Imagens do ocaso

fevereiro 17, 2014 em Em Pauta, Filipe Furtado

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The Canyons (2013), Paul Schrader

por Filipe Furtado

As primeiras imagens de The Canyons (2013), de Paul Schrader, consistem de uma série de cinemas abandonados, refrão que o filme retoma ao longo da duração para marcar o começo de cada capítulo. A princípio, elas parecem ter pouca relação com o drama às margens da indústria cinematográfica que o filme constrói. O mais importante, porém, não serão os cinemas abandonados em si, mas a paisagem urbana desolada que aqueles planos apresentam. O pequeno drama de mesquinharia humana de The Canyons é todo construído sobre esta paisagem. Paul Schrader e seu fotógrafo, John DeFazio, buscam sempre nas ruas da cidade reafirmar uma ideia crepuscular, uma Los Angeles esvaziada e banal, como se o fim dos tempos chegasse à cidade da indústria cinematográfica e agisse justamente de maneira a esvaziá-la de sua crença de ser um espaço especial.

No seu desejo de buscar uma representação para um imaginário de uma civilização à beira da ruína, The Canyons está muito longe de ser um corpo estranho na produção americana recente, sobretudo a de cineastas veteranos. Imagens crepusculares é algo que assombra muito destes filmes, assim como a percepção de que elas se articulam num universo mediado por tecnologia. Os cinemas desolados de Schrader fazem de seu filme somente um tratado mais direto e sem subterfúgios sobre o tema. O filme vai direto ao trauma, buscando imagens que o purguem, mesmo se o efeito, de tão literal, flerte com o risível.

De certa forma, The Canyons se propõe como um epilogo didático ao trio Cidade dos Sonhos (2002), Inland Empire (2004), ambos de David Lynch, e Dália Negra (2006), de Brian De Palma, todos ensaios sobre o poder dentro do imaginário da indústria americana. São todos tentativas de buscar imagens que dêem conta do corpo feminino dentro dele, sublinhadas sempre por um olhar masculino pronto para destruí-lo. Cidade dos Sonhos, em especial, já se anuncia desde seu título (Mullholand Drive, no original) como espécie de atualização de Crepúsculo dos Deuses (Sunset Boulevard, 1950), de Billy Wilder, dividido em parte como filme picaresco de gangster pós-Tarantino e Ritchie, e em parte como horror feminino – Val Lewton revisto para uma época muito mais abrasiva. Inland Empire revê o filme inicial de forma mais radical e amplificada: seus efeitos são retomados sem qualquer tentativa de torná-los palatáveis. Dália Negra, por sua vez, retoma o crime real da aspirante a starlet cujo corpo foi encontrado mutilado, para revisitar o mito da velha Hollywood como literal moedora de carne – menos o exercício de nostalgia fracassado que seus detratores procuram e mais um ensaio sobre as múltiplas formas como Los Angeles e sua indústria principal massacram seus habitantes. As sequências do filme-teste, nas quais a voz do produtor/cineasta abusivo é a do próprio DePalma, permanecem o momento mais explícito de quase cinco décadas de investigação sobre imagens de poder. The Canyons encontra ecos em todos estes filmes, sem jamais se comprometer com a sujeira, como Lynch e De Palma fazem. O filme sugere uma encenação mambembe destas questões, e a fragilidade das suas imagens é aquilo que ele retém de mais forte. Seus cinemas abandonados fazem as vezes dos corpos destruídos dos filmes anteriores e o simbólico passa da carne ao espaço.

O filme tem um contraponto natural em 4:44 – Último Dia na Terra (2011), de Abel Ferrara. No filme de Ferrara, o apocalipse não é metafórico, mas literal e a ação se resume em encenar a longa espera pela hora do título, quando, todos sabem, o mundo irá acabar. Se o filme de Schrader move-se por externas cuja impessoalidade reforça o ambiente de danação e apartamentos que parecem uma paródia da sugestão de Thom Andersen em Los Angeles Plays Itself (2003) de que Hollywood é obcecada pela ideia de igualar arquitetura moderna e a fugura do psicopata, em 4:44 cada ambiente – seja o apartamento que Willem Dafoe divide com a namorada, seja as ruas de Nova York em suas caminhadas – são explorados para reforçar o sentimento geral de desespero. Tanto as ruas de Los Angeles quanto as de Nova York apresentam uma impressão de fim de civilização, mas não poderiam fazer de forma mais distinta: o apocalipse em Schrader é um editorial; em Ferrara, puro melodrama. As ideias em The Canyons são muito mais claras – se nem sempre interessantes – enquanto, em Ferrara, a apresentação é sempre envolvente, mesmo quando o filme é pouco mais que confuso. James Deen dirige seu carro desconexo das avenidas de Los Angeles, enquanto Willem Defoe caminha a pé pela noite de Nova York; tudo que lhe resta é justamente uma conexão com aquele espaço condenado.

