The Forbidden Room, de Guy Maddin e Evan Johnson (Canadá, 2015)

janeiro 25, 2016 em Coberturas dos festivais, Colaborações especiais, Em Campo

* Cobertura do 53o New York Film Festival

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Espaço para a imaginação
por Elie Aufseesser (colaboração especial)

The Forbidden Room traz uma nova proposição na relação em permanente evolução entre o museu e as imagens em movimento. O cinema já encenou o museu diversas vezes em sua história, talvez de maneira mais iconográfica com os três jovens correndo pelo Louvre em Band à Part (1964), de Jean-Luc Godard. Mas de cenário cinematográfico, o museu mais tarde se tornou também um guardião, um cofre de imagens de cinema, assumindo a tarefa de pensar novas maneiras de se exibir imagens em movimento em instalações e outras modalidades semelhantes.

Pois bem, hoje o museu não só substitui cinemas e salas de projeção, mas começa a se desenhar como um palco privilegiado para o cinema. Esta criação mais recente de Guy Maddin, co-dirigida com Evan Johnson, foi filmada em uma das mais célebres catedrais da arte moderna e contemporânea, o Centro Pompidou, em Paris, assim como em um espaço multi-cultural em Montreal, o PhiCentre. Em ambos, o filme foi realizado aos olhos do público, diante de grupos de visitantes do museu ou flâneurs munidos da típica avidez pela arte da performance, registro a que The Forbidden Room necessariamente adere (mais um entre vários). Mas diferente do filme de Godard, o museu não é visto, aqui, como um museu, mas como um estúdio de cinema clássico onde um cenário pode ser construído.

Como a economia tradicional do cinema não absorve um projeto desta natureza, The Forbidden Room encontra refúgio neste outro espaço. Complicando ainda mais as coisas, os diretores criam outra forma de infidelidade: desde os créditos de abertura, o filme parece chegar movido pelo desejo de auto-combustão, de queimar o próprio material sensível do cinema. Entre uma cartela e outra – uma espécie de história gráfica dos créditos cinematográficos – o filme queima por uma fração de segundo, até que percebemos que ele estava apenas se transformando na próxima cartela. A celulóide não só queima, mas é também atacada por fungos, feito matéria instável, inconfiável. Paradoxalmente, o que permite que isso aconteça é justamente a ausência do suporte material: estamos diante de um filme em digital, embora ele próprio se esforce por esconder esse traço constitutivo. Os diretores levam esse paradoxo adiante, adicionando textura analógica a transições que só podem ser feitas em plataformas digitais.

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Essa é precisamente uma das contradições centrais encenadas pelo filme: estas imagens se misturam de maneira tão orgânica somente por conta de sua natureza inorgânica. Mas o que são elas, de fato? Após os créditos, The Forbidden Room abre como um filme educativo, escrito por John Ashbery, sobre os prazeres e costumes de se tomar banho. Fechando o filme em chave semelhante, esse segmento assume o papel de emoldurar, mesmo que de maneira bastante solta, uma narrativa para o resto do filme. Assim como o filme anterior de Maddin, Keyhole (2011), era sobre personagens olhando por um buraco de fechadura e se perdendo nessas imagens, a câmera aqui escorre pelo ralo da banheira, rumo às profundezas do oceano. Lá, começa uma outra história – em um submarino – e depois mais outra, puxada pelos personagens, e assim por diante. Esses pequenos contos são costurados por uma linha quase imperceptível, com resultados bastante irregulares (retornaremos a isso mais à frente).

Como atesta muito do seu trabalho anterior, o Maddin está em busca permanente por uma visualidade de outra época, um cheiro de algo que já passou, que não existe mais. Um fantasma, um ectoplasma. Será o cinema como um todo um cheiro que não poderemos mais reconhecer? O filme certamente se alinha a todo um discurso escatológico que domina as discussões acadêmicas (e, em medida mais branda, a crítica de cinema), assumindo uma “poética da obsolescência” (para usar expressão cunhada por Thomas Elsaesser), uma reencenação de uma estética passada, já fantasiada (fetichizada?). Não importa para onde a câmera é apontada, pois todo o mundo ao redor exala um sentimento de perda. As narrativas são pretextos para se colocar em cena o protagonista real do filme: as próprias imagens. Onde encontrá-las? Os personagens saem em busca de seu passado, e o filme faz o mesmo, perdendo-se nessa estética vintage, acumulando diversos gêneros (sátira, aventura, filme de monstro, melodrama, John Ashbery, Júlio Verne) em uma semi-narrativa, em registro semi-experimental. No começo, Cesare (Roy Dupuis) surge no supracitado submarino e dispara um flashback de sua busca por seu amor, Margot (Clara Furey). À primeira vista, fica a impressão de peregrinaremos por diversas narrativas com Cesare, mas logo somos abandonados, tentando equilibrar todo um conjunto de estórias que, por virtude de terem sido colocadas juntas, compartilham um mesmo espaço. Porém, o fio que as sustenta não será encontrado nos contos lineares, nem mesmo nos fragmentados, mas na missão bíblica que o filme assume como epígrafe:

