Do chão das vozes às vozes sem chão: ecos entre António Reis e Pedro Costa

janeiro 25, 2016 em Em Pauta, Pablo Gonçalo

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por Pablo Gonçalo

“Ficaremos com os mortos, trancados, em silêncio”.

Ventura, em Cavalo Dinheiro

A fala, em vez do diálogo. O dizer errante, em vez do verbo teleológico. Dos vários aspectos possíveis que podem ser salientados do cinema português, vale, sem dúvida alguma, destacar o forte fascínio que a prosa exerce entre os atores e a tela. Não me refiro à prosa que, teórica e conceitualmente, duelaria com a poesia. Mas da prosa curva, sinuosa, que abraça a fala para suspender o dizer pragmático e desdobra, em si, lampejos próprios à sua gramática, internos ao léxico. Quando ouço um filme de João Cesar Monteiro, como, por exemplo, A Comédia de Deus (1995), entre tantos outros do seus, quando ouço-o a falar e a conversar sem rumo, não sei ao certo aonde ele chegará, mas acompanho, e há um deleite precioso nesse vagar esquivo. A prosa, nas telas de diretores como Manoel de Oliveira ou mesmo Miguel Gomes, convida o ouvido ao devaneio, ao sabor da digressão que difere totalmente do significado preciso e das sugestões ligeiras. São filmes que podem ser vistos de olhos fechados. Do prazer do texto, implícito ao filme, passamos ao prazer do verbo, ao deleite da fala, ao júbilo da prosa. Não seria esse um discreto legado e privilégio dos filmes portugueses? Ou talvez uma mera pista para novamente ouvirmos o que essa prosa sussurra aos nossos tímpanos?

É essa prosa (poética), cristalina, que também encontramos nos filmes de António Reis e de Pedro Costa. Embora o primeiro cineasta seja menos conhecido do público brasileiro, ele é, declaradamente, uma das maiores e principais e influências do diretor de Cavalo Dinheiro. Não é ao acaso que haja essa polifonia vocálica na prosa e nos filmes de Reis. Deles, emerge uma tessitura sonora diretamente vinculada aos locais que ele filma. Tomemos Jaime (1974), e são vozes que encadeiam murmúrios num hospício, entre suas paredes, seu pátio… falas quase inaudíveis, mas que ainda ecoam entreouvidos daquele espaço, como se coubesse em cada arquitetura um tempo de auscultar o outro, e um tempo de silêncio, imperioso da própria alteridade. Com rara sutileza, António Reis nos conduz à remota região de Trás-os-Montes (1976), um dos vários co-realizados com Margarida Cordeiro, e lá escutamos as almas que perambulam pelo local, pelo território; as vozes que habitam e inventam o lugar. É o mesmo que vemos – e ouvimos –  em Ana (1984), um de seus últimos filmes, no qual a personagem está umbilicalmente atrelada ao terreno, como se crescesse e envelhecesse junto às oliveiras para aos seus pés, delicados, fenecer, delicadamente. A voz do chão e o chão dessas vozes conotam ao ato do enterro a inteireza de um ciclo que se fecha.

Trás-os-Montes, António Reis

Trás-os-Montes (1976), António Reis

É por isso, por retratar personas e personagens intimamente enlaçadas à geografia, que António Reis opta por filmar locais remotos. Espaços com certa aura de abandono, desvinculados de qualquer recorte temporal,  que tornam-se presentes apenas se a câmera puder alcançá-los. Numa das mais interessantes sequências de Trás-os-Montes, por exemplo, o diretor declina e abandona o português e filma um ritual minucioso, detalhista, que é celebrado em mirandês, um dialeto que de tão preso àquele terreno escapa, inclusive, a um anseio maior por tradução. Mas a língua pulsa, entre a terra, por ela, para alcançar o ouvido, enigmático, do espectador; e com ele, entre as fugas da incerteza, o ouvido ganha a preciosa aura de autenticidade. A voz, as vozes, o verbo e a prosa obtêm, na pétrea e poética filmografia de António Reis, a força de uma presença.

E presença, aqui, torna-se uma palavra-chave, o elo preciso que une Reis a Costa. Não é uma mera curiosidade ressaltar que ambos cineastas possuem em comum um certo pendor a apreciar a estética da presença e da performance solene, pictórica, tão cara ao imaginário medieval. Aos poucos, o medievo rural flagrado pela câmera de António Reis transforma-se no medievo das vielas de Ossos (1997), das ruas espremidas que contorcem os indivíduos que nela habitam. Ou mesmo em No Quarto da Vanda (2000), quando a câmera estática e alongada entre meses torna-se cúmplice, inerte, quase perversa, das agonias diante do vício da protagonista. Primeiro filme da trilogia de Fontainhas, Vanda também mostra como Pedro Costa opta por enfatizar uma presença entre corpos, o espaço, as falas e as paisagens sonoras. Aos poucos, os sons das escavadeiras que destruirão o bairro do Fontainhas conduzirão a um esfarelamento dessa harmonia, quando ainda vemos e ouvimos os dizeres com certo abrigo, em Vanda, em seu quarto, ao receber suas visitas, seus amigos, ao ouvir seus vizinhos. De certa forma, toda a filmografia de Costa acompanha o derruir desse abrigo, que ainda tênue e escasso, era, em Fontainhas, possível.

