Califórnia, de Marina Person (Brasil, 2015)

setembro 1, 2016 em Andrea Ormond, Cinema brasileiro, Em Cartaz

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Além da moral e cívica
por Andrea Ormond

O inconsciente de um país, de uma cultura, funciona como em um tratamento psicanalítico: encaixada uma peça, precisamos encaixar outra, e mais outra, até que faça algum sentido. No caso do inconsciente brasileiro, pecamos às vezes pela falta de peças. Imensas lacunas sobre situações-chave permanecem. Vemos a proliferação de lugares-comuns e mentiras mal disfarçadas. Caberia à arte (mas não só a ela) uma contribuição capital para a construção deste mosaico. Acontece que arte, no Brasil, muitas vezes é elemento sazonal, dependente de fatores melindrosos, ou simplesmente mal feita. No caso do cinema, quando assistimos a um filme capaz de preencher uma ínfima parte de nossa necessidade de compreensão, a coisa já toma vulto de bálsamo. Confesso que chego a ficar agradecida quando um filme brasileiro, de alguma forma, consegue captar um pedaço do Brasil que eu estava prestes a esquecer. Ou a subestimar.

Califórnia (2015), de Marina Person, logra êxito justamente por investir em uma lembrança quase esquecida: os anos 1980 em São Paulo, o que era ser adolescente naquela época e na maior cidade do país. Antes que o leitor comece a enumerar uma coleção de “filmes jovens” – a dupla José Antônio Garcia e Ícaro Martins é a citação mais óbvia – explico: Person fez um filme sobre a intimidade de uma adolescente paulistana nos anos 1980. Não interessa se o filme é autobiográfico ou não. Sabemos que ela sabe exatamente do que está falando. É nítida sua paixão. E, se levarmos em consideração que essa paixão termina preenchendo uma lacuna importante do nosso manifesto sobre o período, podemos dizer que acertou em cheio.

Em janeiro de 1980 eu tinha menos de três anos de idade, terminei a década com doze. Vivi toda a minha infância e pré-puberdade no quartel oitentista, tempo suficiente para sentir inveja absurda dos “mais velhos”. E eles estão todos ali: a garota interessante – não propriamente bonita – que tem discos importados e um dia vai morar na Califórnia. O garoto esquisito – ainda assim atraente, por sua alteridade. A mãe, o pai. E, de repente, o tio que chega dos States. A figura idealizada, todo-poderosa, que no final se revela imperfeita. Ou melhor dizendo: humana.

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A “humanidade” do tio daria um spin-off melhor que a obra original. Se eu fosse Marina, o faria correndo. A saga de um brasileiro gay nos anos 1980 e nos Estados Unidos é capaz até de ganhar o Oscar que servilmente tanto perseguimos. Marina ama o tio Carlos (Caio Blat) tanto quanto ama a sobrinha Estela (Clara Gallo). Mas é sobre Estela que recai a responsabilidade do filme, a começar pela cena inicial, que remete diretamente ao velho anúncio do primeiro sutiã Valisere – pérola de 1987, concebida pelo publicitário Washington Olivetto e estrelada pela inesquecível ninfeta Patrícia Lucchesi.

E, na mesma toada, seguem outros símbolos da época, evocados como um mantra. O amor pelo The Cure, a devoção pelos Smiths, a sacralização de David Bowie. Cariocas se acostumaram ao Brasil dos anos 80 contado por sua ótica – Circo Voador, Blitz, Lael Rodrigues, Tetê Espíndola trinando “Escrito Nas Estrelas” no Maracanãzinho –, mas a verdade é que São Paulo também era bacana. Cabe enxergá-la com carinho. Até porque, nota-se pelo filme e por tantos relatos, nossa ligação com o mundo exterior sempre passou muito mais por Guarulhos do que pelo Galeão. Na falta de praia e sol – de variantes dispersivas –, paulistanos aceitam de bom grado um diálogo franco com as grandes capitais do mundo. Este diálogo é elemento básico na história. Enquanto Estela quer ir para a Califórnia, o amigo esquisito JM (Caio Horowicz) quer ir para Londres. Falam disso atravessando o Viaduto do Chá, sem medo de ouvirem uma sorrateira acusação de “colonizados”.

Quando o tio retorna – dez dias antes de Estela fazer a sonhada viagem ao seu encontro –, o que vemos é um homem de 33 anos confrontado com a realidade. Blat não segura a onda como deveria; o personagem exige, em certos momentos, um tom sombrio e ele exala superficialidade até quando está caindo pelas tabelas. Imagino o que um ator mais verdadeiro – um Carlos Augusto Strazzer, para citarmos exemplo caro à época – não faria com aquela nobre imagem. Blat acaba sendo engolido pela postura amarga de Paulo Miklos e até por Gilda Nomacce, übermensch perigosa, que sempre engole o entorno.

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Eu falei em amargura? Pois foi nisso que pensei do início ao fim. Estela deixaria de ser adolescente e a Califórnia viraria somente um retrato na parede. Imergiria na espiral violenta do mundo adulto, transformando-se em um daqueles rostos envelhecidos (amargos) que compõe a massa da cidade. É o mesmo sentimento que J. D. Salinger quis transmitir sobre Holden Caulfield em O Apanhador no Campo de Centeio: o de transitoriedade, de sentimentos precários que ainda se modificarão bastante ao peso do tempo.

Sorte de Estela (re)conhecer JM, com quem viverá, além da amizade, uma catártica relação sexual. Nada como uma boa lembrança de sexo na adolescência para acharmos um dia, aos 40 anos, que tudo valeu a pena. Neste momento, brilha a direção segura de Marina: a cena parece real, suada, espontânea. Não chega a rolar um beijo grego ou qualquer malabarismo de Cicciolina ou Traci Lords – os anos 1980 realmente nos deixaram traumas obsessivos – mas é um avanço em se tratando do cinema brasileiro atual, tão pudico que, ao retratar a feroz homossexualidade de Renato Russo, apelou até para a “terapia do abraço” em Somos Tão Jovens (2013).

“Ser mulher hoje em dia é um barato”, já dizia a frase anônima em uma reportagem da TV Globo de janeiro de 1980. Ser mulher, entre os anos 1970 e 1980, foi abandonar formalismos, inclusive o da beleza embonecada. O despojamento da atriz Clara Gallo – perdão pelo eufemismo – é mais um aspecto a favor de Califórnia. Seria fácil inventá-la linda, ainda mais nua. Um latifúndio das memórias de Bete Balanço (1985) está na cintilante plástica de Débora Bloch. Estela e os amigos são bonitos apenas quando associados ao trabalho da câmera, que explode na cena final. Embora a reconstituição visual do período seja frágil – o hospital tem as cores e a disposição de um hospital moderno – acreditamos nos anos 1980 pela força de sentimentos que arrebatam o espectador. Sem pieguice, Marina Person falou sobre o passado – o passado de tanta gente, em síntese – reduzindo ao mínimo os clichês banais, a catequização solipsista, que muitas vezes mais neurotizam que estruturam. Está chegando o dia em que um filme ambientado nos anos 1970 e 1980 se dará ao luxo de não citar a palavra “ditadura”. Nem só de motivações político-sociais e aulas de moral e cívica vive o inconsciente de um povo. Também vive de prazeres, boa música e rondas juvenis pelas metrópoles que outrora conhecemos.

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