4:44 (2011), Abel Ferrara

4:44 – Último Dia na Terra (2011), Abel Ferrara

Em ambos os filmes, a tecnologia segue em primeiro plano, mas há uma ambivalência muito maior em The Canyons (ironicamente financiado pelo Kickstarter), na qual iPhones e serviços de internet só aumentam o sentimento geral de desconexão. Quando Deen se revela mais interessado pelos filmes pornográficos que realiza com seu celular do que pelos longa-metragens de baixo orçamento que financia para preencher seu tempo, o tom de lamento é inegável. Em The Canyons, estamos sempre no terreno da experiência a despeito da tecnologia. O filme flerta com a série de filmes americanos de 2013 que lidavam com os desejos numa sociedade de consumo vulgar (Spring Breakers; Sem Dor, Sem Ganho; The Bling Ring) mas, ao contrário de todos estes outros filmes – para os quais ser um texto incoerente é parte inerente de se emergir sobre o tema –, The Canyons se recusa a ser contaminado por ela. Há momentos em que a câmera de Schrader fraqueja e reage aos seus dois atores centrais (Deen e Lindsay Lohan), ambos escalados pela bagagem extra-quadro tanto quanto pela sua presença de tela (ou talvez seja melhor dizer sobre como esta bagagem informa esta presença), mas na maior parte do tempo ela os segue à distância. São como uma versão fotogênica dos zumbis de George Romero, seguindo papéis sociais pré-estabelecidos até finalmente consumirem a si mesmos.

The Canyons (2013), Paul Schrader

The Canyons (2013), Paul Schrader

Por contraste, as duas sequências mais dinâmicas de 4:44 são justamente as que lançam mão do Skype. Na primeira, um entregador vietnamita pede ao casal de protagonistas para usar seu computador para se comunicar com os pais. A sequência segue sem legendas, o que torna o momento entre aqueles personagens que não vimos antes e nem veremos novamente ainda mais tocante. Na segunda, é o próprio Willem Defoe quem liga o Skype para se despedir da filha e da ex-mulher, com resultados que trazem à tona os sentimentos mal resolvidos do seu divórcio num tom crescente, até uma das ocasionais explosões dramáticas que animam o filme. Em ambas as sequências, há uma relação resignada para com o meio, como se tratasse de apenas mais uma forma pela qual as pessoas se conectam. Ferrara reconhece que, por usar vídeo, o Skype permite uma encenação mais vigorosa que a ligação telefônica, que até alguns anos antes estaria em seu lugar. As duas sequências são tornadas muito mais ricas justamente pelas possibilidades mais amplas de linguagem corporal num plano sem cortes que a nova tecnologia acrescenta. Esta relação muito melhor resolvida com os avanços tecnológicos pode ser bem observada quando Defoe se debruça sobre seu laptop, após a ligação com a filha, se comparada com o plano inicial do Mac em Passion (2012), de Brian De Palma: a logo da Apple no segundo filme serve de prenúncio para o caráter cada vez mais descartável do universo de imagens com as quais ele lida, enquanto em 4:44 é somente um dado a mais na maneira que Defoe se relaciona com o mundo.

4:44 - Último Dia na Terra (2011), Abel Ferrara

4:44 – Último Dia na Terra (2011), Abel Ferrara

Se 4:44 a princípio parece buscar as portas dos fundos para dar corpo ao fim do mundo, o filme por fim realiza uma operação muito mais complexa. A ação é reduzida basicamente sobre um casal e um apartamento, mas seu interesse maior está sempre em usá-los para interligar toda uma comunidade e pesquisar como ela reage à ideia de uma contagem regressiva à extinção. Por mais minimalista que seja a abordagem de Ferrara, o filme nunca passa muito tempo sem colocar no quadro televisores, computadores ou mesmo uma janela; sua encenação trabalha sempre no sentido oposto ao de isolar personagens no quadro. A recusa de imaginar um fim solitário é o gesto maior do filme.

