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Da pureza

Há coletâneas e versões pocket da ideia de autoria – cineastas consagrados fazendo pastiche de si mesmo – , e por outro lado, há cineastas levando aos limites épicos aqueles desejos já aflorados no todo de sua carreira, quase como que por revisionismo, reivindicando retomar o conjunto de estratégias que fundaram o seu cinema em primeiro lugar. Este olhar retroativo do que se quer épico-síntese pode ser um canto do cisne – Murnau filmando Fausto (1926) ou Aurora (1927), a própria concepção de Vai e Vem (2003) ou até mesmo Idade da Terra (1980) –, mas são também, outras vezes, versão romanesca e melodramática de si mesmo, e não raro faz com que os cineastas percam a mão ou esqueçam propriamente a originalidade do seu ofício, trocando o vigor habitual da mise-en-scène pela necessidade do magnus opus. Amor até as cinzas parece um esforço neste sentido, e, no entanto, é uma das obras mais forte de toda a carreira de Jia Zhang-ke, não porque é onde mais radicalmente leva aos extremos as premissas de seu cinema – estes extremos estão nos anos que compreendem Plataforma (2000) e Em Busca da Vida (2006) – pelo contrário, porque ele faz o caminho oposto ao desta extremidade.

O movimento destes filmes no início do milênio como que acompanhava aquilo que o seu cinema denunciava, isto é, como a mudança da paisagem chinesa no seu acelerado processo de modernização e alteração espacial constante era também uma mudança das relações humanas no país, o modo como o drama individual sucumbia às transformações geográficas, desconfigurando-os; ou melhor, o mundo tornado construção manuseável, signo de si mesmo no turismo de O Mundo ou edificação desespacializada na barragem que alaga a cidade em Em Busca da Vida, como se agora deslocar qualquer coisa para qualquer lugar não fosse um impedimento, além de causar um efeito dominó de alienação e desumanização. O contemporâneo tem sua própria sensibilidade desterritorializada, à deriva, onde até o que parece mais fixo e imóvel pode ser realocado com o mais simples gesto. Se sempre existiu um claro talento de diagnóstico e formulação imagética dos signos sociológicos e figurativos das grandes naturezas mortas da China moderna, por outro lado, a megalomania paisagística como gerador de sentido cada vez mais inviabilizava que mergulhássemos no interior daqueles moradores dos xiaochengs chineses – a frieza se tornava aos poucos a própria ordem das coisas; a crítica ao moderno tornando-se vítima de sua sedução.

E neste sentido, Amor até as cinzas tem no próprio melodrama seu grande trunfo, conseguindo conciliar o realismo paisagístico da China moderna – a varredura visual por rostos desconhecidos, prédios enormes, paisagens amplas – com sinceras revelações sobre os valores humanos que encarnam seus personagens e os tornam menos reféns dos grandes playmobils da modernidade. Ele nos faz lembrar de um filme essencial do cinema contemporâneo: Os Garotos de Fengkuei (1983), de Hou Hsiao-Hsien. A gangue local da pequena cidade litorânea termina os estudos e, após dias vazios, mudam-se para a cidade grande. Com a mudança, vem o problema do distanciamento – antes, inseparáveis amigos do peito, paulatinamente afastam-se uns dos outros. É a passagem de um modo de vida a outro, que tem em seu correlativo, a passagem de um regime estético a outro. Mas se este era um filme sobre o momento de transição, o atual de Jia Zhang-ke é sobre o antes e o depois; se aquele era sobre uma crise e uma ruptura, este é sobre nostalgia e conservação, ou melhor, sobre manter algo do passado em estado puro (e a isto faz remissão o título norte-americano, escolhido pelo próprio diretor). Sua protagonista, Qiao (Tao Zhao) é este perfeito protótipo, pois, não importam as radicais transformações à sua volta, manteve perene dentro de si, nos seus gestos e atitudes, a mesma bravura indômita, o amor e a lealdade que aprendera outrora com a subcultura do jianghu.