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Nessa trajetória, Juventude em Marcha (2006) revigora o poder das vozes na tessitura de Costa. O poema lido por Ventura evoca um duplo desalinho espacial. De um lado, é eco das vozes de Cabo Verde, já deixadas para trás, mas que ecoam no corpo, na presença do imigrante diante da metrópole e da cidade matriz do colonizador. E sintomaticamente, é o desalinho das vozes a primeira e mais forte consequência depois dos espaços serem drasticamente fustigados. Por outro lado, a presença de Ventura visa precisamente religar os indivíduos escorraçados pela higienização do bairro levado ao chão. As ruínas da exploração colonial duplicam-se pelas vozes da carta, pelo poema da correspondência, e obtém um contraste com o branco insosso e sem vida das moradias pré-fabricadas que não geram lares realmente habitáveis. Ainda assim, sobram e sopram as vozes: como um instante e mesmo um canto de resistência. Os cem mil cigarros fungados e vocalizados por Ventura percorrem os locais com uma rara persistência cinematográfica.

Faço todo esse retrospecto e essa linha entre Reis e Costa, para escutar um pouco dos jogos das vozes que ecoam em Cavalo Dinheiro. No último filme de Costa, a fala poética não está restrita à voz isolada de Ventura, mas gera uma polifonia de vozes fora do quadro, vozes distintas, muitas, entre, disjuntas e desconexas. São vozes que flutuam, que perambulam sem estarem atreladas a nenhum espaço preciso, o que é de fato instigante dentro da trajetória do diretor. De certa forma, Cavalo Dinheiro filma um regresso que, paradoxalmente, é impossível; uma volta para uma casa que já não há, pois gerou um refúgio colonial e um desalojamento torpe, fruto da especulação imobiliária. Em termos visuais, o filme de Pedro Costa opta por realçar toda a verve espectral e fantasmática de personagens e corpos que perambulam por não-lugares, como o são os hospitais, espaços que acolhem, mas possuem um relógio, um cronômetro interno que aplicará a necessária expulsão. A tremedeira da mão de Ventura, seu principal sintoma visível, é fruto desse complexo desarranjo espacial.

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Por outro lado, num interessante contraponto, as vozes em Cavalo Dinheiro geram contrastes entre espaços passados e lugares presentes. São os casos, por exemplo, dos interrogatórios a Ventura, sempre em off, ausentes e fora do quadro, das leituras de documentos, das certidões de morte e de nascimentos, dos autos e registros de chegada e saída do estrangeiro a terras que não repulsam em demasia e nem acolhem totalmente. Vozes, essas, protocolares, de colonizadores corporalmente ausentes que organizam e delimitam os espaços possíveis para as vozes e os corpos. Paralelamente, as vozes dos conterrâneos de Ventura criam uma sofisticada ambiência lúdica. São, mais uma vez, sussurros, murmúrios, cantos e sugestões, vozes que geram um diálogo poético, vozes que atravessam corpos, já que não pertencem a chão algum. Vozes atemporais e sem lastro espacial. As vozes, em Costa, e sobretudo em Cavalo Dinheiro, evocam essa busca por lugares perdidos. Por isso, perguntam, numa dessas vozes ausentes, a Ventura: onde você se perdeu? Para quem ele responde: em Fontainhas.

E assim caminham os seus personagens: a falar para as paredes ou a escutar o que os elevadores ou os seus soldados de chumbos têm para lhes dizer. Ao fim e ao cabo, tanto António Reis como Pedro Costa flertam com aspectos da voz epopéica, no sentido do verbo que acontece potente, parente dos coros gregos, sem estarem necessariamente atreladas a uma narrativa ou a um fato dramático. Em Reis (assim como em Straub-Huillet), essa voz está diretamente enraizada ao chão, geográfico, que a torna geológica, mineral, uma voz possível que lá brota e lá se encerra. A partir de Cavalo Dinheiro, as vozes de Ventura despertam um ciclone, veloz e furioso, de vozes que voam por espaços e tempos os mais díspares. É como se essas falas, agora desabrigadas, tivessem, nos corpos presentes, os cavalos de sua atualização, o seu último refúgio. A esses corpos, meio espectros e meio fantasmas, nos sopram falas errantes, murmúrios erráticoss. E por meio de Ventura, o cavalo de todos os demais cavalos, Costa nos lança ao meio de tantas vozes, de tantos verbos, de tanta prosa. Mais uma vez, estamos diante de um filme que nos fisga pela delicadeza imprevisível da escuta.

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