A Ferida Aberta (La Gueule Ouverte), de Maurice Pialat (França, 1974)

março 25, 2014 em Em Campo, Juliano Gomes

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Como morrer junto? – observações sobre as naturezas móveis de Maurice Pialat em A Ferida Aberta
por Juliano Gomes

O corpo sob a pele é uma fábrica superaquecida,

e por fora,

o doente brilha,

reluz,

em todos os seus poros,

estourados”

Antonin Artaud

A Ferida Aberta narra o estágio final de um mulher com uma doença terminal, e a vida de seu filho e de seu marido, em seu entorno, nesses últimos momentos. Como de praxe em Pialat, não se sabe exatamente quanto tempo se passa entre uma cena e outra, ou mesmo entre um plano e outro. Mostra-se uma sucessão de pequenos episódios em volta do corpo dessa mulher e também desses dois homens de gerações diferentes. A morte como tema abre uma perspectiva de dobra deste olhar sobre sua própria realização, pois no “método Pialat” o procedimento é sempre o de circundar as coisas com desaparecimentos, com um extracampo que parece ávido a engolir tudo o que é imagem, rumo ao desparecimento. 

Aqui, o corpo moribundo é também o corpo que observa. Esta é a última função que lhe resta plenamente. De certa forma, trata-se do Janela Indiscreta pialatiano, no sentido do discurso sobre o próprio método, pela tematização mesma do olhar. A observação subjetiva raramente é uma questão em Pialat, mas aqui a questão é colocar em cena uma forma de olhar quase impassível, muito focada, quase vaga, mas sempre grave, grávida e intensa. É um olhar que tem como premissa o fim de si mesmo como duração, uma imagem que sabe que é imagem e sabe que está sempre a acabar. Daí a necessidade de construir seu próprio espelho.

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Na porção inicial do filme, há um longo plano que mostra a mãe (Monique Mélinand) e o filho Philippe (Philippe Leotard) conversando sobre a saúde da mãe e o seu passado, dentro de casa, à frente de uma janela. O plano começa com Philippe, próximo, fechando a janela de vidro; então senta-se; sua mãe está ao seu lado; há uma garrafa e comida na mesa. Comem, conversam e, depois de alguns minutos, o filho levanta e decide pôr uma música na vitrola que está atrás deles. A câmera o acompanha, abrindo o campo de visão. Ele coloca a música e se senta. Os dois corpos permanecem sentados por mais um bom tempo, fumando, comendo, em silêncio, sem olhar exatamente para nada, mas com os olhos abertos. O telefone toca, ele atende, abaixa a música, e, depois da ligação, o plano termina, depois de quase dez minutos. 

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Há, neste plano, uma declaração de princípios, pois o filme vai acompanhar esses corpos e buscar a duração e a forma de seus gestos, as variações que eles podem oferecer ao desta situação que, de certa maneira, é a de todos nós: a morte iminente. A conversa sobre o passado da mãe, sobre seu casamento, perde nossa atenção rapidamente, que passa a se dedicar às intensidades dos corpos como matéria. As mãos na garrafa e no copo, o cacho de uvas, o iogurte. A extraordinária fotografia de Néstor Almendros ressalta o problema das naturezas mortas: estão lá, sobre a mesa, frutas, garrafas, uma grande amplitude tonal, e, obviamente, os corpos. Mesmo guiada pelos corpos, a imagem produzida por esse cinema espalha o “humano” pelos objetos, ou espalha a “objeticidade” pelos humanos. É este encontro, desta tradição da representação pictórica do humano e do não-humano, que Pialat traz em evidência aqui.

Nú Descendo Escada (1887), Eadweard Muybridge

Nú Descendo Escada (1887), Eadweard Muybridge

O cinema de Pialat, evidentemente ancorado nos Lumière, é também um desdobramento do trabalho de pioneiros como Eadweard Muybridge e Etienne Jules Marey. Trata-se de uma extensão das sequências fotográficas, da curiosidade científica e amor pelos corpos em sua materialidade. Na primeira cena do filme, no hospital, Monique faz um exame que parece um raio-x. Num dos poucos closes, vemos a máquina projetar sobre seu corpo uma medida, uma sequência de números sob a forma de luz. O interesse pelo corpo e suas variantes em A Ferida Aberta atinge um dos momentos máximos da obra de Maurice Pialat. Por todo o filme, é disso que se trata: posicionar a máquina-cinema para que possa captar alguma coisa viva nos corpos, estes depósitos de vida e morte. Corpos e máquinas – a máquina como aquilo que produz coisas, pois a forma aparentemente modesta do filme (planos médios, poucos cortes, luz natural) é a armadilha desse cinema que não cessa de dobrar-se sobre si mesmo. 

