O Que se Move, de Caetano Gotardo (Brasil, 2012)

maio 16, 2013 em Cinema brasileiro, Em Cartaz, Fábio Andrade

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Janela entreaberta
por Fábio Andrade

O Que se Move, de Caetano Gotardo, começa com Pedro (Wandré Gouveia) sentado na cama, de costas para uma janela entreaberta. Por esta fresta, entra a brisa de mau agouro que se espalhará por todo o filme. Voltaremos a esta janela em outro momento, mas ela estará bem mais aberta do que aqui, deixando que a luz entre para iluminar um quarto já vazio, desabitado. Este primeiro plano, porém, não é exatamente o que precede o do quarto vazio com a janela aberta, no momento decisivo da primeira das três histórias – a imagem interdita que o filme de fato não mostrará – mas faz função semelhante, marcando origem e destino como um mesmo ponto em um único círculo: o que veremos, entre estes dois momentos neste mesmo quarto, é um último dia, um prosaico ritual de despedida que ignora os bons modos de se apresentar ao entrar… um jogo de dissimulação imprevisto até para os próprios jogadores.

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Mas, por enquanto, é apenas um garoto sentado na penumbra, de costas para a janela, sem nada para fazer. Somos permitidos alguns bons segundos dessa suspensão, dessa tentativa de se filmar o tédio, até que sua mãe entra e tira seu olhar da fixação no nada. É seu último dia de férias e, na adolescência, as férias, que tanto romantizamos na vida adulta, são mesmo como uma longa espera (em parte, como a própria adolescência). Esta questão surge na pergunta essencial que desconhece, ainda, o significado da palavra “rotina”: o que faz o cisne preencher o tempo dele? O Que se Move começa no último dia de férias, no último ano que antecede o vestibular, porque tudo aqui é último… toda espera à margem é apenas um ritual de preparação para a entrada em uma vida adulta que este protagonista, em tese, conseguirá evitar em seu abraço fatal e perverso à eterna infância, antes de ser necessário trabalhar – entrar na água, comer, dormir e fazer tudo de novo – e não ser mais possível andar por aí feito um zumbi (como diz sua mãe, no primeiro diálogo do filme).

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Ninguém fica, realmente, sem nada a fazer. Nem o garoto, nem o cisne, nem o filme. O Que se Move sai do apartamento com a certeza de que será necessário voltar, mas, antes disso, se permite uma volta no parque. Há uma flutuação rohmeriana na primeira parte deste tríptico que não diz respeito apenas às conversas, às caminhadas, à juventude dos rostos e à escolha de locação. O que remete ao cinema de Eric Rohmer é justamente a possibilidade de mudança do foco de atenção: quando dois adolescentes compartilham uma conversa desinteressada (e, para a dramaturgia tradicional com a qual o filme flerta sem aderir, desinteressante), há chance (para o filme e para o espectador) de olhar para outros lugares, para as cores que grudam à retina (Rohmer dizia que seus filmes muitas vezes nasciam da escolha de uma cor), para os detalhes de uma roupa ou um estalo feito pelos joelhos. O que imprime neste último dia de ócio é um casaco de moletom azul e uma conversa que fala sobre o esforço em ver um poste na rua e pensar somente no poste, até passar por ele… pensar no poste, e em mais nada, para, depois, chegar perto e ver que o poste enferruja, para então pensar na ferrugem, e em mais nada. O que imprime neste último dia é a possibilidade de olhar para cima e ver os galhos enferrujados de uma árvore que, anunciando o futuro daqueles personagens, troca de casca. “É tudo a mesma coisa”, diz a menina. E de, em uma conversa, ser possível enxergar mesmo de olhos fechados… de concentrar a atenção para poder ver o que não está lá.

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Mas este passeio no parque não será, exatamente, a walk in the park. Há certa dificuldade na mecânica das cenas que traz um desconforto insuspeito– o atropelo do tempo necessário (para nós e para personagens que se querem críveis) entre pensar uma frase e dizê-la; a imprecisão na escolha de um tom que, aqui, parece perdido um tanto acima do naturalismo, um tanto abaixo da estilização; a sensação de que muito do que é falado talvez tenha sido escrito para ser lido, e não para ser dito. Até que, em certo momento, uma brincadeira de estátua evoca a maldição anti-Lumière de Fim dos Tempos, de M. Night Shyamalan – o que, por um lado, não poderia estar mais distante do cinema de Rohmer – e, ali, O Que se Move revela seu unheinmlich, com a afirmação da única moral da história a ser concluída do seu inevitável porvir, a partir de uma última conversa franca à mesa do jantar, ou uma última noite secreta na frente do computador: as aparências enganam.

