Leviathan (2012), Lucien Castaing-Taylor e Véréna Paravel

julho 14, 2013 em Em Vista, Pablo Gonçalo

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Travessia
por Pablo Gonçalo

O céu cai das pombas.
Ecos de uma banda de música
Voam da casa dos expostos.
Não serás antepassado
Porque não tiveste filhos:
Sempre serás futuro para os poetas.
Ao longe o mar reduzido
Balindo inocente.

(Murilo Mendes, “Janela do Caos”)

Vede, peixes,
quão grande bem é estar longe dos homens.

(Padre Antonio Vieira)

Existem filmes que reverberam de forma singular. São como objetos não identificados, que destoam e chamam a atenção não apenas por buscarem um cinema de inovação ou uma estética de risco – palavras gastas, institucionalizadas – ou ainda por colocarem em xeque tradições bem difundidas. Não; essas seriam obras ímpares, quase impalpáveis. Filmes que atravessam os espectadores com uma flecha de sensações imprevisíveis; atingem, atravessam – e talvez proponham algo que beire o indecifrável, ausente, pois, de um discurso pré-formulado.

Leviathan, de Lucien Castaing-Taylor e Verena Parável, é um desses casos, um filme-travessia. Embora retrate um navio de pesca em alto mar, em constante e bruto movimento; um navio que mais parece uma máquina de morte e destruição, esse retrato não traduziria uma sinopse com exatidão. Há, contudo, algumas pistas. Sabe-se que os diretores passaram um ano com doze câmeras nos cantos mais inusitados desse navio, e, dali compartilharam imagens, cenas, tão-somente instantes. Não há precisamente uma ênfase descritiva, que visa acompanhar o cotidiano ou o modo de vida daqueles que estão no navio pesqueiro. O que vemos é uma cosmologia, um horizonte vertical e curvilíneo, em dobras espaço-temporais, que dispõe uma dinâmica ontológica envolvendo os peixes, os homens, o barco, as gaivotas. Sem enredo no seu sentido mais tradicional, esse filme – que não é bem um documentário ou um ensaio e sequer tece fios ficcionais  – tampouco se restringe a uma observação neutra, como seria a difundida mosca na parede do documentário observacional caro a Frederick Wiseman. O gesto poético de Leviathan situa-se nessa dinâmica de transições; entre a água, o leme e o céu. Transições sensóreas, alterações e perturbações de perspectivas.

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Ainda que seja um ente inusitado, o filme possui atos claros, cadenciados pelos longos momentos em que se puxa a rede do mar, numa espécie de arrastão. Em Leviathan, isso ocorre exatamente quatro vezes. Na primeira, a rede surge enigmática, misteriosa e atrelada a um intuito narrativo. Como se a corda estivesse entrelaçando o mar, os peixes, o barco, o céu – como se fosse um tênue fio de condução, um sopro narrativo, a apresentar os elementos, as figuras corpóreas, mais do que personagens, que vão compor o filme. Vê-se a curiosidade das aves e dos homens, a mudez assustada dos peixes. Na segunda puxada vem o corte, a separação, a disjunção, entre vida, agonia e morte e um tom rubro que espalha-se pelo convés. De forma quase robótica, e certamente insensível, os homens esquartejam os peixes, selecionam os melhores pedaços, jogam ao mar os dejetos dos corpos já despedaçados. Nesse instante, a câmera gruda nos cardumes e parece ser mais um daqueles peixes, esperando pelo corte. No mergulho mais profundo, numa espécie de terceiro ato, joga-se o espectador ao mar para acompanhar o retorno dos peixes mortos ao seu abrigo natural. O que vemos são veias cortadas, ainda pulsando, e um tom escarlate diluído pela água. Não é bem vermelho, nem é apenas sangue, para lembrar de um aforismo de Godard, mas tanto um vermelho-sangue como um sangue-vermelho, numa acelerada difração, nem real, nem apenas imagem, mas um instante de desintegração captado e iconizado pela câmera. No quarto e último ato, são as gaivotas que piam, que cheiram, que voam agitadas sobre esse mar candente, envolto de sangue.

