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Traumas e perturbações: o fantasma do Pai

Não são poucos os filmes ao longo da nossa história, principalmente a das duas últimas décadas, que trilharam a necessidade de um órfão acertar as contas com o pai, seja esta figura paterna uma autoritária, fortemente presente, ou uma fantasmática, que impõe sua presença pela ausência. A figura cinematográfica do pai é frequentemente a que nos indica um norte ou uma orientação – que nos insere numa tradição de alguma natureza – e a imagem do órfão é também frequentemente a do abandonado pela história, perdido e sem referencias numa realidade que o atropela (os exemplares da retomada são vários, e a título de ilustração, mencionemos Central do Brasil, Lavoura Arcaica e Abril Despedaçado). Se o Brasil recente vem cada vez mais se mostrando menos o país do futuro, e mais a nação da amnésia coletiva que conduz-nos a uma incapacidade de fugir ao passado, a necessidade de lidar com esta figura retorna, em alguma medida, às ordens da coisa.

As imagens de vertigem que irrompem o naturalismo de Deslembro, de Flávia Castro, evocam o trauma como mediação desta relação: elas nos conduzem, pelos olhos da menina Joana (Jeanne Bourdier), a breves impressões desconexas da violência do passado ditatorial do país. É a porta de acesso que temos à origem do trauma – a morte do pai – que fez da protagonista exilada e crescida na França, num bairro aparentemente periférico e de imigrantes, alguém que tem um verdadeiro asco contra o país de origem. Neste sentido, é um filme de reconciliação. Voltar ao Brasil significaria deparar-se com a origem deste choque para vencê-lo e redescobrir o nosso lugar; mais a frente, descobrimos que é culpa, sentimento de que a responsabilidade pela morte do pai foi sua (filha da esquerda), e não do exército, e não das contingências históricas da América Latina (representada na luta do padrasto). A reconciliação da jovem menina é, neste ponto, uma tomada de consciência sobre a sua condição e a do país, verbalizada, finalmente, nas palavras de sua mãe (Sara Antunes): a culpa não foi sua. Não podemos viver no passado, parece nos dizer, e para vencê-lo, é necessário lembra-lo.

A reconciliação é, no entanto, um pouco mais circunstancial do que a descrição pode parecer fazer crer. Isto porque boa parte de Deslembro se dedica a fazer um retrato de época, tratando do retorno da elite cultural militante ao país nos anos 1980, da vida cotidiana de adolescentes neste momento histórico, as músicas e bandas ouvidas, os passeios na praia ou nas trilhas, namoricos e reuniões de amigos. O evento desencadeador do medo, embora conduza a narrativa em alguma medida, permanece em segundo plano, surrupiando aqui e ali o seu espaço, como deve acontecer com todo trauma – o caminho da cura é o que alimenta os movimentos do filme, que são poucos. É, portanto, menos um filme de busca e mais uma paisagística de costumes, menos sobre o passado que sobre o presente (não o nosso presente, mas o presente do filme), procurando, através da mise-en-scène, criar na obra um sentimento mais ameno de vida cotidiana jovem e um tom “pastel” onde o passado é mais armadilha para o impedimento do presente que violência real, brusca e abalável, um acorde apaziguado e letárgico que ecoa daqueles que tentam retomar a vida após o trauma, magistralmente construído em filmes como Hana-Bi – Fogos de Artifício (Takeshi Kitano) ou Eureka (Shinji Aoyama).

Aqui em Deslembro, no entanto, raríssimas vezes chegamos perto deste lugar, porque há um esforço maior em articulá-lo na narrativa e na conjugação verbal da trama que nos modos de encenação e construção fílmica, nas formas plásticas da imagem e do som, e nas dinâmicas de movimentação dos corpos e espíritos pelos espaços vazios do plano. Para um filme sobre trauma e reconciliação, onde estão os silêncios, os espaços vazios, a imobilidade dos corpos ou a força dramática no olhar da menina a carregar o devido peso de sua calada experiência? E que não fossem estes necessariamente o conjunto de recursos mais adequado para recriar tais sentimentos no interior do espectador, ainda assim, não se justifica que não haja uma procura menos protocolar, menos literal e didática por esta forma.

