É caso a se pensar e debruçar, este das tarefas impostas ao cinema “de cima”, digamos, pela crítica. Por seus outros agentes de fabricação também, decerto, mas sobretudo por ela. Melhor dito: pela crítica no decurso do tempo, posto que a sedimentação sobre o eco reverberado costuma ser mais sólida e persistente que aquela feita sobre a rocha que objeta, e não por sobrepujança das forças ditas conservadoras. Aquela (crítica) que disser de certos filmes que estes podem reescrever a história, por exemplo, ou mesmo que alguns “acabam” de lograr tal tarefa de linguagem, se o faz por um anseio simplista pela reescrita sob bandeira dos oprimidos contra certa narrativa oficial, também poderá tomar como costume, por consequência, creditar à história ao mesmo tempo algo de apalpável, passível de montagem, como ferramentas sobre uma mesa (uma vez que ela é reescrita, afinal, precisa sê-lo aqui), e de estancável, imobilizado (se a ação se dá sob o prefixo re-, entende-se que algo de encerrado virá como término dessa tarefa, e que seu movimento é ele mesmo um passo para que ela se conclua tão logo). O alerta, aqui, não é uma oposição ao método contraditório que solapa uma ordem para outra instaurar – sabemos todos que isto é de certo modo inevitável –, mas antes uma sugestão perceptiva: onde está o passado? O coro concordará que não sabemos. Há um certo uníssono em afirmar que “detrás”, e, no entanto… sabemos, sim, que ele se cristaliza e retorna. Pois que a pergunta se torna: quando ele volta, volta para quê?
E em Veredas (1978), João César Monteiro não responde, mas pergunta de novo, e não cessa de travestir a interrogação: o que eu faço com isso que volta, se para quem fica, a verdade é que nada foi e tudo me precede, ao mesmo tempo? Questionar torna-se, repentinamente, porque visto de quadro a quadro, uma postura. Diante de quê? Do tempo. Ora, talvez fique um tanto mais claro, se tomamos toda crítica como um olhar acionado, e um olhar como um dos traços que podem vir a singularizar um indivíduo – torná-lo mais cônscio de sua própria faculdade de decompor e reunir – por que se insiste nesta obra como se ela fosse uma espécie de atestado de Portugal, do que é ser português (ou seja, qual a qualidade da crítica de sua autoria diante dos que trata?): toda cena confeccionada por seu coletivo de autores, se traz à imagem uma dialética entre o farsesco e o histórico, a teatralidade do que se narra em fricção com uma grande narrativa de personas e deuses livres a interpretar, narrando a si mesmos, é porque se coloca em privilégio a pergunta em detrimento da ilustração.
Na medida em que esta reitera do passado sua tradução em superfícies que apenas fazem do presente um avanço, e de seu tempo anterior algo frívolo, mastigável, porque distante, aquela, por outro lado, põe sob suas arestas essa mesma superfície, mas fixa o olhar e liberta esse distante, o velho, o mítico, o reiterativo do tempo, para que o cômico advenha do que se moveu de lugar sendo posto lado a lado, não mais trazido – sobretudo encenado. Se há uma distância, afinal, ela aqui causa um desejo de sintetizar o abrupto dos polos num movimento que, no entanto, põe em dúvida sua proveniência e se delicia com seu “presentismo” travesso. A obra toma como pretexto inicial, não podemos esquecer, o encontro de um Ele com um Ela, e finda com o que resulta disto.
