Ninfomaníaca (Nyphomaniac), de Lars Von Trier (Dinamarca/Alemanha/França/Bélgica/Reino Unido, 2013)

maio 5, 2014 em Em Cartaz, Luiz Soares Júnior

ninfomaniaca1

O embalsamador
por Luiz Soares Júnior

(…) coisas fazem o papel de homens, homens o papel de coisas; aí jaz a raiz do mal”.

Simone Weil, Vivendo a vida da fábrica

Finalmente, o coração disparou e as lágrimas desandaram: era para aquele instante que o libertino, que se poluía com todas as suas forças, tinha reservado o arremate das ladainhas. É impossível repetir-vos todos os horrores que ele dirigiu sobre sua pele, sua cintura, seus traços, o cheiro infecto que pretendia emanar dela, sua vestimenta, seu espírito; em suma, buscou tudo, inventou tudo para desesperar o seu orgulho, e esporrou nela, vomitando atrocidades que um grosseirão não ousaria pronunciar”.

De Sade, Os cento e vinte dias de Sodoma

Naquele que talvez seja o Santo Graal mutilado do cinema, Ouro e Maldição (Greed, 1924), Stroheim comete uma gafe: à limpidez impassível com que o entomologista de inspiração sadiana inspecionava a morfologia de seus monstros, contrapõe-se uma sequência de natureza demonstrativa, na qual a montagem se incumbe de provar uma causalidade ou sugerir uma associação. Durante um passeio num dia chuvoso, o cromo caricato dos planos médios que enquadram o casal de noivos é sublinhado pela adjunção de um plano retórico inadmissível: Stroheim corta para um bueiro, de onde a água transborda e ratos trafegam. A partir daquele corte, Greed começa a me inspirar uma profunda suspeição, só sopesada pela sequência final no deserto da expiação: Stroheim parece não confiar no seu “taco”, nem em nós. Losey, em entrevista a Paul Agde: “Em O Criado, duas pessoas vivem num living-room no andar de baixo de uma casa, e no plano seguinte entram no quarto de dormir do primeiro andar. Não há necessidade de vê-los subir a escada, ou de imaginar qualquer coisa para levá-los a subir ao primeiro andar. Mostrar isto tornaria o filme débil (mou) e amorfo”. À elipse – aliada do imaginário do espectador, tool de inflexão irônica para o diretor –, Stroheim substitui um plano de peso intransponível, rebarbativo e conclusivo: vejam a que se destina esta história, onde deságuam estes gestos desajeitados, esta reles “paquera” entre o simplório e o patético… Greed é uma parábola moral, mas não edificante; o seu diapasão é o grotesco; sua curva (descendente) fustigada pela charge, percutida pelo irrisório; Era uma vez… Stroheim parece não acreditar no que descreve – então, talvez lhe seja necessária a nota de rodapé, o grifo, a explícita denotação, para que enfim ele possa desvelar o Ethos de seu próprio projeto.

Lars Von Trier também não crê em Ninfomaníaca – aliás, em que este homem ainda crê? Ficou para nós, ao longo destes 120 anos que nos contemplam, a idéia de que o cinema clássico foi uma “questão de crença”; eis o pedágio solicitado ao espectador, o único (mas quão vasto, em suas implicações filosóficas!) preço a pagar: a crença de que um plano de cinema contém um pedaço de mundo. Justa, precisamente: não apenas a câmera à altura do homem, mas o homem à altura do mundo. Não sou dado a pruridos de “belas almas”, mas é impossível não constatar que, para além e aquém do cinema, crença é indispensável à vida (da consciência e do sesejo, pelo menos): Ergo cogito…. Fiquemos, porém, no cinema: alguém imagina que seria possível ao amateur Orson Welles ter feito Cidadão Kane sem a crença de que era indispensável vencer as reticências do fotógrafo Gregg Tolland – às favas o bom senso e o senso comum kantianos! -, e filmar em profundidade de campo uma longa seqüência, mostrando os tetos e os pisos do cenário – restituindo-nos, assim, a totalidade e a unidade de um mundo concebido pela demiurgia de um homem bigger than life?