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O filme, curiosamente, parece seguir essa cadeia alimentar nos dejetos que ainda estão no mar, não chegando a registrar a boca e os dentes, humanos, demasiadamente humanos, que mastigarão, engolirão e farão a digestão daqueles pedaços. Em Leviathan, não há compaixão; seja pelas aves, pelos peixes, pelos homens. Há simplesmente fome – ou um irreversível processo de transformação.

Trata-se de uma obra composta pela instabilidade. Com um notável trabalho de câmera, e uma montagem inusitada, as imagens trepidam, se mostram, se desfazem, e se recompõem com uma dinâmica ímpar. São imagens evanescentes, molhadas demais, diluídas, em dissolução. Quando menos se percebe, estamos imersos diante de uma materialidade que se impõe com força e delicadeza e tal imposição talvez seja o principal gesto poético dos seus diretores. Eles não representam, não narram, nem apenas mostram, de forma (im)parcial. Intensa, a câmera sempre mergulha: impõe um mundo aquático para retinas terrestres. E essas câmeras saem da água da mesma forma como vieram, súbitas, oscilantes, trepidantes como a agonia do peixe, impondo um habitat – material, sensório – que nos é impossível, inclusive, de realmente perceber.

Por isso o tom estético do filme é predominado por águas. É como nas imagens de Bill Viola em algumas das suas vídeo-instalações, quando indivíduos mergulham, jogam-se na água e, ali, filma-se, numa câmera lentíssima, a desintegração visual do corpo, sua passagem que atravessa a transposição pelos estados da matéria. Como observadores, vemos os movimentos da água que tangenciam e contornam o corpo humano, numa câmera fixa, num voyeurismo que transmite, esteticamente, uma mímesis especulativa da sensação da matéria quando em estado líquido. Embora próxima dessa dinâmica de Bill Viola, em Leviathan é a própria câmera quem mergulha em águas mais turvas e perigosas. Não vemos um corpo como objeto, mas uma câmera que transforma-se em corpo, que elide a distância entre sujeito e objeto, é sujeito, é objeto; um corpo-câmera, que vivencia, em si, entre suas lentes, a dissolução visual propiciada por esse mergulho em águas profundas e escuras, já que muitas das cenas são captadas em night-shot. Aos poucos, o filme tece um dos mais inusitados contra-plongeés já filmados. Vê-se estrelas do mar, vermelhas, caindo, nadando, e, na reversão de uma profundidade de campo, ao alto, as gaivotas voam, sedentas por sangue e peixes. O que vemos é o céu pelo avesso, num caos sem janelas: apenas caos.

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Essa dinâmica visual de Leviathan remete, indiretamente, à câmera-olho enfatizada pelo manifesto de Dziga Vertov, como se a câmera, no seu afã telescópico, tornasse visível aquilo nunca dantes percebido. Esse anseio de sublimação tecnológica está claramente presente no filme. Há, no entanto, uma importante diferença. Leviathan não busca apenas mostrar ou revelar ângulos impossíveis ao olho humano. O projeto desse filme demonstra ansiedade em inserir a câmera entre outros corpos, outros objetos, revelando a luz vinda de uma câmara obscura que não foi feita para retinas humanas. Tenta-se ver o mar, assim, tal como um peixe ou uma gaivota o enxergariam. A câmera passa a voar, invertida, revertendo a reversão retiniana. Não é um homem como “a medida de todas as coisas”, mas as coisas desmedidas pelo barco humano, as coisas em estado de des-coisificação tornando-se simplesmente intensas, reivindicando novas formas sensórias e poéticas e de percepção e apreensão. E esse olhar, um tanto científico, um tanto especulativo, acaba por diferenciar Leviathan de filmes poéticos e observacionais como a trilogia Qatsi, de Godfrey Reggio, e Baraka, de Ron Fricke, para os quais a revelação ao olhar humano é o principal mote; ou seja, haveria nesses documentários um afã mais esclarecedor ao homem, como sendo o centro da técnica do olhar, do que propriamente especulativo sobre olhares não-humanos, que buscam uma nova sensibilização, estética, frente a percepções inapreensíveis. Juntamente a essa toada “pós-humana”, Leviathan inova por apresentar com vigor possibilidades estéticas vindas da guinada tecnológica mais recente e da linguagem digital, pois o mar, ali, captado poeticamente pelas doze câmeras, é sobretudo um mar vertido para píxels e que segue a dinâmica mimética da máquina de Turing.