Para os vivos, a antiguidade não pode ser mais que um senso, e talvez por isso o relato e o pictórico sejam aqueles que melhor a restituem à vida no instante-este, na singularidade de um sujeito que é mais um prestidigitador ou comédian do que tão-somente um artista. Em Silvestre (1981), o bufão travesso que surge de suplemento ao rosto inexistente do rei cuja voz sabemos ser de Monteiro é a insígnia do ilusionista que não cessa de articular e mover os objetos numa quadrilha sempre produtiva do mundo. O passado está – sim, está – atrás da orelha, na rima, palpitando no olho, na pintura, no cheiro do vento e na propagação da pele na música. Não é por referência que Bruckner, Klimt ou cantigas e danças imantam e subsistem nas imagens de Veredas. A referência buscará sempre, de algum modo, dizer de novo e do mesmo jeito. É por negação à ideia de linguagem enquanto comunicação puramente veiculável e por preferência pela performance como jogo facultativo de malabares de que Monteiro se ocupa, e não para reescrever a história secular portuguesa, mas para preservar isto do performático que é a aproximação confeccionada no presente vivo. Toda trazida precisa lidar com o novo. “Um filme fabricado por”; “óbvia homenagem à”; “música popular das regiões de”; “etc…” (para não exaurir a introdução de atores com nomes), e enquanto os intertítulos iniciais brincam consigo mesmos e desmontam as relações formais numa outra literalidade sob caligrafia infantil, toda imagem passará a guardar uma pregnância inviolável e tensa entre o joguete e o contado, ou ainda entre o cinematográfico e o narrável – que é tudo. Um outro autor, Borges, ainda que na escrita, também já fez de seu ofício uma fabricação de meios desmontados, encenados, se interpelando com narrativas.
Na literatura do argentino, a escolha calorosa pelo sucinto, pelos símbolos e feitos-acontecimentos é aquilo que evoca a verdadeira épica e torna imortal (ou seja: “heroíza”) o indivíduo. E se é típico do imortal criar uma mínima lacuna onde o tempo não possa passar, ainda que o máximo que consigamos é a impressão de exatamente trapaceá-lo, o gracioso gesto do diretor de retornar enquanto caricatura(s), sempre, a seus próprios filmes, e fazê-lo artificioso, travestido, precisa ser tomado para além da aparição jocosa e memorável. Com o perdão do enunciado, que marca pode ser mais capital que a do velhaco que ergue um pentelho e o adora? E, no entanto, por aí, subjaz sua paixão pelo feminino, da flor ao maldito, e ainda mais abaixo pelo homem, do maldito à terra. O homem, aqui, seja rei, esteja perdido, seja extemporâneo, necessita da terra para demarcar, para que ela lhe seja produtiva. Homens precisam. Borges também fá-los expressar necessidades, e no Assassino Desinteressado Bill Harrigan, conto de um compêndio apelidado História Universal da Infâmia, torna a narrativa do lendário Billy The Kid um roteiro conscientemente segmentado e disposto de cinco grandes cenas de intensa carga descritiva sobre a precisão do homem de congelar seu trabalho, circunscrever um espaço em que possa legar sua autoria, o prolongamento de sua persona. Ambos os autores, no que retomam do cinema a agilidade em propor um ilusionismo, operam por síntese de palavras que criam lacunas e relevos, marcam as veredas que são as marcas, as veias de si.
Mas retornemos ao outro lado do Par, porque sabemos bem onde, nesta equação, que é afinal a própria história dos atos e papéis se atualizando e refletindo, e que por isso mesmo sobrevive nas cantigas e personas, revelando-nos todos receptáculos cegos de linhas, não de ascensões – sabemos bem onde estão e o que são as mulheres, ou ao menos pensávamos sabê-lo, não fosse um quesito de técnica (vai pelo nome: contra-plongée) aliado a um outro de voz (deveras familiar: poesia), porque do Olimpo, imperiosa, Palas Atena trava uma argumentação recitativa em pé de equilíbrio com a Voz eterna da Mulher e o coro feminino de camponesas que a ecoam. As linhas apolíneas do templo e o coletivo enquadrados em múltiplas espacialidades que relançam ao acerto colérico entre humanos e entidades seu teor de quatro ventos, espalhando o acerto de contas ao Todo. Palas não nega, prontifica-se, aliás, em reconhecer: vocês, humanas, mais velhas que eu. Criamos os Deuses? Vivemos do tempo e no transmissível. O cinema permite enfrentá-los. Só nesta cena, nesta guerra pela justiça e que culmina no acordo de que a frutificação dos homens deve servir a todos, a voz toma o impulso de necessidades diversas: ora afronta com o peso do justo, ora persuade falando por todos ou materializa uma abjuração, mas será sempre intermédio, vereda, ponte de expressos; a linguagem não consegue esconder que é demasiado, e, de uma vez por todas, um juramento à evocação que compõe algo sobre o caos. É mais por uma cinética desses movimentos do dito que o quadro em si se desloca, varia, redesenha. A poesia não está somente nos lírios e acordes de alaúde, está no intervalo das coisas, nesse espaçamento que o quadro que se fixa produz. Como em O Sétimo Selo (1957, Ingmar Bergman), a procissão que vela pelo camponês vampirizado pelo abuso de seu homem semelhante (aqui, são todos refrações de algo maior) sobe o monte, mas aqui a câmera não os acompanha: vão até a linha e se perpetuam além de nossa visão, ou muito bem despencam para que venha o novo. Mas a questão é geométrica tanto quanto espiritual, e diz: linhas criam bordas, são mistérios, e estes, apenas estes, estão reservados para a continuidade.
