Colegas, de Marcelo Galvão (Brasil, 2012)

abril 8, 2013 em Em Cartaz, Raul Arthuso

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De corpo e alma
por Raul Arthuso

Colegas, de Marcelo Galvão, é uma aventura mediada pela cinefilia. Márcio, Aninha e Stallone (!) fogem do abrigo onde vivem e se metem na estrada inspirados por seu filme favorito, Thelma e Louise, de Ridley Scott. Por onde passam, os três tentam reproduzir situações de filmes e repetem diálogos famosos. Isso acaba por ser fagocitado para o modo de ser de Colegas: uma série de esquetes de citação de cenas do imaginário popular em torno do cinema.

Falar de cinefilia é, de alguma forma, lidar com uma questão importante do cinema brasileiro hoje. Uma parte dos filmes – mais presentes no circuito de festivais que em salas comerciais – buscou, pela cinefilia, o universalismo, alinhando-se formalmente ao que de mais expressivo surgiu no cinema internacional na última década. Em filmes como Os Monstros, A Alegria e O Céu Sobre os Ombros, não apenas se sente a influência de cineastas como Pedro Costa, Apichatpong Weerasethakul e Jia Zhang-ke, como é possível, também, captar uma conduta de urgência do cineasta perante os filmes que vê e aqueles que realiza. Pela cinefilia, “fazer um filme” é uma paixão colocada em prática, retirando o peso do trabalho sobre a feitura das obras. Um filme é feito de afeto e força de vontade mais que de dinheiro e labuta; é uma possibilidade de comunhão entre “almas artísticas” e um mundo muitas vezes hostil à arte, à falta de praticidade, à excessão. Colegas é uma perversão dessa idéia, pois é movido inteiramente pela paixão pelos filmes e seus detalhes, a pulsão de fazer baseado no amor por outros filmes e o impulso primeiro de estabelecer uma simbiose – inocente, sem dúvida – entre sonho e filme, a pulsão mais primária para alcançar o prazer – quase sempre derrisório – de viver o cinema.

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Retirado todo o processo de elaboração e trabalho, fica, paradoxalmente, apenas o feito, algo próximo do artesanato como reprodução manual do mesmo objeto. Todos os elementos de sua estrutura são feitos da banalidade da primeira leitura das obras: esquetes de citação cinematográfica, os sonhos manjados das personagens – ver o mar, casar e voar (!) – os policiais trapalhões que caçam os protagonistas, os clichês da bichinha, do filhinho de papai, da gorda, dos argentinos dançando tango. No início, Colegas se coloca como uma fábula, com personagens que pulam do teto de um prédio, parentes dos cartuns, dos livros infantis, de Pernalonga, Tom e Jerry, Homem-Mola, Multi-homem, Supergêmeos. Por outro lado, os protagonistas são portadores da Síndrome de Down e isso muda completamente as relações com o mundo, por mais que o filme evite colocar isso em questão. Há uma melancolia fundamental em relação aos sonhos comuns das personagens, misturada com a alegria incomum das ações e do desenrolar de cenas, mais próximas do desenho animado. Esses moods diferentes, soltos no meio de esquetes de citação cinematográfica, refletem em alguma medida o problema fundamental de não re-elaborar essa paixão pelos filmes. Colegas não é uma série de cópias em carbono, mas uma salada de citações e signos, sem a destreza com a agulha que torna Tarantino um hábil costureiro das referências dentro cinema contemporâneo, pois a costura aqui é feita de nós cegos, resultado de uma paixão colocada numa prática que nunca se articula.

Nesse sentido, é considerável o dado de que os três protagonistas trabalhavam, antes do início deste road movie, na videoteca do instituto onde moravam. Há uma presença marcante da tela de televisão durante todo o filme: ela serve como cortina, revelando o conteúdo da história no início do filme, e é dela que o narrador afirma vir o corpo-a-corpo com os filmes que movem o imaginário dos protagonistas e da narrativa identificada com eles. Não é uma simples oposição entre cinema e TV ou uma escala de intensidade de envolvimento afetivo a partir das imagens vistas nos dois tipos de tela; trata-se do valor simbólico de uma cinefilia feita no home video. O home video propicia um contato bem abrangente com os filmes, ainda mais em tempos de download onde o mundo se tornou uma possível cinemateca. É um contato fácil, abrangente e intenso, mas também mal-ajambrado, que requer apenas disponibilidade do espectador ao acesso pela tela pequena da televisão, muitas vezes mutilando a imagem e mudando aspectos técnicos originais do filme – sem contestação. A organização e articulação da paixão motora de Colegas se dá na superficialidade da separação por estantes, gêneros, tipos, questões fundamentais numa vídeo-locadora e que podem ser de trampolim ao que realmente cristaliza a cinefilia: a organização dessa paixão transformada em um saber. “Ir ao cinema” é uma forma de fazê-lo, criar uma relação de destreza do corpo tateando o universo das imagens, lidar frontalmente com as sensações primeiras e reelaborá-las pela atenção quase exclusiva que uma sala escura propicia, não só pelo ritual que envolve “ir ao cinema”, mas porque, enquanto o home vídeo é, de alguma forma, derivado do consumismo, “ir ao cinema” ainda guarda sua motivação social. E “ir ao cinema”, em Colegas, não existe. Talvez daí a sensação de profunda desorientação do tom do filme. A cinefilia – que não “vai ao cinema” – de Colegas permite uma paixão intensa, mas não o pulo do gato. O filme de Marcelo Galvão é como uma criança aprendendo a andar com as próprias pernas – em geral, cai de boca no chão, mas é possível ver o evento com alguma curiosidade.

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O efeito imediato é um humor algumas vezes delirante, pois inebriado no espírito despropositado da aventura das personagens; outras vezes, desconcertante, na medida em que resta ainda um pouco de surpresa na realização; e outras tantas, apenas constrangedor, pois se confundem um pouco intencionalidade e causalidade, o inocente toque do artifício feito com despropósito na mesma intensidade em que falta tato para fazê-lo. Se isso resulta em um filme tão sem pé nem cabeça a ponto de ficar clara sua falta de rigor – e o momento em que dois dos protagonistas são levados por acidente num baú de caminhão até Buenos Aires e o terceiro misteriosamente aparece para se juntar a eles é apenas o mais evidente –, seu espírito let it be pode fazer a vez numa citação surreal de Psicose a ponto de levar ao delírio, pois filmada elegantemente, num ritmo lento até então inédito, com clima raramente tão bem construído até aquele momento, e uma resolução descabaçada, causando um sincero nó na cabeça.

Hoje, “ir ao cinema” pode parecer um ato mecânico, relacionado a um ritual canônico que desperta certa nostalgia, mas também movido pelo élan consumista perverso do neoliberalismo. A importância de “ir ao cinema”, porém, é a potência de organizar o olhar ou, melhor, organizar o prazer do olhar. A cinefilia efetivamente existe em VHS, DVD, downloads de internet, visões em laptops e tablets, mas o cinema dá corpo ao prazer que os filmes despertam em qualquer suporte. Isso é aprender a ver. Colegas é como uma alma que ainda não encontrou seu corpo.

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