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Névoa digital

Na história do cinema, poucos filmes se prestaram tanto à citação como Um Corpo que Cai. A proposta de A Névoa Verde de recriação do filme de Hitchcock de 1958 deveria ser, portanto, recebida com certa desconfiança, não fosse a estratégia singular adotada por Guy Maddin e seus colaboradores no projeto, os irmãos Johnson. Essa estratégia de trato com o filme baseou-se em uma série de escolhas determinadas. O primeiro passo foi o de reduzir Um Corpo que Cai a uma série sucessiva de motivos, lugares e situações, esvaziados de seus conteúdos particulares (a perseguição no telhado, a conversa entre dois velhos amigos, o encontro no restaurante, a espionagem no cemitério, a cena da floricultura, a chegada no hotel, o mergulho na baía de São Francisco, a morte falseada, a decepção amorosa, a queda). O segundo passo foi transformar a série de motivos na grade estrutural de um filme de compilação obsessivo e paródico. A Névoa Verde se apresenta, assim, como uma série de séries, onde cada motivo do filme de Hitchcock se atualiza em uma pletora de imagens diferentes, repetições e variações de um único tema, apropriadas de um arquivo constituído por dezenas de filmes e séries de televisão, reunidos pelos realizadores pelo fato de se passarem sempre na cidade de São Francisco, onde transcorre a história de Scottie (James Stewart) e Judy (Kim Novak). As únicas imagens ausentes são as do próprio Um Corpo que Cai. Comissionado pelo Festival Internacional de Cinema de São Francisco, o filme pretende, antes de tudo, ser uma homenagem à cidade e a seus prolongamentos imaginários.

A escolha de Um Corpo que Cai como modelo estrutural baseia-se em grande medida no seu próprio tema. O filme de Hitchcock tornou-se conhecido como uma obra sobre o duplo, assim como uma narrativa marcada ela mesma por jogos de espelhamento. Em A Névoa Verde, a lógica do duplo, contudo, cede lugar a uma lógica da recursão, como um espelho que, posto diante do outro, se multiplica infinitamente. O mesmo motivo de Um Corpo que Cai, portanto, não se duplica no filme, mas se cristaliza como o centro ausente de uma miríade de variações, que se espelham mutuamente uma na outra. A cena de perseguição célebre que abre o filme de Hitchcock, por exemplo, permanece no fundo de cada imagem de indivíduos acossados no teto de edifícios de São Francisco, que o filme emparelha sucessivamente, resgatadas de filmes quaisquer, que nem sempre conseguimos identificar. A Névoa Verde se estrutura, assim, a partir de um jogo de repetição e variação, que distribui atualizações de um mesmo motivo icônico lado a lado, como se compondo um papel de parede. O filme nunca apresenta a cena original de fato, mas ela persiste como o prolongamento virtual de seus duplos: o seu fantasma.

O tom do filme diante da imagem, contudo, não é o da fascinação pigmaleônica do indivíduo com sua projeção fantasmática, que Um Corpo que Cai cultiva no seu espectador e, ao mesmo tempo, toma como o tema do seu filme. O tom é o do pastiche. O pastiche de Maddin e Evan e Galen Johnson trabalha com um espectro de humor amplo, que varia entre a ironia, a paródia e a galhofa, como se se tratasse, na verdade de um filme-ensaio que, deslocado de sua vocação de lucidez, houvesse substituído a sobriedade do comentário das imagens pela histeria de sua compilação paródica. Os realizadores são artistas que cresceram em uma época em que o contato com as imagens do cinema foi, sobretudo, mediado pela experiência do vídeo, na qual a imagem em movimento desceu de seu estatuto de intangibilidade: tornou-se manipulável domesticamente, podendo ser acelerada, rebobinada, revista quantas vezes se quiser. Os artistas também são, inteiramente, artistas do digital, partes de uma época onde reempregar e reeditar as imagens se transformaram em atividades de amador (A Névoa Verde trabalha em geral com arquivos digitais de baixa qualidade, acessíveis por qualquer um). A estratégia de humor dominante é, sobretudo, a do corpo dos atores, que resulta justamente do trabalho de edição, reminiscente de práticas de remontagem anônimas que podemos encontrar facilmente em plataformas on-line de compartilhamento de vídeos. Os realizadores editam as cenas escolhidas de modo a subtrair todos os diálogos, restando apenas os corpos emudecidos, a reproduzir gestos e expressões intermitentes e repetidos, movimentos vacilantes e descontínuos, como tiques de um autômato defeituoso. A subtração dos diálogos possui uma função, contudo, não apenas de humor, mas de abstração. A montagem abstrai as situações, os filmes e os personagens de suas particularidades determinadas, de modo a servir como peças de uma narrativa esvaziada de conteúdo definido, mas que não se cansa de incluir elementos em sua trama, seguindo a série de motivos de Um Corpo que Cai.

A Névoa Verde desenvolve, assim, a sua própria narrativa, como uma história tortuosa que se desenrola sem perceber que é assombrada por uma outra. A trama que pouco a pouco se desenha no filme se revela, assim, profundamente abstrata. As conexões entre as imagens estabelecem dificilmente um desenvolvimento narrativo reconhecível, mas a impressão que elas deixam é que existe, ainda assim, uma história se desenrolando diante de nós. A ambiciosa trilha sonora de Jacob Garchik constrói os ares de desenvolvimento de uma história de suspense e mistério, aos modos do cinema clássico. A banda sonora, curiosamente o único material original do filme, é, também ela, um elaborado pastiche, repleto de citações a trilhas de cinema. A história de A Névoa Verde não é, contudo, a de um filme noir, como a de Um Corpo que Cai, mas a de um filme de catástrofe. O seu principal tema oferece à obra o seu título. Uma névoa verde digital invade as imagens do filme, como uma ameaça latente e amorfa, reminiscente de A Bruma Assassina (John Carpenter, 1980). As cenas de passeio de carro em São Francisco de Um Corpo que Cai podem muito bem ceder espaço para imagens de catástrofe, como a de monstros e polvos gigantes que, de repente, podem irromper nas mesmas avenidas. Em salas fechadas, investigadores analisam imagens e debatem temas obscuros em tom conspiratório, no que bem poderiam ser departamentos de polícia, reuniões de negócio e bases militares (são as únicas imagens que parecem fugir, definitivamente, dos motivos visuais de Um Corpo que Cai). Os rostos de tantos atores, conhecidos e desconhecidos, de épocas e texturas de imagem distintas, se entreolham em tom de suspeita. A trama psicológica do filme de Hitchcock desaparece em uma narrativa onde se proliferam sugestões de conflitos sociais, políticos e ambientais, em uma cidade ameaçada por forças invisíveis do crime, da paranoia política e do desastre.


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