Onde Jaz o teu Sorriso?, de Pedro Costa (França/Portugal, 2001)

março 1, 2015 em Em Pauta, Raul Arthuso

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As entranhas da matéria
por Raul Arthuso

“A alma nasce da forma do corpo”. Essa frase de Jean-Marie Straub, entre tantas outras recolhidas – e esse termo se mostra bastante apropriado, como veremos a seguir – ao longo de Onde Jaz o teu Sorriso? é fundamental na dinâmica proposta por Pedro Costa com o objeto filmado (a remontagem de Gente da Sicília, de 1999, de Straub e Danièle Huillet). Pois Straub faz uma inversão do senso comum quanto à relação de corpo e alma. O mundo cristão e capitalista faz da alma princípio e fim, aquilo que nos move, mas também nossa desgraça, a vida como provação, o corpo como meio para a salavação da alma… duas naturezas em eterno conflito, uma subjugando a outra, mas é a alma que prevalece, colhe os louros da salvação e deixa a culpa na carne (a apodrecer depois da morte). Straub, por sua vez, cria uma outra relação: é a matéria que faz a alma, mas se “alma” é o que anima o corpo, logo, corpo e alma estão numa interdepência orgânica, quase biológica, não fazendo sentido dissociar um do outro. Não há sublimação sem a evidência.

Este é o centro gravitacional de Onde Jaz o teu Sorriso?: vê-se imagens, planos, cortes, películas, ouvem-se pensamentos, discussões; busca-se a anima na coisa visível e no sorriso escondido (a alma?) entre os fotogramas. Mas nada ali se encontra, pois na inversão da relação corpo e alma, esta só se encontra naquela, ou seja, o combustível se manifesta no visível. A alma do filme de Pedro Costa é a inversão, procedimento repetido como um despertar para as coisas.

As imagens do filmepodem ser divididas quase em metades iguais; a primeira, da câmera de Costa posicionada em um canto fixo no fundo da sala de montagem, observando o casal trabalhando na moviola; e a outra, de planos do filme Gente da Sicília, filmados da tela da mesa de montagem. Costa penetra no espaço de criação do casal, por um lado, e na imagem ainda em estado bruto, por outro, observando os detalhes da imagem, ouvindo os cineastas, embora mostrando apenas um movimento geral dos artistas pela sala. Mas, como um bom ouvinte, aprende a lição do mestre e sua busca pela alma deriva para um olhar atento à forma: a película que é montada e depois projetada; o som da palavra que se torna discurso; o corpo que trabalha; os detalhes da imagem filmada a ser recomposta em filme; a luz projetada pelas máquinas na cabine do cinema. Costa busca, nas diversas formas em torno do filme Gente da Sicília – corpos, materiais, sons, luzes, projéteis -, o que o torna uma obra.

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É comum que a relação com a arte seja a de um grande assombro, como se ela fosse um acontecimento extraordinário, de relação sobre-humana com o espectador. Diante de obras-primas, existe uma dualidade monumental: se somos pequenos diante delas é porque acreditamos na alma emanada dali, representando alguma altivez que não dominamos, mas sentimos. Os documentários sobre os grandes clássicos encontrados no meio de quaisquer extras de DVD ficam frequentemente no anedótico, celebrando essa altivez da obra-prima como algo inerente a ela e à parte de sua feitura. Por sua vez, o making of, para além da propaganda em torno do evento-filme, volta-se para o ato técnico, como se tudo mais fosse descartável ou, na melhor das hipóteses, apenas um dado. O filme de Pedro Costa é a antítese desse olhar para o fazer cinema, pois afasta-se da celebração e do corriqueiro, coloca-se no “entre”, voltando seu olhar para a tensão das relações entre o material e o pensamento, o racional e o intuitivo, o corpo e a alma – jogo fundamental no ato da criação.