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É aí que chega a polícia, e aquele filme até então doce e vacilante nos arranca as vestes de mãe cega e generosa com uma violência que não tínhamos razão para suspeitar ou prever. Há demônios escondidos no fora de campo, reafirmando o velho ditado popular que, de certa forma, traduz o ócio daquele olhar fixo no nada que abre o filme: cabeça vazia, oficina do diabo. Naquele breve ínterim entre a queda da máscara e a revelação do rosto que ela escondia, O Que se Move encontra seu tom, seu ritmo e sua melodia: uma canção que expurga o melodrama da mãe que sobrevive ao filho, que diz que ele gostava do que dizem que ele gostava, mas que ele também gostava de outras coisas. Naquele musical congelado feito Paisagem na Neblina, de danças que não esboçam mais do que a sincronia de pequenos movimentos, nasce a percepção de se estar diante de um dos mais bonitos filmes do cinema brasileiro recente.

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Há um artifício onipresente em O Que se Move: a passagem de uma história a outra (ou da fala à canção; ou do som diegético para o musical rasgado) é sempre feita de forma fluida, em cross-fade sonoro ou visual, criando uma sensação de continuidade, mais do que de ruptura. Caímos na segunda história do filme, mas permanece a impressão de não termos saído da primeira… de que, apesar de interrompida bruscamente, uma de certa maneira continua na outra. O Que se Move, um filme todo marcado por planos que delimitam a finitude, encontra neste artifício a possibilidade de fazer a vida escorrer (por uma porta ou janela) de um momento a outro, de uma história a outra, de um plano a outro. A despeito do mergulho do alto do prédio, algo sobrevive. Eduardo (Rômulo Braga) volta como cisne, e com ele vão-se embora as respostas fáceis: cabeça cheia, oficina do diabo. Sua maldição será se deixar levar pela mecânica de nadar, comer e descansar à beirada do lago. Se ele vive o que o protagonista da primeira história preferiu não viver – não só a vida adulta, mas também o fardo da culpa, que o filme sabiamente preserva em um doloroso pão com manteiga, mantendo as reverberações do evento central desta segunda parte, o evento a que tudo antecede e do qual tudo o mais apenas decorre – seu drama não é muito diferente: falhar em olhar para o poste e ver apenas o poste, até passar por ele.

Os caminhos, porém, são inversos. Se a maldição da primeira parte de O Que se Move começa com uma janela entreaberta, aqui é justamente a falta de ar de uma janela fechada que produz a imagem interdita. Se lá, no drama primeiro, somos pegos de surpresa com a chegada da polícia, aqui – como, já surpreendidos, não há mais surpresa possível – o filme se encarrega de anunciar, em cada gesto de Edu, aquilo que todos sabemos, mas desconhecemos: uma porta do estúdio de gravação é aberta na hora errada, a janela do escritório é escancarada como tentativa de buscar do lado de fora o ar que falta do lado de dentro. A constatação da doença é constante, seus sintomas são claros, e ao final Edu dirá isso como forma de se explicar à mulher: eu juro que percebi que havia algo de errado.

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A irregularidade que enganava na primeira parte do filme é substituída, aqui, pela precisão absoluta dos gestos e dos tempos. Afinal, a maldição de Eduardo não é fruto da falta do que fazer, mas sim se permitir dar atenção demais às coisas “erradas”, se deixar ocupar com o que havia de menos importante, sem perceber o poste, sempre o poste, preso em uma cadeirinha no banco de trás, no sono fácil do balanço do carro. Edu apenas reage e aí está sua miséria. Por isso teremos tão poucos planos de reação ao longo do filme (e os poucos que existem ganham, na raridade, uma importância ímpar): a maior sabedoria em jogo está em escolher ao quê dedicar atenção.

O Que se Move não é exatamente um filme de quadros extraordinariamente bem compostos (um filme de molduras), mas um filme de alguns planos extraordinários (um filme de escolhas) – ou, como já escreveu por aqui Luiz Soares Júnior, um filme do tempo. Surgem, deste sentimento, os planos longos, fixos feito pilares na decupagem entrecortada, não só do cisne catando com o bico algo que se esconde entre as penas na primeira parte, mas também e principalmente o da bebê nesta segunda parte, absolutamente concentrada em brincar com dois grãozinhos, ou dois ramos de brócolis, um par de cada vez. E, em seguida, o mais forte plano de reação de todo o filme: as mães (e mal sabe uma delas o que acontecia com seu filho naquele momento…) observando o bebê, conversando, sorrindo e contorcendo o rosto em espasmos de afeição para a pequena criatura que, de tão concentrada no poste, somente no poste, provavelmente nem vê todas aquelas caretas.

