Com os Punhos Cerrados (Brasil, 2014), de Luiz Pretti, Ricardo Pretti e Pedro Diogenes

agosto 12, 2014 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Filipe Furtado

Punhos

Estado de crise
por Filipe Furtado

Estrada para Ythaca (2010) e Os Monstros (2011), os dois primeiros longas que Luiz e Ricardo Pretti e Pedro Diogenes co-dirigiram (em parceria com Guto Parente, que aqui faz apenas uma ponta), progrediam em direção à intersecção entre dissenso e pureza, ao momento em que o artista buscando um caminho próprio transformava esta revolta numa ascese. Com os Punhos Cerrados começa justamente neste ponto que os trabalhos anteriores se encerravam: numa praia vazia de Fortaleza, os três co-diretores sozinhos agora conduzem uma rádio pirata anarquista que invade a programação oficial local num misto de arte e protesto. O espaço tem algo de idílico, de bom descanso de quem lutou muito, e que rapidamente ganha ares de paraíso perdido. Se nos filmes anteriores estávamos diante de um processo de afirmação, em que os momentos de dúvida se deviam à busca por um espaço, a questão em Com os Punhos Cerrados se torna outra: o que fazer no momento seguinte? A dissonância que os filmes anteriores buscavam persiste aqui, mas ao filme cabe justamente colocar o momento seguinte em crise: à afirmação perante ao mundo, se segue o peso dele próprio.

Importa-se, para Com os Punhos Cerrados, o clima conspiratório de O Rio nos Pertence, que Ricardo Pretti dirigiu sozinho ano passado. Enquanto seguimos o trabalho do grupo de radialistas piratas, acompanhamos também a tentativa de capturá-los, o que adiciona uma camada de paranóia e claustrofobia crescente. Fazer uma arte de exceção nos filmes da Alumbramento sempre foi encarado como uma conspiração entre amigos (e é notável neste sentindo que eles entreguem a principal sequência do trabalho da rádio não para eles próprios, mas para o cineasta/ator/amigo Uirá dos Reis, co-diretor de Guto Parente em Doce Amianto, também de 2013), mas aqui este tom conspiratório retorna como suspeita. Ao contrário de Estrada para Ythaca e Os Monstros, Com os Punhos Cerrados abre espaço para imaginar sequências longe do universo de grupo, e por vezes encontra nelas um incômodo profundo.

O filme progride na direção do encontro com Salomé (Samya de Lavor), a ouvinte-espiã ao mesmo tempo lá para identificá-los e avisá-los do risco que correm. É um encontro carnal com o mundo que seria impossível nos filmes anteriores, nos quais ele permanece sempre a uma distância opressora maior. Esse encontro é mediado por imagens de desejo que não se libertam de certo teor idealizado. Quando se retorna à praia ao final do filme, o descanso dos guerreiros ganha outro sentido dissonante, mas melancólico: o caminho de deixar o grupo e ir até o mundo é ao mesmo tempo prazeroso e doloroso. Dentro da obra dos diretores, essa é uma necessidade que o filme finalmente alcança, mas não sem traumas.

O título do filme remete a Com os Punhos Fechados (1965), o filme de estreia de Marco Bellocchio no qual um jovem burguês diante do mal-estar social italiano não vê outra saída além de presidir sobre o extermínio da própria família. Com os Punhos Cerrados igualmente surge de um ambiente de mal-estar social e tenta, à sua própria maneira, encontrar formas de purgá-lo.  Se o programa de rádio é a porta de entrada do filme, busca-se ao longo de todo ele novas formas para representar o sentido da revolta no Brasil em 2014. Se em Os Monstros era possível representar a ruptura através da longa jam session de free jazz que encerra o filme, tal efeito já não será possível aqui: se o temor do artista antes era um mundo indiferente, agora é preciso dar conta também de um mundo agressivo e paranóico com pouco interesse para diferença.

Estamos diante de um filme de diálogo, dúvida, crise. As palavras do programa de rádio são de ordem, mas as imagens apontam para outra instabilidade, uma impossibilidade de representação. O filme busca retomar imagens de protesto – sobretudo a dos cineastas mascarados – e tenta encontrar uma narrativa própria para elas: tudo aqui existe completamente contaminado pelo seu momento de realização – e neste sentido é útil ter em mente que, apesar de longe da mídia do eixo Rio-São São Paulo, Fortaleza foi uma das cidades-chave das manifestações e confrontos com a polícia do último ano. Parte do valor de Com os Punhos Cerrados está justamente na maneira com que ele resiste em existir como simples filme-sintoma de um mal-estar, e tenta confrontá-lo, encontrar alguma forma para ele.

Na impossibilidade de solucionar o seu impasse, ao mesmo tempo evita-se a catarse de Branco Sai Preto Fica (2014) e a melancolia do derrotismo de Avanti Popolo (2012). Se o cinema brasileiro recente move-se rapidamente das narrativas “panela de pressão” (O Som ao Redor, Riocorrente) para filmes que lidem com uma crise de representação de uma ideia de dissonância, Com os Punhos Cerrados me parece parte essencial desta discussão. O filme é, junto com Branco Sai Preto Fica de Adirley Queiros, um dos trabalhos que parecem mais conscientemente negociarem o fato de que esta geração de jovens cineastas brasileiros saiu de um primeiro estágio de afirmação do trabalho e lida agora com uma consolidação, com a necessidade de responder à pergunta: “e agora?”. São ambos filmes seguintes, que buscam negociar este segundo momento na obra dos seus realizadores, marcados sobretudo por uma consciência clara da posição tênue que se ocupa e de que as regras do jogo da representação mudaram e é preciso dar um passo a mais. Neste sentido, o misto de paranoia e resistência de Com os Punhos Cerrados não é exatamente uma solução, mas, como representação do ato de buscar uma arte dissonante no Brasil em 2014, alcança inegável força.

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