O mecanismo

Se a expressão “cinema de arte” tem alguma relevância, ela se refere principalmente à possibilidade de delimitar todo um “sistema”, termo aqui entendido como um modelo de exploração econômica e de possibilidade de financiamento de obras que engloba uma série de elos da cadeia do audiovisual, entre os quais os festivais seriam das mais centrais (e o Festival de Cannes, como o maior deles, especialmente) – não cabendo aqui nesse momento fazer nem uma defesa nem uma acusação, mas apenas constatar a sua existência. O… CONTINUA

Das formas de invenção do amor

A capacidade de emprestar presença a fantasmas e projeções é uma característica comum entre o discurso cinematográfico e o sentimento amoroso, e nos últimos dias as telas de Cannes estiveram especialmente povoadas por histórias ao redor dessas “encarnações”. Na competição, por exemplo, dois filmes asiáticos vieram propor olhares distintos sobre uma juventude “desencantada” e sua necessidade de tentar completar alguns de seus vazios através da projeção do desejo do amor em personagens que surgem repentinamente em suas vidas. No coreano Burning, novo filme de Lee… CONTINUA

Da ficção pragmática à fantástica realidade

Por detrás da muito discutida falsa dicotomia entre a ficção e o documentário, ou mesmo da igualmente super explorada questão dos chamados “filmes híbridos”, uma das perguntas que parece vir menos à tona – embora talvez seja a que mais falta faça na origem de muitos projetos – é a que questiona acerca dos porquês de fazer ficção ou fabular em torno da realidade, nos dias de hoje. Embora possa parecer algo óbvio à primeira vista, a verdade é que em muitos filmes o desejo… CONTINUA

Desterrar, irromper

Diante da terra, perfurada e remexida, como contemplar o horizonte e o desconhecido? Ali, onde o céu já não é capaz de englobar uma coletividade, como se dava em boa parte dos faroestes norte-americanos, como ir ao encontro de uma comunidade? Western é um filme que reverbera latências, que opera nos intervalos, entre a precariedade das fronteiras, das formas de vizinhança e da comunicação. Não basta, então, que o herói solitário de Valeska Grisebach seja apenas um forasteiro alemão, um pistoleiro envelhecido e melancólico que… CONTINUA

Na órbita dos cínicos

Raramente curadores são protagonistas. Seja em filmes, peças, novelas ou romances, um eventual protagonismo dessas poderosas personas da cultura contemporânea tende a ocorrer pelas coxias, entre os bastidores, distante dos holofotes. Em The Square – A Arte da Discórdia acompanha-se uma sequência de enganos que circundam Christian (Claes Bang), curador de um prestigioso museu em Estocolmo, na Suécia, capital dessa monarquia já acostumada a ser o cenário de flashes mundo afora num dos principais festejos ocidentais de cada ano, o Nobel. Mais do que retratar… CONTINUA

Das superfícies

Existe um paradoxo essencial no cinema de Olivier Assayas, uma dialética entre o aparente e o alegórico que encontra nos elementos culturais e na gama referencial de filmes como Espionagem na Rede (Demonlover, 2002), Traição em Hong-Kong (Boarding Gate, 2007) e este Personal Shopper (2016) norteadores emblemáticos de uma era. Essa bagagem de menções e apontamentos, através de uma conceituação do e pelo aparente ao mesmo tempo que assume tais elementos pelo que eles são – perspectivas tecnológicas em voga e premissas de um cinema… CONTINUA

O abandono da política

Neblinas. Fumaças artificiais. O cinza das penumbras esticando-se por uma cidade. É no mínimo inquietante ver como essas imagens são similares, se repetem e se complementam em três obras aparentemente tão distantes como 300 Milhas, Alipato – a Brevíssima Vida de um Malandro e Penúmbria. Em formatos diversos, esses três filmes traduzem em cenas, ora documentais, ora ficcionais, realidades imediatas vividas por países como Síria, Filipinas e Portugal. Em comum, a falta de horizontes, certos flertes com a distopia, e uma maneira de olhar para… CONTINUA

Um certo olhar (no feminino)

Este ano o Festival de Cannes, como forma de celebrar os seus 70 anos, fez uma adição à sua mais que tradicional vinheta de abertura, na qual degraus saem do fundo do mar até o céu, e chegam na logomarca tradicional da Palma. Em cada degrau, foram adicionados nomes de cineastas importantes na história do Festival, de muitas nacionalidades e épocas. E, no entanto, por mais que o termo em português não tenha gênero, um chocante dado fez-se perceptível nas duas primeiras edições da vinheta… CONTINUA

Continuar

A franquia Resident Evil chega ao fim mais fiel do que nunca, tanto ao mote conceitual de sua proposta funcional – cada filme como uma fase, um sistema fechado de mandamentos formais e referenciais bastante específicos –, como à sua sempre oportuna vocação política. Afinal, nada mais revelador nos dias de hoje do que abrir um filme com a capital norte-americana completamente devastada e recheada de monstros e zumbis à espreita. O apocalipse, como descobrimos neste capítulo final, não é apenas o ensejo perfeito para… CONTINUA

Cool story bro

Em um dos primeiros planos do mais novo filme de Sergei Loznitsa, um pequeno grupo de pessoas se põe à espera. Elas parecem turistas, mas não há pista de onde elas estão. A esta altura do filme, poderiam estar em qualquer lugar: na Disney, no London Dungeon, em um festival de música. Naquele grupo, chama atenção um rapaz em especial, que veste uma camisa com dizeres em letras brancas garrafais: “Cool story bro”. Essa afirmação parece ecoar uma citação hoje já cult no cinema francês,… CONTINUA