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Imagens para o amanhã

I. Do cotidiano: Grass

A carreira de Hong Sang-soo reflete, piamente, um interesse pelos longos diálogos de plano único, uma intuição de que nos fugidios intercâmbios verbais entre duas ou mais pessoas, que se dispõem genuinamente à troca, pode-se mesmo encontrar o inestimável. O traço se repete em Grass, mas deixa de ser um dispositivo narrativo para se consumar como o retrato do mundo humano em si mesmo, como um sumário essencial das relações. Através de bate-papos, marcados por imponentes músicas clássicas, em cafés e restaurantes, o coreano sequestra, do drama-espetáculo que goza de um protagonismo na história do cinema, o valor de representação emocional e até existencial: trata-se de uma “cotidianização” dos grandes dramas humanos, uma verdadeira epopeia do ordinário que inscreve, nos encontros mais casuais, coincidentes e passageiros o peso do mundo. Cada conversa respira pelo paradoxo: em simultâneo, o epítome das confusas permutas de afeto e desafeto que atravessam o espaço e o tempo, que se escrevem e reescrevem em todo lugar a todo momento – e continuarão a fazê-lo –, e o elogio à singeleza do particular, à aproximação de diálogos que jogam com um passado pessoal, em meio ao acaso, para chegar ao irrepetível; para formar uma conversa que nunca antes houve e nunca mais haverá e que, em toda a história do universo, só pode habitar uma insignificante fração espaço-temporal.

A estética da contenção é operada pelo limite: personagens chapados em planos sem profundidade de campo, nenhum movimento em quadro para além dos que participam ativamente na ação, cenários que contêm apenas o fundamental para a composição funcional do espaço e tudo em preto e branco. Cada plano é uma apoteose do imediato, um presente no qual o produto particular do acaso é absoluto. É a redução máxima dos acessórios para sublinhar e amplificar os fundamentos: apenas o elemento humano e nada mais. O plano como sedimento-síntese de uma medula existencial: a comunicação e os seus efeitos. A identificação da ininterrupta coexistência de histórias em formação acontece pelo interior do plano: uma câmera que se move para reorganizar o recorte. O enquadramento não é invadido por novos corpos ou por novas informações e também não é espacial ou temporalmente ampliado pelo perspectivismo da montagem. Ele é sempre integral, completo – porque cada contato funda um universo próprio – e por isso é o enquadramento que se reestrutura para incluir novos corpos e novas informações. É uma escolha de inclusão. Para descobrir – e/ou construir – um novo universo, basta olhar para o lado.

Em Grass, os personagens são quase todos atores desempregados que, direta ou indiretamente, diluem suas angústias de fracasso pelo contato e é na expurgação da falência dos dramas – aos quais esses atores e essas atrizes estariam representando em seus trabalhos – que se criam os grandes dramas. A substância emocional-existencial humana autêntica como resíduo da decomposição de sua estrutura de espetáculo. É um filme sobre o presente, sobre lidar com as coisas aqui e agora, com personagens face a face o tempo todo, encarando os problemas de frente. Talvez por isso estejam sempre bebendo, não é fácil não ter as rotas de fuga do passado e do futuro. Hong Sang-soo efetivamente levou o valor da humanidade para a mesa do bar e não há gesto mais digno.

A contradição explícita ao gesto – uma vez que Grass é também imagem, representação – estaria referenciada na importante confissão de participação: a personagem de Kim Min-hee, que estaria dando corpo criativo à experiência, além de ter sua parcela de dramas, eventualmente é convidada a se juntar à mesa ao lado, que participava do seu registro. Representante da figura criativa, ela abole o distanciamento entre criador e criação, ela confirma a equalização: ela é tão participante daqueles dramas quanto os personagens sobre quem escreve; ela vive os dramas junto deles e a transmutação dos dramas em imagem é, portanto, representativa de fato. O coreano se coloca explicitamente: o diretor não está acima de seus personagens, de suas histórias, de suas narrativas; ele faz parte delas e deve respeitá-las.

A crise representacional do drama-espetáculo a qual Hong Sang-soo se refere talvez esteja relacionada a dissonâncias justamente no campo do afastamento entre experiência e representação. A maior parte da modulação dos dramas de Grass perpassa a arrogante fragilidade masculina e as formas pelas quais ela constitui um componente preponderante dos destinos dos dramas cotidianos, e o que ali parece tão natural, no sentido de ser profundamente incorporado ao recorrente, ainda é sistematicamente velado nas imagens de muitos dos que seriam considerados os grandes dramas. É apenas um dentre diversos exemplos, mas o que o coreano parece colocar, acima de tudo, é o princípio de frontalidade: frontalidade em relação à sua posição diante das narrativas, à sua posição diante da cadeira de diretor, à sua posição como homem e à sua posição como sujeito comum. Não é por menos que em uma das conversas do filme, em que um homem descarrega suas frustrações em uma mulher sem que se estabeleça uma linha de diálogo ou de troca, a câmera seja colocada atrás dele. O rosto masculino fica omisso e um movimento de câmera se vira para a parede, para encontrar a imagem quase expressionista de uma sombra que grita para o nada, tamanha é a agressão exposta. A câmera toma um posicionamento ideológico sincero diante da representação, entendendo que, apesar daquela violência estar integrada ao cotidiano, ela não pode ser representada como simples elemento de fluxo, como um inevitável estado das coisas.