Onde Jaz o teu Sorriso? se alinha à máxima de Gombrich, na qual “aquilo a que chamamos Arte não existe. Existem apenas artistas”. Então, o filme tira o monumento de seu espaço divino e o coloca na terra firme novamente, na figura desses dois titãs que encarnam cada um uma faceta do jogo dialético da criação: Straub é inquieto, falastrão, racionaliza cada decisão com um arsenal teórico erudito; Huillet mantém a concentração, o espírito prático, mas com necessárias explosões frente ao “longo caminho” do raciocínio de seu marido. Mas até na relação do casal se faz uma inversão do senso comum: é a mulher quem tem o espírito prático e a assertividade das decisões, enquanto o homem devaneia pela embriaguez das idéias. O jogo da criação se faz diante de nossos olhos, as idiossincrasias dos artistas expressas no tormento da decisão de um corte.

A dupla Straub-Huillet poderia ser retratada como deuses, e não seria difícil colocar-se assim diante da sua dinâmica de trabalho. Essa pista surge quando Costa filma a apresentação das sessões da obra do casal na Cinemateca. Straub fala para seu séquito, mas Costa não se atém à exposição dele, nem ignora seu entorno; ele expõe o olhar desinteressado de Huillet, como alguém que já conhece o discurso de longa data, e mostra a platéia quase vazia, deixando claro o poder de culto limitado do artista hoje. Onde Jaz o teu Sorriso? faz o ídolo de carne e osso, retirando-o do pedestal. Se o filme trabalha com dicotomias em discussão, Costa se coloca nas fissuras, fazendo de seu documentário um olhar de relação: a distância entre Straub e Huillet (eles raramente se tocam ao longo do filme), entre Costa e o casal, entre dois planos cujo corte leva minutos para ser acertado, entre a imagem do filme Gente da Sicília na mesa de montagem e ela mesma no filme de Costa.

Assim, o diretor português procura o corpo em suas formações e o filme resultante é um evento da materialidade. “A matéria decide a duração dos planos” diz Jean-Marie Straub a certa altura, complementando a frase que inicia esse texto. Em sua simplicidade franciscana, Costa mergulha no material de Gente da Sicília, criando um jogo entre a filmagem da imagem em película e o digital de sua captação. Primeiro, essa relação se dá no aparato reiterada sempre pelo filme: projetores, moviolas, rolos, negativos, cortadeiras, roldanas… todos instrumentos mecânicos, grandes, pesados, que condicionam o ritmo do trabalho do homem a um método próprio, como um registro de uma interação entre o humano e a máquina em vias de desaparecer. Há um artesanato em ação: o ritmo do processo de Gente da Sicília é o do material, do procedimento – e o adjetivo “cirúrgico” caberia a diversas seqüências que se detém sobre um corte específico. Se, na era moderna, a máquina é o símbolo da velocidade e da padronização, Costa atesta a arte de Straub-Huillet como a do ritmo da consciência. Como escultores, o casal talha a obra pouco a pouco, encontrando no próprio material sua forma, um trabalho intelectual tanto quanto manual, vagaroso no ritmo da ideia e de encontrar o ponto certo também físico em retirar as rebarbas de cada plano. Straub e Huillet esculpem (mais que qualquer outra coisa) Gente da Sicília.