“Depois que todos receberam o suficiente para comer, disse aos seus discípulos: “Ajuntem os pedaços que sobraram. Que nada seja desperdiçado”. João 6:12.

O medo do desperdício, da perda, parece ser o coração do processo, assim como do próprio filme. Tendo às mãos um catálogo de filmes perdidos, Maddin assumiu a tarefa de re-realizar alguns deles. Atormentado pelo número de que 80% dos filmes do período silencio se perderam (dado do próprio diretor), ele selecionou fitas para refilmar a partir de roteiros completos, sinopses ou mesmo um simples título. Em típico impulso cinéfilo, o diretor afirma que, quanto mais lia sobre os filmes, maior era a vontade de vê-los. A partir disso, filmou uma estória por dia, nos ambientes já mencionados, entre Paris e Montreal.

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Esse gesto realiza, ou ao menos parece realizar, uma série de fantasias:

Eles fazem o que um preservador de filmes não consegue fazer, mas talvez secretamente sonhe fazer, dando um passo além da preservação e restauração do material sobrevivente para trazer, de fato, algo de volta do mundo dos mortos. Existem diversas razões para se fazer um remake: valor comercial; homenagem; o desejo de melhorar o original. Neste caso, porém, nada disso se aplica. O valor comercial é nulo (ao menos no circuito de distribuição tradicional), o filme nunca se configura de fato como homenagem, uma vez que o referente é totalmente desconhecido, e não há desejo de melhorar um filme pré-existente, pois ele já não existe há muitos anos.

O motor, aqui, talvez esteja mais próximo do cinema de found footage. “No coração deste processo está o paradoxal momento cultural em que o retrô se torna novidade, e o vintage vira vanguarda. Obsolescência e progresso são face e verso de uma mesma moeda”, escreveu Thomas Elsaesser, em The Politics and Poetics of ObsolescenceThe Forbidden Room é um novo filme, um novo lançamento, que usa todo um aparato digital para criar a impressão de estarmos vendo um filme que se perdeu (o que de fato aconteceu) e foi recuperado (mas não foi). Ele se situa em algum ponto nebuloso entre a linhagem de mockumentaries estilo A Bruxa de Blair (Edouardo Sánchez, Daniel Myrick, 1999) e um filme de found footage “de verdade” – como os de Bruce Conner, Ken Jacobs ou Gustav Deutsch. O que ele de fato nos pede é que suspendamos nossa descrença. Chamem de found footage, arte de apropriação, remake… independente disso, o mais importante é que o espectador trabalhe para ligar os pontos soltos dentro do próprio filme (procedimento comum a vários dos artistas mencionados, expandindo o sentido para além da prática de se auto-re-editar). 

Uma imagem, por si, já contém diversas narrativas em potencial, e o poder de filmes de montagem (talvez em oposição a narrativas transparentes) é nos relembrar a todo tempo disso. Mas o poder de evocação se perde aqui, dando lugar a um desejo mais claro de narrar. Com a escolha de não levar o material que está sendo reativado a sério (há um humor pateta aqui, como é normalmente o caso com Maddin), o contrato com o espectador se torna negociação mais complicada. Enquanto o humor gerava a eletricidade constante que anima Keyhole, aqui ela se torna mais um obstáculo à proposição que nos é feita. Rapidamente, a conexão entre os muitos segmentos se borra (propositadamente) e se torna cada vez mais difícil encontrar a verdade por trás das muitas demãos de maquiagem, a ponto de brecar qualquer esforço intelectual, sem com isso evocar o prazer intrínseco à found footage ou mesmo o prazer fetichista de vermos imagens retornarem de uma longa jornada pelo desconhecido. O filme parece condenado a simplesmente comunicar o entusiasmo de Maddin pelo cinema, não muito diferente de um Quentin Tarantino, mas em versão “experimental”. Como em Tarantino, isso condena seus filmes a uma luta permanente por auto-superação. Este excesso, porém, distrai daquilo que a direção está de fato promovendo, e que, sob as muitas camadas de efeito, termina sendo demasiado banal.