Qiao é apaixonada por Bin (Liao Fan), um wanna be gangster que lidera uma fraternidade em um momento que marca o início de uma transformação no país; momento em que o capitalismo começa a desabrochar sob a régua da corrupção. Bin e sua gangue representam o ápice disso, servindo como braço violento de um empresário de residências que viria a falecer já no início do filme. Neste momento, ainda havia uma fagulha humana que aproximava os sujeitos uns dos outros – o respeito, a hierarquia, a religiosidade (o juramento frente à estatueta divina), o amor e a lealdade – valores herdados de uma tradição chinesa longínqua (representada pelo pai de Qiao, um comunista alcóolatra que denuncia as ilegalidades de uma mineradora), mesclando-se com signos do americanismo (o YMCA cantado em diversas cidades do país, a paixão pela dança de salão) que aos poucos os degradará. Enquanto a irmandade de Bin vive sob estes valores – bebem, por exemplo, a bebida do mesmo pote – , já os gangsteres mais jovens representam a ação violenta sem escrúpulos, a sede por poder imediato tão cega que chegam a confundir em quem devem bater. É para espantar estes que Qiao disparará uma pistola e terminará presa por 5 anos. Então, há o depois: a experiência do desencanto, da solidão e do vagar a esmo em uma nação sem identidade, agora produto acabado do seu próprio futurismo. As cidades mudaram, as amizades e relações humanas são pautadas pela ausência de valor. Bin largou os jianghu e tomou um emprego qualquer. Nada será como antes, amanhã. Exceto Qiao.

Comparado aos trabalhos anteriores de Zhang-ke, não há nada particularmente novo nas temáticas, e nem nas estratégias de encenação. Reconhecemos de supetão os ambientes interiores esverdeados, as lamparinas ou luzes de poste saturadas, as lentes longas servindo a planos conjuntos que destacam e reposicionam os personagens frente à imponência da imagem, o frequente materialismo do olhar sobre os ícones arquitetônicos, os tempos vazios e a faixa sonora ambiente acentuada dos seres que quase como que integram mecanicamente este panorama visual. São estas e outras formas com que Zhang-ke trabalhou praticamente a vida inteira, e aqui o diretor parece revisitá-las. Se há modificações, estas são ligeiras – uma preocupação um pouco menos nominal com o rigor dos balanceamentos de plano ou com a certeza das composições. Um esforço maior de concentração e mergulho no primeiro plano e no melodrama de sua protagonista, mulher para quem a inversão do mundo significou uma espécie de trauma, e que precisará, ao longo desta segunda parte, reencontrar sua tão determinante força e autonomia.

Das cenas mais magistrais do filme é aquela em que, em um quarto de hotel, Qiao reencontra Bin, num dos mais memoráveis e sutis planos-sequências dos últimos anos. Pois ela evoca na mise-en-scène toda a envergadura de nostalgia amorosa que Amor até as cinzas tem, somado também à toda força de determinação que lhe opõe – a certeza de autonomia da mulher chinesa contemporânea – numa isonomia de dificílimo balanceamento que só encontra paralelos naquela noturna no saloon em que Joan Crawford repete “Lie to me. Tell me all these years you’ve waited me” para seu ex-amante em Johnny Guitar (Nicholas Ray, 1954). É quando sabemos finalmente que Qiao sobreviverá neste mundo, tornar-se-á, inclusive, por sua força moral tremenda, a muleta do homem que ainda traz no coração. Que será abandonada pelo homem – que será abandonada pela violência do capitalismo chinês – mas que nada disso importa porque tudo que ela precisa é desta chama de humanidade que traz sozinha dentro de si.

O brilhantismo da encenação de Amor até as cinzas é acompanhado por uma enorme reflexão sobre o próprio cinema, como se através de sua modelo, o diretor necessitasse revisitar sua trajetória para redescobrir que ama o cinema e perceber que, não obstante suas transformações, ao fim de tudo, ficará tudo bem. Não são poucas as menções que Zhang-ke faz a seus próprios títulos anteriores – cenas literalmente revisitadas -, bem como citações ao gênero dos jianghu chineses; mas, para além disto, há na própria técnica cinematográfica um esforço de acompanhar, através do uso de suportes múltiplos (chegou a utilizar 6 tipos de câmera digitais diferentes nas filmagens), traçando o panorama histórico da própria tecnologia e o aglutinando à forma, sempre com a maior delicadeza e sem deixar marcas de histrionismo, como se quisesse também nos mostrar que a evolução da sociedade é também a evolução de suas máquinas, texturas e formas de olhar. As leves granulações e menor latitude cromática do primeiro momento logo darão lugar a imagens mais perfeitas. E depois, perfeitas até demais, com intervenções digitais na própria substância imagética, drones que voam e homogeneízam os cenários, tornando-os todos de fácil reconhecimento, até a câmera de segurança na qual o filme termina. É como se Zhang-ke, um anti-essencialista por natureza, observasse esta história de transformações da China – que é também a história das transformações do cinema e a história de sua própria história – para finalmente descobrir, num épico-melodrama de rara sensibilidade, entre a saudade que resta do luto do passado e a absoluta convicção de sua própria força singular, aquilo que todo grande essencialista se esforça por dizer da forma mais simplória: que todas as mais radicais transformações nos modos de ser, fazer e olhar serão incapazes de impedir que ainda exista dentro do ser humano e das coisas o mais fundamental e nobre dos sentimentos.


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