia política pode ser catalisada por este confronto artaudiano com seus próprios limites? O que pode este corpo, alquebrado e intumescido de droga, ainda nos ensinar? Um exorcismo da fase maneirista se experimenta: os malabarismos, os serpenteios e arabescos delineados (devaneados) pela câmera-stylo não são mais possíveis; ao fantasma da mercadoria, substitui-se o valor de exposição do corpo do artista; nesta cartada didática fatal, só lhe resta a imagem contundida do Outro, fixando-o ao espelho: retificando-o, medindo-se com ele, julgando-o.

Se o sketch de Fassbinder investiga a problemática questão do “diretor na cena” sob os auspícios de uma operação terrorista de dessacralização, o filme de Breillat aposta numa démarche fantasmagórica: o corpo doente de Maud (Isabelle Huppert), sob o efeito da histeria e do isolamento, vai sendo gradativamente infiltrado por um Outro (a frase final, rematada por um ultraclose: “Era eu que fazia aquilo, mas não era eu”). A doença consiste nesta alteridade inassimilável, monstruosa, que nos distorce os traços, desconecta os gestos e finalmente turva o julgamento (“Era eu que assinava os cheques, isso não posso negar”). O filme de Breillat é um estudo de caso deste corpo (o seu corpo) alterado/alterizado pela doença: uma cratera se abriu na existência desta mulher, tornou-a objeto de outros sujeitos, alienou-a irreversivelmente.

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Uma porção considerável do filme consiste no registro entomológico dos estigmas que o mal vai inscrevendo sobre a carne, os devires novos que ele suscita (acompanhamos as suas crises por minutos morosamente suspensivos), da figuração inumana sob o império da qual agora existe (muitas vezes estirada no chão, arrastando-se; ou marionete convulsa, torturada pela hemiplegia; minha mão esquerda agora é a direita daquele de quem dependo). Mas este corpo, que aprendemos a investigar em sua inépcia e a esquadrinhar em sua opacidade biológica, designa agora uma via-crucis particularmente perversa, na qual o Outro, até então arrimo e dom da (à) subjetividade, pode vir a tornar-se o seu tentacular algoz, aquele que me aparta de mim mesmo – do que posso, do que quero. “O que chamamos de Mal consiste em uma diminuição de nossa potência de ser, assim como suas causas, pois o único bem consiste na alegria e em tudo o que ela provoca” (Ética, Spinoza). Uma Relação Delicada descreve este percurso de alienação da força do sujeito como efeito da ação vampiresca de seu meio.

A transparência do filme se empenha em tornar acerbamente visíveis as arestas desta cumplicidade temerária, em escrutá-las: crises, ataques, gritos estertóricos. O seu gênio está em radiografar os cimos, sismografar os extremos com uma candidez isenta de complacência (auto-complacência) e cruel, se entendermos crueldade por um exercício metódico de lucidez. Uma ataraxia soberana, mas galvanizada pelo plano médio; suja de sangue e pus. Quando descreve ou anota (um encontro com a filha, os telefonemas que acordam Maud), porém, o filme perde em atmosfera e textura, emperra e vulgariza-se. O material cotidiano não interessa em si, mas como um intervalo prenhe de tensões entre um declive físico e outro. Breillat adota a tática terapêutica de emascular a intensidade da agonia com a introdução meticulosa de mediações, de distâncias e suspensões: o tempo dilatado concedido às crises; o cômputo dos usos e abusos do dinheiro; os sintomas histéricos da personagem. Mas é na clareira do sofrimento que o filme se posta; é esta perspectiva do corpo mortificado, temperada embora por uma certa ironia de “registro medical”, que o norteia.