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Enquanto desistimos da postura ativa que filmes desta natureza convocam (e que em verdade qualquer filme deveria solicitar), somos arremessados em outro jogo fetichista de localizar o elenco de luxo, composto de atores de renome em Quebec e na França (uma lista bastante impressionante para quem faz parte de ambas as culturas). Em um vai-e-vem permanente entre pastiche e homenagem (o fato de que um talvez não exista sem o outro parece ser a grande moral do filme), The Forbidden Room sistematicamente anuncia cada entrada de personagem com uma cartela que dá tanto seu nome quanto o do ator/atriz que lhes empresta presença.

Esse desprazer levanta perguntas: o filme teria alguma chance de funcionar como narrativa reconhecível, como um objeto mais receptivo e confortável? O título parece ser uma indicação: como os sonhos, este é um lugar que só permite a entrada individual, e o desejo de ocupar a mente de outra pessoa, mesmo que por breve período de tempo, se afirma tarefa impossível.

Parte da resposta pode ser encontrada também no processo do filme, em vez de no filme em si. A criação do projeto está ligada a um projeto de interação virtual chamado Séances, com patrocínio do National Film Board do Canadá. Não é claro exatamente como ele será apresentado, uma vez que ainda não foi lançado, mas pelos depoimentos dados pelos diretores parece se tratar de uma plataforma online que permitirá a navegação livre e interativa entre esses vários curtas. De maneira bastante literal, cada episódio funciona como um seánce, termo que tem dois sentidos que iluminam o projeto de maneira igualmente interessante. O primeiro é o termo francês, usado para uma exibição ou sessão de cinema. O segundo, mais usado em inglês mas também verdadeiro à língua de Molière, é a reunião de um grupo de pessoas para invocar espíritos e fantasmas do passado e além. O título é claramente programático, envolvendo encantamento em ambas as instâncias, e longe da natureza hermética de um “quarto proibido”.

Sejam quais forem os detalhes, eles jogam luz na possibilidade de que o ímpeto imagético de Maddin talvez estivesse sempre à espera de um meio que ainda não existe. Keyhole explora os vários cômodos fantásticos de uma casa assombrada de maneira explosiva e The Forbidden Room faz trajetória ainda menos linear, envolvendo um número maior de clipes, em uma organização que tem algo de aleatória (ou é esotérica o suficiente para que o espectador precisa decifrá-la). Essa experiência não é muito distante da fruição de vídeos em plataformas como o YouTube, por exemplo, levando em conta a digressão constante que se tornou prática contemporânea. Derivar de um gato seguindo uma caneta laser para um desconhecido filme de animação soviético da década de 1920 é hoje parte de nossa rotina. A autenticidade passa a ser fator secundário; o que se impõe é um gesto ativo de editar e curar este material em tempo real, por curiosidade, tédio ou qualquer outro sentimento aparentemente desinteressado em um resultado ou objetivo finais. Não obstante, a narrative de perda e trauma se torna menos sustentável diante de tamanha disponibilidade e a noção de “found”, de algo casualmente encontrado, termina diluída. Somente após o projeto dos Séances veio o desejo de fazer um filme para cinemas (e festivais), e isso parece explicar a inadequação sentida neste primeiro contato: um se impõe como objeto linear, afirmando sua opacidade em seu título; o outro, mesmo que feito do mesmo material, é uma espécie de upgrade digital de uma lógica tradicional de exibição individual.

Pode-se argumentar incabível tratar de um projeto que ainda não foi visto. Tal objeção faria sentido, se o filme especificamente não se inscrevesse na tradição cinéfila que permite ou mesmo suscita relatos e conversas sobre filmes que não existem além de seus rumores. A impressão deixada pela sessão no New York Film Festival é que o humor não encontrou seu lugar, que as histórias não encontraram seus lugares, que os atores não estavam onde deveria estar, e que mesmo a câmera parecia apontada na direção errada. Por outro lado, tudo isso pode dever ao fato de que o material não está sendo experimentado nas condições para as quais foi projetado. Talvez seja este o grande ato falho de Guy Maddin e Evan Johnson: ao querer mostrar este filme em um cinema para reafirmar sua relevância (tanto do filme como objeto, quanto do cinema como dispositivo), eles terminem afirmando a irrelevância crescente deste espaço onde os filmes antigos costumavam ganhar vida, e para onde, hoje, vão para morrer.

* Tradução de original em inglês por Fábio Andrade.

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