Não sejamos de todo injusto, pois, aqui e acolá, em alguns momentos, Deslembro consegue cumprir com alguma força o que promete. Mas parece-nos pouco para um longa-metragem cujos fiapos narrativos são repetitivos – não avançamos na investigação propriamente do que aconteceu, e o trauma pode, literalmente, ser resumido a uma frase – e que baseia-se inteiramente no esforço de construir uma espécie de mood no cotidiano desta menina. O resultado, por exemplo, é que as rememorações chegam a nós muito mais pelo sentido literal ao qual remetem as imagens destorcidas – como signos do trauma – do que como uma experiência espectatorial deste trauma. Ao final de Deslembro, a protagonista como que faz as pazes com o fato de que a vida individual será sempre afetada pelos desdobramentos da necessária resistência da luta latino-americana; e assim, como que se reconcilia com o próprio país.

Processo semelhante é aquele pelo qual passa o jovem Ihjãc, indígena da etnia Krahô, em Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos. O registro naturalista agora passa a ser a etnografia de costumes, o olhar dedicado às ritualísticas indígenas, numa chave deveras contemporânea onde as imagens e os sons destes rituais observados tornam-se poiesis, imersão nas florestas e chapadas, mergulho nas sensações e no tempo destes lugares. Embora estas imagens façam, à sua própria maneira, o registro de cotidiano ou paisagística de costumes, não é delas que o longa-metragem extrai sua força e seus melhores momentos. Estes estão reservados às imagens onde há um declarado esforço de intervenção estética em algo primitivista, à lá Tio Boonmee que Pode Recordar suas Vidas Passadas (também rodado em 16mm), por parte dos realizadores – a forma como o corpo de Ihjãc se mistura à floresta, tornando-se mancha verde, preta e branca, numa panorâmica lateral; ou como o seu corpo adentra um rio em um improvável contraluz, tornando-se mancha negra absoluta; a chama que cresce de um rio onde o seu pai o invoca; nas fantasmáticas e místicas imagens do pássaro, na mulher que caminha pela cidade carregando uma tocha, dentre outras.

O curioso do longa-metragem de João Salaviza e Renée Nader Messora é que suas melhores imagens são perturbações. O protagonista é assombrado por elas. São estas aparições que o fazem sentir-se fora de lugar dentro de sua própria aldeia – esta que representa o modo de vida do pai, quem ele deve de vez sepultar através de um ritual. Não estamos distante do tema shakespeariano da passagem do bastão ou da falta de coragem do filho em tomar o trono do pai tornando-se signo da loucura, tema eminentemente ocidental e que tem pouco a ver com a realidade tribal, onde a passagem normalmente aconteceria sem maiores perturbações. Mas Ihjãc também está mais próximo do indígena citadino – este que vive a meio termo entre a aldeia e a civilização do homem branco – que do modelo mais tradicional e desindividualizado que a abordagem mais diretamente etnográfica frequentemente pinta. Ou melhor, do mesmo modo como o filme figura entre duas formas de olhar, seu protagonista está dividido entre dois mundos.

Mas esta divisão não é tão plana quanto pode parecer. Ihjãc tem visões e é perturbado por elas, a dificuldade de destronar o pai e aceitar o seu destino de pajé no mundo indígena tendo como correlativo também a incapacidade do mundo branco – violento (o fazendeiro que dá tiros na placa por não comprar o voto da aldeia), patriarcal (as cenas da feira na cidade), individualista e marcado por um enorme abandono (fecham-lhe as portas das casas e espaços assistencialistas) – em lhe conceder qualquer explicação para seu sofrimento que não como hipocondria. Nada lhe expia os fantasmas, que não o ritual de adeus a seu pai, quando finalmente poderá mergulhar no rio sem ser perturbado pelos espectros dele, agora incorporados. O paradoxo é que o que há de mais forte e inventivo em Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos não é a placidez do olhar sobre o cronos da aldeia que retrata um cotidiano excêntrico ou do qual não participamos (esta monótona e desinteressante), e tampouco a narrativa de esvaziamento e deriva de sua passagem pela cidade dos brancos (esta mecânica, beirando a caricatura), mas uma espécie de mística contida no interior daquela floresta – mística esta que só pode ser revelada a ele, uma espécie de talento que o torna um possível futuro pajé, que demarca diretamente a sua diferença dos demais índios e, definitivamente, dos brancos. Talvez isto seja ser pajé. Talvez isto seja tornar-se o novo pai. Como se o longa-metragem enfim nos dissesse que a forma como vemos e ouvimos o espectro do pai diz mais sobre o que somos e o que podemos ser do que sobre o que ele foi.


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