Von Trier, porém, não sabe “o que é isto”: ele não crê no que mostra, nem, por consequência, no “modo como mostra”. Não crê nem nos fins, nem nos meios: não é idealista, e muito menos materialista. Assim, Ninfomaníaca é um filme em sua quintessência flutuante, rodando sobre o vácuo: incerto de o que mostra (talvez por isto mostre tanto, e sempre, e atabalhoadamente), do público a atingir ou excluir, do filme a dizimar ou eternizar, Von Trier agrega à trajetória de seu quod erat demonstrandum uma inqualificável quantidade de tropos e truques. Se o que se manifesta no plano (por exemplo: o “aqui e agora” das coxas retesadas e do frêmito eqüino de Joe) jamais terá poder de presença e de significação suficientes para nos convencer de sua existência, satura-se o campo com mil e uma anotações, teoremas, intertítulos (o filme é dividido em capítulos, além de vir “embalado” em duas partes), bifurcações narrativas, zooms disléxicos – inscrições sobre inscrições, grifadas no corpo do plano-texto.

ninfomaniaca2

Em Os cento e vinte dias de Sodoma, Sade descreve uma corte de maníacos cuja decadência é proporcional à aparente exuberância de suas taras: o exercício demencial da pulsão é o índice perverso da morte. De forma semelhante, a vitalidade (semiótica) dos grifos estilísticos com que Von Trier “infla” seu filme são signo de sua absoluta inanidade: horror vacui. Ele não tem colhão para apostar nos poderes de presentificação, inervação fenomenológica e crítica que o cinema oferece. O que importa aqui é o cômputo serial, a métrica e a cifra do controle dos “efeitos” de sua griffe; tensiona-se, retesa-se, compensa-se, deduz-se e projeta-se, induz-se e coteja-se (sobretudo: mortifica-se), mas mostrar parece ser uma operação de caráter imponderável para Lars Von Trier, incapaz de nos levar a fruir um naco de experiência, ocupado demais em instituir-se como o maître a penser de um arcabouço de demonstrações ad hoc (da principal: como enobrecer meu projeto ao estabelecer, por intermédio das elucubrações do “confessor” de Joe – Charlotte Gainsbourg – uma analogia das aventuras clitoridianas da moça com princípios místicos e musicais que repousam sobre uma base monista – do Múltiplo ao Uno, que a tudo subsume, etc. Ou o paradoxo de Zenão, na segunda parte). Não há um único embate (sexual, dialogal) ou gesto em Ninfomaníaca que não venha precedido e fundamentado por um prefácio ou nota de rodapé, que não sirva de elo a uma cadeia dedutiva. Aliás: Von Trier, nas seqüências emocionalmente mais “intensas” (com o pai no hospital), concebe um tipo de montagem percutida por staccati, histericamente elíptica, cuja função consiste justamente em solapar o nascimento de qualquer gesto: cisão, erosão da figura cinematográfica por excelência. Filmar, aqui, parece ser antes de tudo um exercício de necropsia, no qual tudo o que respira sob o sol tem de sofrer o açoite de um bisturi entomológico e o efeito esterilizante do formol escrutinador: Lars, o embalsamador.

Neste afã de tudo preencher com signos e dobras narrativas, interdita-se um espaço vacante indispensável ao imaginário do espectador – e não só: a tudo o que faz de um filme uma empreitada terrorista em nome da subjetividade radicalmente minha: o fora de campo. Disse acima que a Von Trier é impensável (impossível) mostrar simplesmente – a alternativa clássica do campo como manifestação – e disse-o mal, pois, embora se sirva de esquemas estruturais e narrativos convencionais, não é este o seu “barato”. Mas, mesmo como modernista, Von Trier é incompetente, pois não há modernista que se preze (ao menos, que eu preze; e o crítico é sempre aquele que diz “eu”, aquele que valora) que não se veja obrigado a saldar as suas dívidas para com o lusco-fusco do fora de campo e de quadro: interstícios, intermitências, domínios possíveis e virtuais. “O cinema que nos interessa é assombrado pela escritura. A escritura implica o espaçamento, um vazio entre duas palavras, duas sílabas, um vazio que permite a passagem do sentido. (…) E como isto se passa no cinema? Aqui também existe espaçamento, mas este não é a cola invisível entre os fotogramas; é o fora de campo. Cada quadro secreta o seu fora de campo. (…) Cada importante cineasta resolve este problema” (Serge Daney).