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A duração e o desnudamento, evidência da concretude e concretude da evidência, fazem com que a dimensão documental da filmagem esteja absolutamente em primeiro plano, ao mesmo tempo em que é ela mesma a sua força de ficção, humana e não-humana. O enredo está intimamente ligado a este método de representação: são esquetes à beira da morte. E o fora do filme, nós, máquinas em frente a máquinas, somos parte desse jogo, assim como os atores, e o próprio Pialat (não parece necessário ressaltar a dimensão de sugestão autobiográfica nos seus filmes, neste caso catalisada pelo personagem Philippe) o são. O realismo aqui não é fim, mas meio de uma cadeia que liga a inscrição verdadeira da objetiva da máquina-câmera, que produz essas ficções de certa maneira idênticas às filmagens, e que narram processos absolutamente ligados à experiência corporal e temporal de assistir ao próprio filme. 

No cinema de Pialat, os corpos tendem à imobilidade, e é quando eles param que podemos penetrá-los e absorver sua imagem que, por sua vez, está absorvida por alguma outra coisa que não sabemos bem o que é. Na pintura, o olhar vago dos personagens do Impressionismo aparece também como essa força que confunde os vetores do interior e do exterior: ele está olhando para o quê? Nunca saberemos, mas pode-se dizer que olham para o nada. Se “olhar para o nada” é olhar para dentro, a opacidade dos personagens aqui, sua inviolabilidade, faz com que esse “dentro” seja também parte desse grande extracampo que o filme produz. O interior, o mundo subjetivo, é como a luz estourada lá fora, que, na forma de janela, acompanha todo o filme. Só há então superfície, pele, volume, e fora. 

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Ao mesmo tempo, tudo o que não é superfície atua sobre ela, provoca-lhe micromovimentos, variações sutis ou bruscas – membrana e película. E mesmo os personagens parecem desconhecer esse espaço além (vide a cena da ejaculação precoce de Philippe ou a explosão de choro de Roger). O desconhecimento em relação ao instante seguinte, e aos diversos níveis de profundidade, é radical e geral: ninguém sabe de antemão o que se passa dentro ou fora – dos corpos, das casas, das luzes. Esse esquema torna o desenrolar das narrativas de Pialat absolutamente magnético. Trata-se de um mundo onde tudo é variação infinita, onde tudo reage, e de maneira que dificilmente poderíamos prever, pois nem mesmo os personagens podem. A cientificidade da observaçao é causada por esse espanto infinito diante dessas porções de matéria indomável (daí uma fixação pela morte, pelo desaparecimento, quando há esperança – falsa – de isso cessar). E não por acaso, predomina uma discreta, porém marcante, organização desses elementos no quadro. É preciso dar um lugar justo a estas máquinas desejantes em observação e possibilitar a expressão de sua força de conjunto (a tendência aqui é mirar o concreto e não o abstrato, como uma fragmentação de corpos poderia sugerir). A ideia de composição, variando em harmonia e desarmonia, torna-se crucial: é preciso encontrar um lugar onde se possa fazer uma combinação, uma coincidência dos corpos entre si e em relação ao quadro, que é “nosso órgão” na relação de espectador. Uma combinação de posições que permita a passagem das intensidades pela pele, tela.

A “goela aberta” do título original descreve também um fenômeno que acontece com os cadáveres, que mantêm a boca aberta. Essa abertura – que dá acesso ao interior do corpo; ao que não vemos nele – é entrada para essa dimensão de o que não tem imagem. Assim, tratam-se aqui de aparições, de constatar uma imagem possível diante do interior que ameaça como doença, como descontrole, e do exterior como desaparecimento, como justamente não-haver-imagem. Da fúria do corpo, é preciso manter a distância produtora, de onde possamos observar-lhe a riqueza e não violar-lhe a inteireza. Daí o predomínio do plano médio como meio, do plano de conjunto. O que importa é estar ao lado, testemunhar, caminhar junto, estar perto, mas não perto demais. O mesmo se faz com o corpo da mãe doente: permanecer perto, tentar conservar o quanto for possível, pois o desfecho não tem solução. Resta somente uma coisa a oferecer: presença. É essa a moeda nas relações de troca para dentro e para fora do filme: oferecer-se como presença (aparição). Diante do tempo como morte e da morte como triunfo do tempo, não há muito o que falar, nem mesmo o que consolar ou enganar, mas permanecer, oferecer-se como presença, como centro de energia vivente, como algo que pode, se necessário, se movimentar. 