Diz-se de Monteiro que seus protagonistas Ele-Ela são uma duplicata do próprio autor, mas quem é o autor senão essa imortalizada Entidade que expressa, conta de si? Ele é tão assumidamente apaixonado pelo fecundo quanto Musa de si mesmo, tão centro quanto margem, objeto de si destacado não para se reencontrar, mas para ensaiar (ser) o olho que vê e o que olha. O que o cinema lhe acrescenta enquanto possibilidade e que Veredas vem a esticar é o manejo de uma arte bastarda: não somar à mítica e à terra portuguesas canções, pigmentos, peças e relações de espaço, mas fazer com que a circunscrição do vivo ao quadro seja uma cantata, feixes composicionais de algo pintado, uma arriscada encenação do que não pode se apagar, uma “diagonalidade” capturada em trajetória dos que vagam. Aliás, há também de se perguntar, ainda que com a resposta já roçando a língua, por que tanto vagam os heróis em Veredas, por que o nascimento final é inconcluso, por que o horizonte é estirado como um princípio que é fim e vice-versa. Estaria a impossibilidade de nós, da terra, de percebê-la “redonda”, circular, ali, posta num movimento retilíneo, um travelling? Uma técnica-questão. Ora, o cineasta há mesmo de ser um meta-físico. Só que a jornada dos dois, e simultaneamente pelo encantamento do cinema sendo sua mais explícita e passional homenagem, a jornada dos dois é um sonho. Assim ela o propôs desde o início. Quem propôs? A mulher (mas também a jornada, enquanto berço).
Passemos à materialidade do pincelado: Branca-flor é filmada retornando da própria morte como uma sereia imponente e fixada à embarcação, a arauto deste herói que é todos os homens três, quatro, cinco vezes replicada em planos do navio em movimento – curioso que, para o flutuante, qualquer direção reinstala sem cessar a rosa dos ventos, mas que o sol persista para nós como guia de um nascimento e poente; ora espelhado no escudo de um lago ao entardecer, ora avançando, em close, sob o anseio desesperado do retorno, e repentinamente também tomada quase pela fronte, os desenhos na proa importando um além-matéria sobre a madeira – múltiplos quadros, que são? Múltiplos modos de compor. João Bénard da Costa dirá que a cena incrusta três belos, o da matéria que se faz querer ser mais vista, o do forçosamente efêmero, porque a beleza ainda é uma passante, e por último aquele do amador, aquele que se afeta diante da insistência do prosaico, do supostamente pouco arranjado, do natural vivant. Mas não pensaríamos ser mais que isso? O belo, seja o que for, é uma confirmação de um estouro visual primeiro, sente-se antes de pensar, e, sendo o olho confirmado mais por quem vê do que por nós que olhamos, a heterologia da devolução da imagem atesta que o além-de-mim é tão composicional quanto esta tarefa que aqui discutimos: o visto se articula sozinho. Se o dizemos de outro modo: o real, sorrateiro, está em vias de se enfeitar antes mesmo que o lepidopterista agarre a rede. O trabalho não se confirma outro? Costurar junto, insistimos, nunca reescrever: o quadro branco é, das convenções, a mais farsante. A aquarela está salpicada antes que nasçamos. Veredas não é mais que dotar o organismo fílmico de um percurso, e para o peregrino não há chegada, assim como o filho do homem inicial não nasce, mas já se dá numa virtualidade dos dois sexos atraída pelos nomes. “Se for menino… se for menina… se chamará”.