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Nesse mergulho ainda, Pedro Costa se apropria da imagem de Gente da Sicília para uma nova inversão. As várias imagens do filme em questão não são material de arquivo telecinado, mas a própria película projetada na moviola e filmada pelo cineasta português por uma câmera digital de baixa resolução. Costa se detém nos fotogramas, procurando as fagulhas de materialidade: a aleatoriedade dos grãos, os riscos, os pulos e instabilidades da reprodução mecânica, as imperfeições das pontas brancas dos rolos, aberturas e fechamentos do obturador – a beleza de todos os “erros” características do 35mm. Os fotogramas vão e vem, param, e revelam igualmente detalhes de Gente da Sícilia e da própria película. Mas não se trata de um gesto regressivo, uma elegia ao negativo – do qual o próprio Costa abdicara em favor do aparato leve do digital. O plano do trabalho do casal que mais se repete em Onde Jaz o teu Sorriso? é a câmera no fundo da sala de montagem com pouca luminosidade, mostrando a moviola e a porta aberta do lado direito do quadro, com bem mais luz do lado de fora (em geral com alguma movimentação de Straub, sempre inquieto). Existe uma limitação da câmera de vídeo: sua baixa definição impede, por exemplo, identificar claramente a textura do plano de fundo além da porta – seria um telhado? Uma parede texturizada? Um reflexo? Quando filma a película de Gente da Sícilia, o diabo se senta sobre o ombro do espectador: a imagem em película filmada por uma câmera digital de baixa qualidade e depois transferida novamente para uma película para ser exibida (Pedro Costa sempre foi um defensor das projeções em 35mm, mesmo quando filma em vídeo) amplifica o mergulho em suas entranhas, tornando-se indecifrável a quem pertence qual textura, de qual camada vem a aleatoriedade ou os riscos e fagulhas na imagem. Mais ainda, a projeção em película do filme torna-se parte integrante de Onde Jaz o teu Sorriso?, na medida em que o desgaste da cópia contribui para esse jogo de naturezas visíveis. Em mais uma das inversões de paradigma do filme, a imagem digital nunca foi tão material quanto aqui: toda impureza da película é incorporada pela imagem digital e, então, concretiza-se o ideal orgânico da relação corpo e alma: a Gente da Sicília vista no filme de Costa não é a imagem de Straub-Huillet, mas uma encarnação dessa matéria numa outra matéria, que, por sua vez, descreve um processo, tornando um espaço “entre” visível, material.

Na recente exposição dos desenhos do artista Richard Serra no Brasil, no Instituto Moreira Salles, uma série chamada Courtauld Transparency relaciona-se intimamente com esse procedimento. Nela, Serra desenha despejando uma massa de giz litográfico derretido sobre duas placas de acetato transparente. Terminado esse processo, o artista pega uma terceira placa de acetato transparente e faz um sanduíche com as outras duas placas cheias de massa, dando uma leve espremida. O “desenho” assim exposto é a forma da massa que fica retida nas duas faces da placa intermediária. Cria-se uma relação curiosa da existência de dois desenhos, duas formas diferentes em cada lado do acetato exposto que gera a relação de presença e difusão do material no desenho, efetivando a sensação de peso, materialidade e movimento de alguns desses desenhos. O importante, contudo, não é entender o desenho de cada face do acetato, mas perceber a relação processual impressa no resultado final da obra: o desenho é o resultado de um trabalho encarnado na matéria residual exposta. Existe uma dimensão material, espacial e temporal na obra de Serra. Na entrevista em vídeo realizada pela curadoria da exposição com o artista, ele expõe seu método de desenho, arrematando com uma máxima não muito distante daquela proferida por Straub: “A matéria informa a forma”. Muitos dos outros desenhos de Serra nessa exposição trabalhavam com depósito de material na superfície de papel, criando uma camada sensível da matéria do desenho (seus desenhos são também esculturas), mas, principalmente, uma relação entre o preto do material de desenho e o branco do papel, chamando a atenção para o “não-desenho” como constitutiva da obra.

Não me parece um procedimento muito distante o de Pedro Costa. A verdadeira obra de Onde Jaz o teu Sorriso? está “espremida” entre: Straub-Huillet como retrato de uma relação; filmagem e projeção enquanto montagem; duas películas enquanto imersão nas entranhas da imagem; o casal e o realizador, na relação entre mestres e discípulo, este trazendo para o interior do filme-homenagem os ensinamentos que recolhera ao longo do processo. Gente da Sicília poderá ser apreciado por muitas gerações. Pedro Costa faz a homenagem mais efetiva ao casal Straub-Huillet ao dedicar-se principalmente ao registro dessa arte em extinção de “esculpir um filme”. O Gente da Sicília de Onde Jaz o teu Sorriso? – esse algo que existe “entre”, nem filme nem material bruto – é aquilo que fica de fora: os erros, as rebarbas, as entranhas da matéria.

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