O belíssimo epílogo de Grass, ao consagrar a monumentalização dos espaços de produção de afeto e a transitoriedade permanente das infinitas histórias contíguas que transformam e se transformam cotidianamente, consolidando tanto mundos próprios quanto o mundo coletivo, desvela a reverência às odisseias humanas das quais todos participamos. A complexidade do cinema de Hong Sang-soo está na abundância de sua simplicidade, no comprometimento de sua sinceridade.

II. Da irresponsabilidade: A Casa que Jack Construiu

“O travelling é uma questão de moral”, disse Jean-Luc Godard certa vez. A discussão àquela altura, que deu gênese à frase emblemática, era sobre o senso de responsabilidade que o diretor carrega – ou deveria carregar – quanto às imagens que produz. O debate era da maior relevância, porque eram tempos em que a imagem tinha a plena capacidade de não só comover, como transformar o indivíduo. A imagem era credibilizada por uma fé tão vigorosamente convicta, que alçava o valor moral das representações às alturas cósmicas. Hoje, pelo contrário, vivemos em um tempo de descrença na imagem, de arrefecimento do poder transformador das ideologias e das morais sublimadas em representação. A imagem contemporânea sequer aguenta o encargo do absurdo, já que a atrocidade tornada imagem, ao invés de suscitar o espanto diante da representação, suscita o ceticismo frente às formas de representação. Será que a imagem é verdadeira? Falsa? Editada?

A Casa que Jack Construiu é, então, um filme que estabelece um cabo de força com as condições de existência da imagem contemporânea: é uma aventura do absurdo que tenta a todo custo forçar a mão da descrença, para revitalizar a imagem através do sadismo. O que alguns chamam de provocação ou ousadia é só uma irresponsabilidade faraônica. O filme, em superfície, funciona como uma paródia da figura e da trajetória do serial killer na América, assumindo a sua perspectiva como ponto de partida estruturante. As tendências do serial killer de se enxergar como um inteligente rodeado de idiotas, como um gênio invencível e imune a consequências mundanas não são apenas características do personagem, mas um princípio de construção diegética. O filme se presenteia com uma carta branca para o imoral, podendo criar sequências que flertam com o fascismo, com o machismo e tantas outras questões sob a égide da loucura, mas sem que haja consistência estética e moral suficiente para embasar essa intenção.

É um filme que lida abertamente com a violência gráfica – e realista, distante da cartunesca de um Quentin Tarantino – e se permite criar gags de comédia em cima dela. O reconhecimento da descrença na imagem gera uma possibilidade de piada e de ironia com a representação da violência, supostamente banalizada, e da qual o próprio filme não teria culpa. Há, portanto, um intuito de pautar o sadismo na relação entre espectador e imagem, de encontrar nessa relação, que antecederia o filme, uma isenção de culpa por meio da cumplicidade. Do mesmo modo que é quase impossível fazer um filme efetivamente antiguerra a partir de imagens de guerra, visto que elas são significantemente dramáticas por excelência, é também muito difícil fazer um filme antissadismo a partir de imagens sádicas.

Um bom comparativo para se analisar as irresponsabilidades morais de A Casa que Jack Construiu é a filmografia de Michael Haneke, afinal uma das questões centrais de sua filmografia é o sadismo na relação entre sujeito e imagem. O que o torna uma figura de referência no tratamento desse dilema é o seu empenho em fazer do sadismo uma experiência aflitiva, intragável. O seu sucesso está intimamente ligado à compreensão – que parece não existir para Lars Von Trier – do poder gráfico da violência: nos filmes de Haneke, a violência é sugerida, ela acontece no extracampo e é demarcada pelo som. Os filmes não oferecem um aparato dramático visual, um sustento atmosférico de suspense e de expectativa. É bem direto: como o sadismo entre sujeito e imagem antecede o filme, o espectador traz a sua bagagem e é feito refém a partir dela; a violência torna-se um jogo de projeção pessoal com as próprias imagens que dela se tem; não existe um escape, apenas um exame de consciência franco, já que não há uma rota de transferência da dor para a ficção – aqueles que sofrem a violência se ausentam do quadro. Acaba por ser uma luta contra os próprios demônios, o que naturalmente sugere a natureza maquiavélica de se alimentar gratuitamente o imaginário da violência.