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O drama de Eduardo é ser pai, e não mãe. A maternidade – diferente da paternidade – é experiência concreta, conexão física que permite interação entre campo e contracampo. Eduardo, ao contrário – em outro dos planos dignos de antologia do filme – olha, em incômodo inerte, o som projetado pelas caixas do estúdio, simulacro de uma fisicalidade que não está mais lá. Como no primeiro plano do filme, um homem olha para o nada, mesmo acreditando haver algo lá. Nesse sentido, o jogo proposto por O Que se Move é oposto ao de O Menino Japonês, curta que Gotardo dirigiu em 2010: lá, a ausência restaurava a presença por meio do relato, da fala; aqui, a presença aponta sempre para a ausência. Em seu texto aqui da Cinética, Filipe Furtado fala justamente do lado “crônica de reaparecimento” de O Que se Move, em sua política de re-preencher os espaços. Mas não se volta do túmulo sem esconder, sob a presença, o peso de uma ausência. Eduardo olha para o som que sai das caixas como nós olhamos para as imagens projetadas em uma tela de cinema: está tudo lá, de fato;  mas, ao mesmo tempo, nada está. Se o teatro é a expressão do sentimento materno – a experiência concreta, conexão física que permite interação entre campo (cena) e contracampo (platéia) – Rômulo Braga é ator de cinema (de montagem visível): toda imagem nos chega mediada, desconectada, órfã. Por isso, resta ao cinema o logos, a escritura que é mais do que a simples gestão dos elementos. Na ausência, na orfandade da presença, nasce a possibilidade do musical.

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Até que chegamos à terceira história, e aquele tour de force, obstinado rumo ao fim, por um momento estanca, inverte o eixo, muda de rumo. Pois a terceira história não é daquilo que deixou de ser, mas justamente do que voltou a ser. Fábio/Antônio (Gabriel dos Reis) é o filho tido por perdido que, uma vida inteira depois, volta do mundo dos mortos. E volta, também, usando um casaco azul – apenas um pouco mais escuro que o de Pedro; o mesmo, mas diferente, transformado (e há todo um texto a ser escrito sobre o expressivo trabalho de cor do filme, a começar pelas vestimentas em cada uma das fotos que ilustram este texto) – recomeçando uma história interrompida com o salto pela janela e estatelada contra o vidro fechado do carro em um dia abafado. O que resta é alguém a quem dar uma caixa de presente, uma ridícula caixa de presente (ou de fotos, deixada dentro do carro) onde um dia teve-se a idéia de enfiar toda a tristeza do mundo.

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O prosaísmo da caminhada no parque retoma o centro da cena, mas desta vez todos sabem tomar parte em um jogo de dissimulação. Novamente, a câmera se demora em um rosto escondido sob uma grossa camada de conversa jogada fora… mas, se Fábio/Antônio é o poste aqui, porque ficamos reféns da transformação lenta do rosto de Ana (Fernanda Vianna) que, aos poucos, olha para dentro, enxerga de olhos fechados? Desta vez, diz o pai, o choro é de alegria, mas o choro leva ao banheiro, ao momento de solidão que puxa a canção… a esta altura, já sabemos que O Que se Move não é um filme de canções alegres.

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Do banheiro, antes de se entregar à primeira nota, ao princípio da melodia, ela olha pela porta deixada entreaberta pela passagem da sobrinha e vê o rosto do filho, naquele breve ínterim entre a queda da máscara e a revelação do rosto que ela escondia, com os olhos tão perdidos quanto os de Pedro ou de Eduardo, mirando uma televisão fixa no extracampo. Fábio/Antônio está ali. De volta. Pela primeira vez. Mas até quando? Importa pouco que o vôo “pela janela”, ao final, desafie a gravidade no número de ginástica olímpica para o qual o garoto se transporta, em um sufocante almoço de famílias. Como mãe – de tudo que viu com ele e sem ele, mas em função dele, conectada a ele – ela sabe que, por mais presente que se faça ver, toda presença tem no horizonte a certeza da desaparição, e que toda porta ou janela entreaberta em algum momento se fechará.

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