Nem por isto menos intensiva, a agonia se torna um percuciente revelateur do corpo da personagem – o lugar e o tempo propícios à sua catalisação. Lembro de um trecho de Sartre, em A Imaginação, no qual filósofo escrevia que o desejo permite um desvelamento “do corpo enquanto corpo” (cito de cabeça). Nossa visão é sempre situada, isto é: sempre vemos não uma mão delgada, peluda ou com dedos oblongos; vemos uma “mão que acena”, “uma mão que escreve”. Apenas quando apaixonados, passamos a nos interessar ativamente pelas características fenomênicas do corpo: a mão enfim aparece. A paixão é um vetor de presentificação, uma experiência de suspensão ou choque – de epoché? -, que desorienta nossas referências valorativas habituais (uma mão que escreve) e nos dá a ver a mão em sua pujança fenomenológica, densamente rica. Mas a doença, assim como o desejo, também nos oferece o corpo em plenitude, em sua opaca imanência. Doentes, regredimos a um estágio mimético de indiscernível consangüinidade com a Natureza. Também aqui a autonomia plenipotente do corpo exige seus autocráticos direitos. Proust, em uma página memoravelmente cruel da Recherche, descreve as alterações advindas ao corpo amado de sua avó, quando doente; este rosto já não mais é iluminado por votos de amor ou de comiseração; choca-nos a precisão delituosamente clínica com que o narrador começa a aperceber-se do desaparecimento iminente da avó, já visível nestes vincos e ríctus com que a doença burilava a obscena verdade do corpo, enfim revelada: “As veias que atravessavam seu rosto pareciam ser não de mármore, mas de uma pedra mais rugosa. Sempre voltada para frente pela dificuldade de respirar, ao mesmo tempo em que encolhida sobre si mesma por causa da fadiga, sua figura reduzida, atrozmente expressiva, parecia, em uma escultura primitiva, quase pré-histórica, a figura rude, contundida, desesperada de alguma selvagem guardiã de túmulo”. No cinema, talvez o grande filme de horror unheimlich onde se manifesta este aterrador seqüestro do ser amado pela doença é o La Gueule Ouverte (1974) de Pialat: sim, a mãe adorável com quem escutamos Mozart no primeiro plano vai acabar por se tornar aquela opaca e inteiriçada boneca morta, cuja boca insiste em permanecer aberta.

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A restituição figurativa de uma Huppert ora na iminência da exaustão, ora convulsionada pelo esforço do “corpo próprio”, assinala-nos esta fisicalidade extrema, à beira da implosão entrópica, com que o filme comunica os tormentos da mulher. Maud é antes de tudo “um corpo que sofre”, uma consciência moral que se embaça (os risos histéricos com que comemora a progressiva dilapidação de sua fortuna pelo escroque), uma artista (é o alter ego de Breillat, cineasta) que, de sujeito de suas criações, acaba por achatar-se e aplainar-se, objeto agora de potências estranhas à sua vontade. É neste processo de objetificação que reside a importância das cenas em que Breillat, da distância conveniente de seu microscópico, observa, mensura e secciona o corpo da personagem. O impressionante trabalho de corpo da atriz serve a um propósito regressivo, de penchant masoquista: detectar o modus operandi com que o mal se apropria (desapropria) do corpo, e acaba por lhe infligir as sevícias plásticas de uma corrosiva metástase, que em breve consumirá o espectro de todo o ser. Para Breillat, o dualismo metafísico é uma convenção inútil (sobretudo em cinema, arte de caráter materialista): Consciência e Corpo, Eros e Logos, etc não se opõem. À expropriação do corpo pela doença corresponde, necessária e conseqüentemente, a possessão da consciência pelos valores “de escroque” de Vilko (Kool Shen). À decadência biológica segue-se necessariamente uma decadência da persona, uma superposição da máscara a outras máscaras, uma corrosão do Ego por outros egos; na visão fatalista e materialista de Breillat, a ruptura da coordenação motora de Maud conduziu-a a um itinerário de degradação que se espraia por domínios mais vastos e invisíveis (moral, afetivo).

Na cena final, quando Maud tenta se explicar com a família, deduzimos uma correlação causal entre o automatismo motor do corpo “dependente” e o automatismo espiritual do zumbi que assina cheques ou autoriza subornos. Uma nova tragicidade faz sua entrada aqui – não mais o Ananké dos gregos, mas um determinismo de ordem imanente: quando somos “pegos por ela”, não há como escapar; teremos de prosseguir até o fim, até a ruína do Si-mesmo, a alienação radical, ao exílio e à travessia do deserto. No plano final, Maud se auto-penitencia: “Eu assinei todos aqueles cheques, mas não era eu. Era eu, mas também não era eu”. A pá de cal na subjetividade se manifesta ironicamente neste close cerrado do rosto de Huppert: sim, o Eu foi um Outro.

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