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Nessa linha, há dois outros filmes que nos sugerem pistas interessantes e inusitadas. O primeiro é Procurando Nemo (2003), de Andrew Stanton, produção da Pixar que, além de uma narrativa melodramática, nos apresenta um mar profundo traduzindo seu cosmos com minúcias persuasivas. Pode-se supor uma considerável quantidade de biólogos, oceanógrafos e outros cientistas que trabalharam lado a lado de roteiristas e animadores para recompor digitalmente aquele rico universo sub-aquático. O digital, nessa lida, sintetizaria conhecimentos prévios para simular uma sensação, e mimetizar as nuances do mar, que servem como um lustroso pano de fundo para a estória do pai que sai a buscar o filho perdido. Se há uma especulação sobre o que seria esse mar, ela é, ainda assim, atrelada a um simulacro que torna visível um acúmulo de conhecimentos científicos,  o resultado de um desejo do homem controlar, ainda que por meio da ficção, mais e melhor o cosmos, o universo. Pacific (2009), de Marcelo Pedroso, seria o segundo filme suscetível a comparações. Há, primeiramente, algumas aproximações possíveis: várias câmeras, um barco um tanto à deriva, em alto mar, uma narrativa tão transparente quanto opaca. No entanto, ao trazer o debate da autoria, da superfície e das imagens amadoras, Pacific acaba por compartilhar olhares “de e sobre” outros, num radical turning de alteridade, ofertando, assim, perspectivas inusitadas, no limite do voeuyrismo, que oscilam entre uma permissibilidade e uma dinâmica peculiar entre imagem, esfera pública e privada – mostrando que essas fronteiras já são, hoje, menos relevantes e certamente diluídas frente um afã de exposição. Chama-se a atenção, assim, mais para modos contemporâneos de visibilidade, e seus dilemas éticos, do que propriamente para fenômenos ontológicos entre as coisas, a natureza e os homens.

Nem o simulacro, nem o descontrole narrativo das perspectivas e dos pontos de vista; nem a síntese de conhecimentos científicos e tampouco a febre por filmagens amadoras – Leviathan está mais próximo de um realismo especulativo onde o real não é a mímesis de uma natureza antropocêntrica ou a sua desconstrução crítica, social, histórica. É pelo seu design sonoro que conseguimos entender melhor tal dinâmica. Em Procurando Nemo, temos uma trilha bem orquestrada que enleva o espectador e acaba por distender a possibilidade de experimentar o barulho do mar, pois seu intuito narrativo é mais premente. Pacific, por sua vez, é um filme com falas demais, muitos ruídos, muitas conversas, muitos desejos. Trata-se de uma obra com poucos ou raros momentos de silêncio, como se, ali, os atos de ver, mostrar, filmar, ser filmado e aparecer fossem mais importantes do que a humildade, a cabeça baixa exigida pela escuta. Se nesses filmes todos estão surdos, em Leviathan pulsa um filme praticamente sem verbo, sem fala. Num silêncio humano que cadencia a deriva daquele navio pesqueiro, no qual a mudez – física e simbólica – de todos aqueles peixes e outros animais alcança o primeiro plano sonoro. Assim, a montagem torna seu corte transparente por meio de uma continuidade sonora permeada por ruídos sinfônicos, ruídos do metal soerguendo-se pelo mar. É nessa lida real com o som que temos um dos pilares mais entusiasmantes de Leviathan. O som deixa impregnado no espectador os vestígios materiais mais fortes do filme – sutis, imperiosos, eles, aos poucos, parecem conduzir o ato de escutar aos uivos marinhos das sereias mais perigosas que habitam aquele inóspito mar. E essas sereias surgem tatuadas nos braços de um dos marinheiros, enquanto contempla-se o seu estado catatônico.