Entre os extremos de Ferrara e Schrader, podemos observar outro colapso civilizatório mais ambivalente em Diário dos Mortos (2007), de George Romero. Estamos de volta à ideia de apocalipse zumbi que o cineasta cultiva de tempo em tempo, desde sua estreia em A Noite dos Mortos Vivos (1968). Desta vez, porém, o filme reseta a ação para o momento posterior ao retorno dos mortos vivos (os outros filmes de Romero, se não eram propostos como sequências diretas uns dos outros, apresentavam uma crescente progressão da situação) e nos permite acompanhar a epidemia, assim como em 4:44, pelas portas dos fundos – no caso, uma van de estudantes universitários plugada na internet – enquanto um deles se recusa a parar de filmar. “Se não esta na câmera, não aconteceu”, ele nos informa, de forma didática.

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Diário dos Mortos (2007), George Romero

Diário dos Mortos integra o ciclo de filmes de horror de found footage, apesar de ser realizado pouco antes de ele desandar no auto-paródico. Romero permite-se flertar com um estatuto de imagem de cinema contemporâneo de forma muito mais direta do que em longas anteriores. A superfície do filme inclui referencias críticas das mais diversas à saturação de mídia, mas, assim como com o consumismo em Dawn of the Dead (1978), o que interessa é menos isso do que a força com que o cineasta purga tais ideias. O fim das coisas, no cinema de Romero, é sempre literal, é sempre uma forma catártica de dar conta do mundo. Encena-se um fim.

Diário dos Mortos é um road movie institucional: cada um dos seus blocos permite que sua van alcance um novo espaço, tal como um hospital que deixa de cumprir sua antiga função social. Como manda a gramática de horror, seus espaços vazios são opressivos, seu fora de quadro reforça sempre uma possível ameaça; mas, como manda o olhar de Romero, eles são animados pelo desejo de dar forma a um pós-civilização. Nada mais funciona, à parte a internet, que magicamente segue no lugar. O fim do mundo ao menos será transmitido via YouTube, um vídeo amador por vez.

Há uma profunda resignação na dramaturgia do filme: suas imagens se propõem como relato para um possível sobrevivente. O filme reencena a mesma perseguição com as mesmas personagens no começo e no final, primeiro como ficção e depois de fato, mas as variações reforçam menos um efeito irônico ou auto-reflexivo do que certa exaustão. O que importa ao filme é a ideia de que as câmeras seguem ali para registrar nosso lento colapso. Diário dos Mortos existe somente pelo que segue visível dentro de cada plano. O estágio final da sua estrada é uma mansão, completa com um quarto do pânico no qual se poderá se barricar para editar o último filme do mundo. É uma imagem muito mais expressiva de fim do cinema do que qualquer coisa que Paul Schrader e Brett Easton Ellis são capazes de encontrar em The Canyons. Diário dos Mortos é menos a sátira da mídia que sua superfície propõe do que uma forma de mediar a continuidade de um visível mesmo diante da fragilidade do cinema. Assim como no filme de Ferrara, seu crepúsculo surpreende justamente na medida em que seu isolamento não impede que ele funcione a partir de uma ideia de comunidade. O filme é pensado para outras unidades autônomas que podem eventualmente fazer uso dos seus planos.

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Diário dos Mortos (2007), George Romero

Os planos finais deliberadamente trazem à mente o fim de A Noite dos Mortos Vivos, com imagens de um grupo de rednecks utilizando zumbis para tiro ao alvo, no lugar da execução que terminava o filme original. Este retorno reforça um cansaço nas imagens como se a lembrar que, num espaço de quarenta anos, tão pouco mudou na natureza do material do cineasta (algo reforçado pelo voz over mão pesada). É um cansaço que não deixa de trazer à mente os cinemas falidos de The Canyons, mas o que há de mais interessante nas imagens e em sua relação com as do longa de estreia de Romero é como elas reforçam a posição do filme como um retorno ao underground por parte do cineasta.

Uma das novidades de A Noite dos Mortos Vivos era justamente a aparência autêntica das suas imagens P&B, fruto evidentemente mais de condições de produção do que uma opção estética consciente, que empresta ao filme uma urgência rara nos filmes de horror do período. Os filmes subsequentes da série dos mortos todos se articulam a partir de um princípio de espetáculo muito mais grandioso – seus sentidos são dados justamente pela forma com que o diretor transforma seus conceitos sobre uma sociedade pós-civilização em gore. Diário dos Mortos deseja se reaproximar da urgência maior de A Noite dos Mortos Vivos, mas o espaço das imagens urgentes se transfere do noticiário da televisão, com o qual o filme anterior foi por vezes comparado, para as imagens amadoras encontradas na internet. Este retorno a uma urgência – e independência – original serve como comentário final de George Romero em sua tentativa de encontrar vida e sentido nas margens da indústria.

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