Elle, de Paul Verhoeven (França/Alemanha/Bélgica, 2016); Forushande, de Ashgar Farhadi (Irã/França, 2016)

setembro 1, 2016 em Coberturas dos festivais, Em Campo

* Cobertura do Festival de Cannes 2016

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Crueldades, violências e muito cinema
por Eduardo Valente (colaboração especial)

O fato de Elle (foto), do holandês Paul Verhoeven, ser uma obra-prima incontestável, que parece colocar todo o Festival numa outra chave de entendimento e de importância, se tornou especialmente cruel por conta de ser exibido no dia seguinte de Forushande, do iraniano Ashgar Farhadi, como os dois últimos filmes da competição. Além de serem dirigidos por cineastas estrangeiros atualmente financiados pela França (com alguns coprodutores), ambos os filmes tratam praticamente de um mesmo tema, a partir de uma trama muito parecida na sua origem: um ato de violência física e sexual com uma mulher faz mover todo o universo familiar e de personagens ao redor dela. Como método de análise, partir da comparação de como os dois cineastas lidam com os temas da violência, da culpa, do trauma e da vingança seria realmente crueldade grande demais com Farhadi, que apenas faz um filme completamente anódino na sua pretensa dimensão “desconfortável”. Mas não se pode deixar de notar que Verhoeven entende que o cinema pode tratar dos grandes temas sem deixar de ser antes de tudo cinema, como arte narrativa e esteticamente viva, inquieta, perturbadora. O resto é só discurso e afetação pretensamente realista. É, acho que não teve jeito e precisei ser injusto e cruel. A vida às vezes é assim, não seria a crítica que não o seria. Mas mais não direi sobre o filme franco-iraniano porque a injustiça e a crueldade não precisam se tornar espetáculos auto-congratulatórios. Se bem que acho que falei do filme de novo agora.

O que é realmente importante é a grandeza de Elle, obra que se insere com total adequação na carreira brilhante desse cineasta que é, sem nenhum temor, um dos maiores dos últimos 40 anos do cinema mundial. Mas a grande qualidade que emana deste filme é a de permitir perceber como Verhoeven, a essas alturas um daqueles cineastas que poderia fazer um filme admirável com todo seu domínio da linguagem do cinema sem sequer fazer um esforço, não para de se criar novos desafios em vários níveis. Resumir a história de Elle seria um esforço inútil, tal a amplitude que toma a cada desenvolvimento. Mas o que importa é menos ela, mesmo que brilhante – pois poderia tudo estar no livro em que o filme se baseia (não posso afirmar por não conhecê-lo). Mas o que realmente importa é que Verhoeven parte desse roteiro genial sabendo que ele sozinho não faz um filme. Para isso, ele precisa de atores absolutamente precisos, tanto no domínio de sua arte, mas também na construção de seus “tipos”. Precisa de câmera e montagem (nos lembrando por exemplo que, sim, ainda é possível filmar uma cena de violência sexual com impacto real e desestabilizante). Precisa de música e de desenho sonoro. Precisa, talvez mais que tudo, da coragem de usar tudo isso para tirar o espectador de qualquer resquício de posição confortável frente àquilo que assiste. Cinema que não faça isso, parece nos dizer Elle, nem devia ser cinema.

No meio de tudo isso que é o filme (e que certamente ocupará páginas e mais páginas na Cinética no futuro, sem precisar que essa pura reação imediata tente dar conta do seu todo), é preciso sim abrir-se um parêntese para Isabelle Huppert, ainda hoje, ainda sempre. O que ela faz com sua personagem (em conjunto com Verhoeven, claro, pois a atriz sempre fenomenal se adapta muito ao que os realizadores lhe pedem e permitem fazer) é algo de que se falará por anos. Michéle é poderosa sem deixar de ser vítima, e vice-versa, o tempo todo. A cada momento que o espectador imaginar entendê-la, ela irá em outra direção – não pelo prazer tolo de “viradas de roteiro”, mas simplesmente porque ela é isso mesmo (talvez, como fala sobre o seu pai, quando a mãe lhe diz que ele não era apenas um monstro, mas também um ser humano: “mas, um monstro”, responde Michéle). Tornar o monstro humano não é uma desculpa, não pode jamais se aproximar do perdão, pelo contrário: é ver que o humano é que o torna um monstro, não o oposto. Esse é o trajeto de Elle, filme que se aproxima da questão das origens da violência no ser humano com o entendimento de que nunca se poderá cumprir uma simples explicação da mesma, mas não é por isso que se pode condescender com ela. Admitir que o ser humano é violento, cruel e desagradável não precisa ser uma acusação feita de quem olha isso de longe (olá, Farhadi), mas também não precisa ser uma tábula rasa de “bom, somos todos humanos no fundo né”. A Michéle de Huppert é uma heroína moderna não só por não ser heroína, mas principalmente por sê-lo sem ser.

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