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A história do mundo ou daqueles que não tem memória

Mais para o final de A Valsa de Waldheim, de Ruth Beckermann, um dia antes do segundo turno da eleição austríaca de 1986, assistimos a imagem de um homem que reclama a negligência histórica das gerações passadas para com um acontecimento de inegável violência como o nazismo, ao mesmo tempo em que conclama à sua geração que não cometa os mesmos erros. Não cometer erros é lembrar, parece nos dizer. Essa lembrança precisa ser mantida viva, organizada, embalsamada, para que um povo crie a sua própria história e aprenda com o seu passado, pois a barbárie vive à espreita do esquecimento, de modo que enfrentá-la é uma vigília constante. “E eu filmava, e eu registrava…”, repete a voz em off de intervenção da diretora inúmeras vezes ao longo do filme, declamando o seu ofício, o gesto político possível para que a memória possa ser cristalizada, e posteriormente, organizada. Para que uma memória possível exista.

A Valsa de Waldheim aborda o processo eleitoral do franco favorito Kurt Waldheim, antigo Secretário Geral da ONU, na medida em que se desenrola uma grande polêmica em torno de sua candidatura à presidência austríaca, quando vem à tona um escândalo sobre a sua participação em um massacre de milhares de judeus, na época em que era membro do exército nazista durante a Segunda Guerra Mundial. Embora a própria diretora seja judia, e o filme carregue em alguma medida esta defesa manifesta do ato de filmar como redenção geracional, não é esta expressa atitude que faz o documentário independente de Ruth Beckermann figurar entre os filmes mais interessantes vistos este ano. Não é um filme que resgata imagens singulares, individuais e reveladoras sobre um certo período histórico, ou que atesta uma visão subjetivizante do cenário político mais amplo, mas um que discorre com desenvoltura sobre o que aconteceu no passado, optando por recortar praticamente registros de natureza pública, indo de depoimentos dados para redes de televisão a filmagens de palestras, reuniões, discursos políticos. A voz em off não é um artifício para expor a subjetividade da diretora judia – que sofreu, é provável, com os ecos do Holocausto -, mas para dar os aparos narrativos necessários à fluidez da trama.

O que pasma é justamente que todo este material tenha sido confeccionado publicamente, transmitido para o grosso da população sem grandes subterfúgios – nada do processo eleitoral aconteceu por trás dos panos. As operações de Beckermann utilizam-se de um material relativamente conhecido, ou que ao menos foi conhecido do público em geral na época. Todos que o elegeram sabiam que a investigação da ONU e do parlamento americano se desenrolava ao longo da candidatura, e mesmo assim o fizeram. Se o recorte do material é, podemos dizer, as imagens de natureza pública (e mesmo as filmadas por ela, que mesclam com estas outras, foram feitas em espaços públicos – praças, comícios, manifestações), a montagem das imagens e a elaboração da narrativa gira em torno deste ponto essencial: o que justifica que uma população eleja, voluntariamente, num dos países que sofreu tanto com o Holocausto, alguém que participou e quiçá liderou o massacre, ainda que a investigação empreendida pela ONU tenha sido tão declarada e debatida publicamente? Embora a cronologia esteja acompanhando o passar dos dias que antecedem a eleição, um esforço de articular e responder esta pergunta sobre este material nada intimista é o que está em jogo.

Com extremo primor, o filme opera através de silogismos bem diretos de montagem: vemos em praça pública um homem anônimo relativizar a violência nazista, para em seguida, ver na boca do candidato um discurso que o relativiza (“houveram mortes dos dois lados”); a isto, é articulado um especialista contando como a Áustria nunca fez as pazes com o seu traumático passado, preferindo escondê-lo debaixo dos panos a lidar frontalmente com a dureza que ele evoca, e, mais a frente, veremos como este processo de normalização do nazismo tem a ver com decisões tomadas pelo próprio órgão da ONU em sua fundação, ironicamente, uma frente para impedir um retorno da atrocidade do nazismo. Há uma forte sugestão diagnóstica de que o espectro do mal circunda aqueles que anistiam, sem culpabilizar, os responsáveis pelo próprio mal, abrindo brechas para que retornem mais adiante, fortalecidos, num outro momento.