Só que Ninfomaníaca é fóbico demais em relação ao Outro (à sua intervenção na construção do significado e na ativação do Desejo) para se permitir o jogo do fora de campo – o próprio princípio do flashback como armadura do filme já designa esta paranóica retração ao consórcio da alteridade. Pois o flashback aqui é um estratagema que designa, não a deflagração de um stimmung evocativo cuja aura vai integrar ao personagem uma carga suplementar de presença e de fascínio (Laura; Gertrud; Scarlet Street), mas a condenação a priori do personagem a uma draconiana estrutura silogística. Daney ainda acrescenta: “Agora, é bem possível que com diretores como Godard e Straub tenhamos chegado a um ponto-limite da escritura. São cineastas para os quais uma imagem está mais próxima de uma inscrição sobre pedra tumular do que de um cartaz publicitário. E o cinema talvez não tenha outra escolha senão entre um pôster e um epitáfio. Na escritura, sabemos, há uma relação com a Morte”.

ninfomaniaca3

Alguém adivinha em que posição de “retaguarda” Lars Von Trier se encontra? E o que ele precisamente nos nega com seus pôsteres publicitários? Na exata medida em que aborda temas ditos tabus – o sexo doentio, a auto-destruição, a face inabordável da Górgona (La Rochefoucauld: “Duas coisas não posso encarar frente a frente: o sol e a Morte”), Von Trier afasta irremissivelmente de nós a chance de uma interrogação séria sobre estes temas; estas questões são mascaradas (e assim edulcuradas) pela interpolação de mil artifícios do “artista demiurgo”, artifícios destinados a transformar os supracitados questionamentos em joguetes de um festim masturbatório – e aqui cabe-nos uma lição terapêutica e histórica: os judeus, a partir de um certo momento (provavelmente por influência da psicanálise, em meados dos anos 1950 e 1960) viram que era deletério à “causa judaica” continuarem a interpretar o holocausto em termos de expiação, culpa, combate maniqueísta entre o Bem e o Mal (ambos com letra maiúscula e pathos Götterdämmerung). Em suma: em termos românticos; universais, sempiternos. Viram que este tipo de exegese corroborava a mística/mítica totalitária, cujo grande embuste ideológico consistiu justamente em tornar absolutas e eternas questões radicalmente históricas, situadas: sexo, raça, religião, ideologia. O instrumento ideal (ou antes: anti-idealista) seria tratar estas questões sob um viés eminentemente finito: terapêutico, histórico, sociológico. Era dar aos ídolos de pés de barro nazistas o tratamento ao chão, relativista, que eles mereciam. Nesta linha, o próprio termo Holocausto (sacrifício) tornou-se politicamente insofrível, por carregar nas tintas “transcendentes”, numinosas. Ao dotar os nossos demônios de uma aura demoníaca, Von Trier vai na contramão deste Aufklärung (Iluminismo) político. Recai na barbárie, mas não “pura e simples” (e tanto pior por isto!); na barbárie mediada, especulada, refletida. Na barbárie que afirma, por mil provas e contraprovas, o domínio absoluto do diretor sobre seus fantoches de nitrato (hoje, digital); a submissão masoquista do espectador ao seu Pater famílias fora de quadro, etc. A discussão de um filme de Von Trier já não deveria pertencer à alçada de uma revista de cinema – e talvez sejamos nós os atuais cúmplices deste carrasco, ao tratar de Ninfomaníaca aqui – e sim às páginas policiais, aos registros de clínicas psiquiátricas, ao Ora pro nobis da canalha pentecostalista que hoje viceja pelo Brasil e parte do mundo. Crítica e clínica, de Gilles Deleuze, é mais do que nunca, e sempre, uma sugestão a ser levada a sério.

Share Button