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Filho da morte, o sexo é tema aqui. Philippe e seu pai são atraídos pelas mulheres – mais especificamente, por seus corpos. Eles tocam os corpos de maneiras variadas, apalpando a bunda da esposa ou carregando o corpo da mãe recém morta. Ao seu redor, forma-se um intenso repertório de poses dos corpos nus – deitados na cama, na maca, caminhando, sentando-se no bidê, despindo-se, vestindo… experimentando, afinal. Retratar essas naturezas móveis é mantê-las na tela enquanto matéria que deseja, que quer algo, que se move como refém dessa força impessoal, que não se sabe de onde vem (fora, dentro) e não sabe bem para onde vai; o sexo como produção a serviço da improdução, como dispêndio improdutivo. A mistura de angústia e fixação que seus filmes causam é fruto desse irmanamento de sensações dentro e fora do filme. A boca, a ferida, está aberta, e é irresistível e terrível verificar seu “dentro”. Não há nada, só o desaparecimento como elemento definitivo. O prazer, a parte viva, é esse mover-se do liame, ligando o dentro e o fora em sua variação de ritmos e formas.

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É preciso compor com a escuridão, achar o ponto dessa ampla latitude de estados cinéticos. É isso qÉ preciso compor com a escuridão, achar o ponto dessa ampla latitude de estados cinéticos. É isso que maneja, com brilho, Pialat. A “subjetiva” torta do carro de Philippe na penúltima sequência do filme é um material dessa natureza, na medida em que descreve a desgraça muda de Roger, através do vidro, e dá forma a sua pequeneza, com o carro em movimento, em relação à partida do filho para Paris, e à própria morte e desaparecimento como temas aos quais o filme incessantemente retorna. A recorrência dos vidros (aqui, o do carro e o da porta da loja) é justamente como o material que permite a passagem e, portanto, as relações. Cada janela é uma lente, uma retina, uma produção de luz, e um espelho – refração e dobra. A idéia de vida é uma invenção do olhar, e a linha que atravessa Cézzane, os Lumière e Pialat é justamente esta da visão como produção de vida, como fabricação de experiência, pela composição dos movimentos internos e externos e pela criação de um ambiente onde esses vetores vão se confundir sem se anular – durando, enfim – em suspensão, diante da ameaça e certeza do limite, da moldura, do corte – represa que catalisa suas fúrias internas. Para terminar a série de aparições, Roger lentamente apaga as luzes, uma a uma, como que se despedidndo de nós, se despedindo da visão, atravessando seus estágios intermediários, até nos devolver a escuridão (não por acaso, não há nenhum crédito final). E assim vamos, juntos.ue maneja, com brilho, Pialat. A “subjetiva” torta do carro de Philippe na penúltima sequência do filme é um material dessa natureza, na medida em que descreve a desgraça muda de Roger, através do vidro, e dá forma a sua pequeneza, com o carro em movimento, em relação à partida do filho para Paris, e à própria morte e desaparecimento como temas aos quais o filme incessantemente retorna. A recorrência dos vidros (aqui, o do carro e o da porta da loja) é justamente como o material que permite a passagem e, portanto, as relações. Cada janela é uma lente, uma retina, uma produção de luz, e um espelho – refração e dobra. A idéia de vida é uma invenção do olhar, e a linha que atravessa Cézzane, os Lumière e Pialat é justamente esta da visão como produção de vida, como fabricação de experiência, pela composição dos movimentos internos e externos e pela criação de um ambiente onde esses vetores vão se confundir sem se anular – durando, enfim – em suspensão, diante da ameaça e certeza do limite, da moldura, do corte – represa que catalisa suas fúrias internas. Para terminar a série de aparições, Roger lentamente apaga as luzes, uma a uma, como que se despedidndo de nós, se despedindo da visão, atravessando seus estágios intermediários, até nos devolver a escuridão (não por acaso, não há nenhum crédito final). E assim vamos, juntos.

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