É evidente que a campanha de Waldheim, o “candidato lapso de memória”, ao governo austríaco de 1986 bate forte aqui no Brasil de 2018. Há paralelos notáveis na nossa atualidade com as imagens do candidato relativizando a maldade do Holocausto – equiparando-o com a violência da resistência – a perseguição à esquerda em nome da família e de Deus, o esforço por tornar mentiroso ou ideologicamente motivado qualquer questionamento sobre o seu passado, e as reações da população, a porcentagem dos resultados de primeiro e segundo turno, e até mesmo a movimentação em torno do slogan “Waldheim não”. A Valsa de Waldheim explica muito, pois diz respeito a qualquer povo que sofreu um trauma histórico e preferiu anistiá-lo ao invés de revisá-lo, esconder sua vergonha ao invés de confrontá-la, responsabilizar os atos de seus agentes, e mantê-la sob constante vigília. A história se repete, primeiro como tragédia, e depois como farsa, e continuará se repetindo até que nos lembremos dela. Em um contexto mais amplo, o filme se destina a toda a horda do neofascismo crescendo no mundo inteiro.

E, no entanto, não se trata de uma elegia à memória e ao cinema como sua possibilidade, mas de um rigoroso estudo dos limites da democracia representativa. O processo não foi sigiloso: aconteceu dentro dos ritos estabelecidos pelos sistema, o jogo todo estava às claras, assim como – e eis o grande paradoxo – a ascensão do neofascismo no panorama atual do mundo inteiro acontece, rigorosamente, dentro das condições democráticas. Não há golpe de estado, há golpe democrático. O final do longa-metragem, que contabiliza os votos e determina o vencedor, e os bastidores de seu primeiro pronunciamento público, são de um desalento completo. Bastou uma afirmação veemente que o passado não importava mais, e foi dado o golpe que o passado nos legou – a anistia como esquecimento, uma nova “via prussiana” a la Gramsci? Neste sentido, A Valsa de Waldheim é uma promessa para um futuro onde nada disto se repita. Em Millenium – Os Homems que não Amavam Mulheres (2011), David Fincher reconhecia que o gênio contemporâneo é mais como o gênio hogarthiano: não daquele que inventa ou descobre imagens, mas o gênio arquivista que as articula, dando sentido àquilo que está dado, evidente e às claras, em um mundo povoado por uma proliferação inigualável de imagens descoladas da realidade (o mundo dos fake news) das quais só podemos desconfiar. As imagens da candidatura de Waldheim eram públicas e, em vários níveis, disponíveis. Mas faz-se necessário articulá-las, e Beckermann o faz evidenciando todos os agentes em jogo e mostrando “como se colocou o fascismo no trono” com naturalidade, dentro das regras que supostamente serviriam para impedi-lo.

Em Da Democracia à Liberdade, o coletivo anônimo Crimethinc. escreveu que “a democracia representativa preservou todo o aparato burocrático que foi originalmente inventado para servir os reis”, procurando explicar como que, nos momentos da crise econômica da última década, esta teria servido de plataforma para um retorno ao poder do fascismo. Não será a história da eleição de Waldheim não apenas a história de um povo sem memória – que, porque esquece o seu passado, permite que seus espectros rondem seu presente – mas também a história da democracia representativa revelando-se a si mesmo, cumprindo seus recônditos objetivos; isto é, chegando ao seu declínio, realizando, no fundo, a sua vocação conservadora? A valsa de Waldheim não seria também a valsa da própria democracia representativa no que ela tem de mais problemática? E não foi o gênero musical da “valsa” justamente aquele que, por excelência, criou-se sob a égide da aristocracia austríaca, quase como extensão dela? Esta exposição da vocação de ser “valsa” entranhada na democracia representativa, agora liberta pelo cinema de suas miragens e acobertamentos, não pode ser um passo catalisador rumo a uma democracia direta e popular, ainda a surgir, mais verdadeiramente progressista?


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