Machete, de Robert Rodriguez
e Ethan Maniquis (EUA, 2010)
por Filipe Furtado
Celebrando
o mito
No seu melhor, o cinema de Robert Rodriguez costura com precisão
dois elementos: o cinema como arte popular, com ênfase nas
suas tradições mais vulgares; e o mito, também
no que ele tem de mais popular. Quando o cinema de Rodriguez pulsa
com mais força, estas duas vertentes se unem para algo
muito maior que o mero pastiche/homenagem pelo qual o cineasta
mexicano é famoso. Se Machete é o melhor
filme de Robert Rodriguez desde Era Uma Vez no México,
é justamente porque ele, desde então, não
encontrara material tão propício para costurar estes
dois elementos.
A origem de Machete é conhecida de todos:
um falso trailer de filme B que Rodriguez dirigiu para
o projeto Grindhouse. A partir de tal material, seria
muito fácil produzir um pastiche de um ideal de cinema
B como seu próprio Planeta Terror. Mas qual o
ponto de tal exercício se o mesmo já havia se resolvido
perfeitamente num curta-metragem de dois minutos? Um filme menor
ignoraria completamente esta questão e só repetiria
em 80-90 minutos uma piada que dificilmente sustentaria mais de
quinze (e já se resolvera em somente dois), mas Rodriguez
(que aqui co-assina o filme com seu montador Ethan Maniquis) busca
algo muito diferente.
No
lugar do pastiche fácil, Machete constrói
sua ficção justamente a partir do princípio
de pegar aquela figura do falso trailer e dar-lhe uma
estatura diferente. Machete é um filme pautado
sobre o mito do herói mexicano, um herói próprio
de Rodriguez calcado a partir da cultura popular que ele consumiu
ao longo dos anos, mas maior do que ela. Este processo fica claro
quando observamos a função das seqüências
iniciais, com Machete ainda policial fracassando numa missão
e vendo sua esposa ser decapitada. Um ponto de partida típico
para um filme de vingança, mas que serve a Machete
só como base da sua origem: a morte da esposa lhe marca,
mas nunca é usada como base para seus atos posteriores;
o que move Machete é a necessidade da ação
seguinte e não um desejo por corrigir o passado.
De um universo de referências descartáveis,
Rodriguez vai aos poucos costurando seu mito mexicano, o grande
herói que vai resgatar os imigrantes ilegais do Texas e
se estabelecer como símbolo (e Rodriguez é esperto
o suficiente pare reconhecer que o valor simbólico de Machete
é muito superior à sua própria eficácia
como herói de ação). Se o filme é
dramaticamente maior que a soma das suas cenas é justamente
pela aposta certa na aceitação por parte de Machete
da sua própria condição. O filme começa
com ele como um herói convencional fracassado e termina
com sua recusa dos papéis legais, preferindo existir como
uma figura mítica que está em todo lugar. Este é
o grande arco de Machete: a afirmação de
uma existência à parte. A formação
de um mito não-reconciliado.
Nisso
vale destacar a grande força política do filme, que
se afirma ao usar a situação dos imigrantes ilegais
no Texas ao lado de uma série de outros elementos simbólicos,
desde a habitual cultural popular plural que Rodriguez celebra -
nada jamais será vulgar e grosseiro demais para Rodriguez
- até seu uso habilidoso de vídeo e atores com forte
peso iconográfico. Neste sentido, nada é mais político
do que construir um filme cheio de atores conhecidos e centrá-lo
na presença do character actor Denny Trejo, presença
habitual nos filmes de Rodriguez e também um ex-presidiário
que encontrou a vocação para fazer figuras intimidadoras
às bordas de grandes produções. Tirar Trejo
da margem e colocá-lo no centro simboliza, numa chave pop,
todo o projeto estético-politico deste belo exercício
de mitomania de Rodriguez.
Outubro de 2010
editoria@revistacinetica.com.br |