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No entanto, ao contrário do famoso ato de Ulisses, Leviathan dilui as ceras que se acumulam no ouvido de espectador. Tal como Godard fez em Filme Socialismo, é pela escuta que os sensos e os sentidos são tanto desconstruídos como desobstruídos, conduzindo os afetos e as sensações para uma deriva pura. Leviathan, assim, acaba por apostar numa sedução que, se for esticada até um paroxismo, conduziria à loucura qualquer projeto antropocêntico. Sua argamassa física, traduzida na frequência e ambiência sonoras, ali, é um gesto de sensibilização que visa a própria superação dos nossos limites perceptivos, que aponta para  “uma vereda luminosa; parece o abismo tornado em brancura de cãs”, onde a queda de todos que a experimentam é o seu último e mais audacioso gesto. Inquieto na sua travessia, Leviathan é sobretudo um filme-vertigem.

Todo essa dinâmica formal deságua numa inusitada combinação das tradições narrativas pautadas pela descrição greco-romana, de cunho retórico, com outra mais alegórica, de origem judaico-cristã. Nesse recorte, não é por acaso que se mistura tanto o barco à deriva da “A Odisseia” com a famosa passagem do livro de Jó, da Bíblia, donde se retira o título do filme. Essas duas vertentes nos conduzem para os ensaios iniciais de “Mímesis”, de Eric Auerbach, obra seminal sobre a tradição ocidental de representação da realidade. De um lado, haveria a aposta, desde Homero, em enfatizar detalhes, minúcias, descrições das coisas, dos cosmos, dos mínimos movimentos dos objetos. Um “projeto” no qual a apreensão do real está diretamente atrelada à concretude e ao peso da sua materialidade. Haveria, de outro lado, personagens simples com poucos atos e plenos de significados, que convergem para um simbolismo que aponta, sempre, para outro universo, para uma transubstancialização das próprias coisas. Esse “projeto” estético judaico-cristão daria margens para interpretações infinitas, num denso círculo hermenêutico. Para Auerbach, uma das principais sínteses dessas duas tradições estaria em Dante, cujos personagens são tanto figuras de um real concreto, histórico, quanto pairam num campo metafísico que supera esse cosmos e nos religa a o mundo das ideias puras e universais.

É a câmera, como já frisamos, quem faz a vez da descrição densa em Leviathan. Ao se furtar de uma narrativa, ela apenas mostra, descreve e impõe a materialidade insistente diante de suas lentes.  Por outro lado, o filme parece retirar com o anzol o monstro horrendo que vive, abscôndito, nas profundezas daquele mar. E “na terra não há coisa que se lhe possa comparar, pois foi feito para estar sem pavor”, como diz o próprio Livro de Jó. Esse Leviathan, contudo, não traz uma revelação, não propõe uma purificação da humanidade ou uma catarse, seja redentora ou apocalíptica. Ele se mantém estático na própria transubstancialização que engendra, numa metafísica que surge somente como um caminho, pois, se há uma via crúcis, ela conduz a um lugar inatingível, nulo. Uma transcendência que não desgruda da matéria e mantém-se no susto diante de uma passagem acre, onde configura-se o inumano que retina e ouvido algum suporta; numa metafísica peculiar, reveladora de multiversos, paralelos; difícil de digerir e especular, pois tem como base a própria desintegração da nossa ontologia, da nossa existência como entes. Em Leviathan, essa travessia torna-se radical, tanto um método como uma finalidade, no qual a carpintaria do filme culmina na possibilidade de experimentar o não-ser; transita, tensiona e atravessa limites, impondo ao espectador algo que já não é nada e que grifa, entre círculos, dobradiços, que curvam-se sobre si mesmos, o indeterminado, fugidio, que se esquiva, que nos escapa.

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