Falamos excessivamente de “todos”, de um tudo, um Todo. Mas onde isto se dá? Confunde-se facilmente o caos com sua ordem, o início com o movimento, e ele de fato o é, mas não sozinho, assim como não fica sozinho por muito tempo o andarilho homem. O receptáculo místico pergunta-o de onde é, e ao responder que vem do horizonte, instantaneamente o céu lhe (nos) responde que sua vinda, do encontro entre terra e ar, é também é uma direção, um caminho. Veredas se bifurcam. O matrimônio do movimento é o quadro. E não há exemplar melhor que o cortejo do movimento do casal, cedido por Monteiro, aos camponeses, quando da passagem da mulher que faz o cortador de lenha quase confundi-la com uma Moura, uma estrangeira, as quatro arestas se fixam nele e mais três fiadeiras, deixando o par passar. Entre desvios e retenções para que a terra sirva de impulso para os pés e de trabalho para o coletivo, o lenhador demonstra seu verdadeiro ofício: narrar, e narrar multiplicando. Diversas vezes perguntará se seus interlocutores conhecem certo relato, conectando a questão à resposta que é na verdade um formigamento para continuar ligando o mundo em perguntas, semelhante àquele que filma. Emoldurados todos os sujeitos e jorros da tradição, que se perpetua em tecelões de um dialeto performático que precisa fazer dançar o próprio contado, forma e substância se confundem, a narração parece um amálgama, a liga das coisas um relato digno de que ninguém o saiba ainda – porque aí se pode contar. Espectadores contêm mais filmes que seus fabricantes podem conceber criando, e este suposto penúltimo, dentro de um ainda mais suposto ciclo “sobre o que é ser português” – acaso o autor repentinamente inicia e deixa de lançar perguntas?, por que meios Portugal poderia ter se descolado de Monteiro ou suas inquietações? –, pode variar do tédio profundo à excitação conectiva extrema, ou mesmo à comoção pelo familiar ou pelo distante; e ainda assim, entretanto, não é um filme sobre Portugal, não é pelo que é menos ou mais português, rapidamente cognoscível ou hermeticamente particular que Veredas vem a significar, sobressaindo-se ou murchando enquanto experiência.
Seus camponeses transbordantes de histórias e tradições, suas míticas e trava-línguas ritmados, seus idioletos rarefeitos ao ouvido, sua corte atemporal e bifurcada de explorações… decerto que todos os signos estão ali, mas urge-se que se perceba: não porque sinalizam para uma história anterior, não para que se reproduzam ou gesticulem mais uma vez diante da imortalidade do que não deve se apagar. Nas mãos do poliartesão, a história incandesce e toma forma como entre as pinças de um vidreiro e na agilidade de um impostor: “to be or not to be” e “ACHTUNG!” saracoteiam entre o palavreado litúrgico de uma oração, o oligarca e o padre trocam ideias à mesa e podem muito estar falando a partir de funções rançosas e enferrujadas de classe ou fazendo cócegas em “questões atuais”. E por que não os dois ao mesmo tempo? Por que o filme precisa se dividir entre o que é da ordem do histórico (passado) e o que é da ordem do pertinente (presente)? Todos, eventualmente, precisam de um disfarce, ou bem interpretam algo de contínuo e maior. É preciso ora sair de si, ora ser inteiramente si.
O mundo não deixou de conter e vibrar símbolos. A terra nos persiste. Entre os dois, o par, para sempre o par, mantém-se uma dual ilusão: “ela prosseguiu o meu segui-la”, ele diz. Ela é movida por um vácuo do ventre. Não é que as coisas não mudem, que algumas relações permaneçam imóveis, é que apenas nesse possível ensaiado pelas obras é que o homem pode contrariar a natureza. Veredas é lembrado e faz toda a terra chacoalhar pelas suas imagens da história, não pela história. Há um pôr-do-sol se fazendo na tela enquanto a mulher finca sua objeção extrema, melancólica: no território aonde retornou, “as deusas incólumes e lendas mais antigas já não são plausíveis”. Há um esmorecer inevitável após o zênite da vida, um ponto em que até o misticismo precisa encarar a matéria pesada do que está vivo, como está vivo. Imagens insistem mais que seres porque se decompõem melhor, e se a poesia é sintomática das sociedades e arranjos mais voltados para si, onde peregrinar e tornar-se objeto de si mesmo eletriza o movente das questões, é porque é somente dentro de seus próprios intervalos, enquanto percorre, nas durações, que se entreveem ocasionais lampejos de beleza – alguém já disse isto?
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