As sequências de violência em A Casa que Jack Construiu são imbuídas de todos os acessórios dramáticos que se esperam de um “filme de serial killer”. Existe um apelo dramático muito forte, uma excitação instigante pela violência, o que significa que o filme perpetua o mesmo sadismo que coloca em pauta e não é coincidência que ele saia pela tangente da inevitabilidade. Diferentemente do que ocorre em Haneke, a cumplicidade aqui busca encontrar conforto e isenção de culpa: “você também pensa como eu, viu?”. O serial killer como ícone fácil da impossibilidade de se viver em um ambiente social imperado pelo sadismo sem absorvê-lo. O personagem, assim como o filme e assim como o diretor, estão todos na posição da inevitabilidade: apenas reproduzindo aquilo que lhes foi dado, vivendo às custas das obsessões que lhes são impostas. O erro é achar que admitir isso justifica alguma coisa. Irresponsabilidade maldita.

III. Do tempo: A Árvore

A afinidade de A Árvore com Andrei Tarkovski, pulsante desde o primeiro plano, reverbera algo a que Luiz Carlos Oliveira Jr. já havia se referido a propósito de Tarkovski, em um texto para a finada Contracampo: “O presente do filme é já um passado, e não há separação entre uma e outra dobra do tempo, mas sim conluio”. A propulsão do movimento, sobrecarregada pela dilatação temporal, molda os traços do espírito, que se corporifica nas negociações entre a História e uma história. A Árvore é um filme que não existe nem no passado e nem no presente, apesar de revestir-se de ambos: a penitência do corpo diante do tempo proporciona uma redenção que ilumina a caligem das carcaças. Se passado e presente formam a dicotomia fundadora da História – o futuro é pura abstração não vivida –, é o seu ponto de contato que permite a reescritura, mas aqui ele precisa ser conquistado pela perseverança, pela obstinada peregrinação. Os personagens se esbarram no precipício do fim comum, onde o passado já está falido e o presente condenado: ali onde toda a matéria se esvai e o corpo apodrece, o espírito se fortalece, porque quando tudo se corrói, o que sobra é a fé; a esperança de que a fortificação do espírito possa reconciliar o destino do mundo ao combater um dos maiores produtos de sua pobreza: o fascismo. A decrepitude da matéria social é resultado da doença de espírito e não o contrário.

Insuflar o espírito de força vital para regenerar o espaço social. Quando ele é rico e resoluto, nada pode impedir sua jornada de fé. Aquele idoso (Petar Fradelic), aparentemente fraco e enfermo na abertura, passa a carregar o peso da humanidade em suas costas, uma potência de fisicalidade que excede o corpo; músculos motorizados pelo imaterial, pelo não visível. Os longos planos, em toda a sua temporizada glorificação de superação da matéria, ainda precisam “trapacear” para acompanhar a incursão sagrada: elipses que cortam para planos antecedentes da chegada da ação. A câmera que detém o privilégio de supressão temporal, passível de subentender as lacunas da ação para condensar a experiência. As elipses, diminutivas, em tese, da grandiosidade homérica da aventura são, em contrapartida, catalisadoras da fermentação existencial: aquilo que excede a biologia humana também deve exceder a biologia fílmica. Inversão das proporções: não o registro da substância com lacunas previstas, mas o registro de lacunas com substância prevista. O que não se vê – longe de tão somente exercer uma função sindética – esconde o infinito, o incalculável; esconde, enfim, os resultados subjetivos da fé. São “espaços em branco” que gritam por um preenchimento que não pode ser, contudo, de ordem lógica e conectiva, como é de praxe; apenas a cumplicidade de espírito pode vizinhar a dimensão do todo.

A Árvore é um filme, no geral, abstraído de futuro. A montagem alterna entre os planos de presente consumado – conduzem a ação, seja do idoso ou do menino (Filip Zivanovic) – e os de presente em suspensão – antecedem a ação, aguardam para que o passado alcance o presente. É uma correnteza rítmica de observação do presente, que ocasionalmente precisa dar tempo ao tempo: a cadência das imagens é inevitavelmente mais veloz que a cadência dos corpos. Como o movimento ou afirma a perenidade do presente ou o caminho para ela, forma-se uma diegese detida pela temporização cíclica. O eixo do rompimento está na simultaneidade e no cruzamento de jornadas de uma mesma história, que promovem o encontro impossível capaz de imprimir, no desfecho, o movimento para o futuro. Um plano cuja superfície exprime, junto da mais vaga matéria da revelação, a mais potente sugestão da revolução. Registrar os retalhos, sonhar o infinito.

Sobre a ilimitada ambição do espírito, que tudo há de conquistar:

“Agora o verão se foi

E poderia nunca ter vindo.

No sol está quente.

Mas tem de haver mais.

Tudo aconteceu,

Tudo caiu em minhas mãos

Como uma folha de cinco pontas,

Mas tem de haver mais.

Nada de mau se perdeu,

Nada de bom foi em vão,

Uma luz clara ilumina tudo,

Mas tem de haver mais.

A vida me recolheu

À segurança de suas asas,

Minha sorte nunca falhou,

Mas tem de haver mais.

Nem uma folha queimada,

Nem um graveto partido,

Claro como um vidro é o dia,

Mas tem de haver mais”

Tem de haver mais, por Arseny Tarkovski


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