Um Episódio na Vida de um Catador de Ferro-velho (Epizoda u zivotu beraca zeljeza), de Danis Tanovic (Bósnia e Herzegovina/França/Eslovênia/Itália, 2013)

maio 5, 2014 em Em Cartaz, Victor Guimarães

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O risco como simulação
por Victor Guimarães

Devemos desconfiar da oposição entre o refinamento estético e não sei que crueza,que eficácia imediata de um realismo que se contentaria em mostrar a realidade.Não será, a meu ver, o menor mérito do cinema italiano ter lembradouma vez mais que não havia ‘realismo’ em arte que não fosseem princípio profundamente ‘estético’ ”.

André Bazin em O Realismo Cinematográfico e a Escola Italiana da Liberação

O título do filme de Danis Tanovic é eloquente: Um Episódio na Vida de um Catador de Ferro-velho pertence à longa tradição zavattiniana de um cinema da vida comum, centrado no acompanhamento do cotidiano de personagens ordinários. O argumento é dos mais banais, desses que existem desde que existem histórias: uma família pobre vive em condições precárias (o marido sobrevive de catar e vender o ferro-velho que encontra nas cercanias de casa, enquanto a mulher cuida do lar e das filhas) e é injustiçada pelas instituições – no caso, a instituição hospitalar – em um momento de profunda crise: a esposa, grávida, sofre um aborto, e não consegue se tratar, porque o casal não tem dinheiro para pagar a cirurgia.

A extrema banalidade da intriga não é (em si) um problema. Basta lembrar, por exemplo, que boa parte do melhor cinema romeno contemporâneo se constrói nesse embate incansável entre indivíduos e instituições (falidas, dominadas pela lógica capitalista e pela impessoalidade da burocracia): do paradigmático A Morte do Sr. Lazarescu (Cristi Puiu, 2005) a um curta-metragem recente como Betoniera (Liviu Sandulescu, 2012), esse realismo romeno soube captar com energia e inteligência esse momento crucial das nações pós-comunistas do leste da Europa, em que a brutalidade de uma nova lógica socioeconômica se ergue sobre os escombros de uma sociedade devastada. Mas onde um cineasta como Cristi Puiu (ou Corneliu Porumboiu, que é o melhor dessa geração) enxerga e potencializa uma vigorosa trama kafkiana – e constrói uma mise en scène viva e pulsante, assentada especialmente no humor terrível que advém do absurdo da situação –, Danis Tanovic só é capaz de intuir uma estilística insossa, baseada nos expedientes dramatúrgicos mais convencionais e na exploração do sentimentalismo mais barato. Ainda que o modo romanesco de abordar essa intriga tenha seus achados – o foco na figura do marido (e não da mulher) produz o que o filme tem de melhor (a força emocional do protagonista, que nos cativa por sua integridade moral) –, quase tudo o que há de cinematográfico no filme é de uma insipidez patente.

Em qualquer discussão sobre realismos contemporâneos, é sempre bom retornar aos escritos de André Bazin à época da revolução do neorrealismo italiano. Seja porque Bazin tende a ser, ainda hoje, mal lido, seja porque há uma forte tendência crítica ao elogio de uma estética realista frequentemente baseada em uma recusa da mediação e da linguagem e, por outro lado, em uma aposta na “crueza” do estilo. Diante de um filme como Um Episódio na Vida de um Catador de Ferro-velho, não faltarão os que se encantem imediatamente com uma suposta “sensibilidade cinematográfica crua”, como se o ideal do realismo no cinema residisse em uma aproximação não mediada à realidade, em uma exposição à carne nua do real.

Não é fortuito, porém, que um texto tão fundador como Ontologia da imagem fotográfica termine com uma frase tão extraordinária quanto “Por outro lado, o cinema é uma linguagem”. Afinal, Bazin não era um empertigado defensor de um dogma ontológico, mas um analista rigoroso. Mesmo as teorias sobre a montagem proibida não são reivindicações totalitárias e idealistas de um cinema não montado, mas defesas críticas de certas operações estéticas em detrimento de outras (como afirma Serge Daney em A tela do fantasma). “O sentido moral ou dramático nunca está aparente na superfície da realidade”, define sabiamente Bazin em sua crítica de Alemanha Ano Zero (1948). Porque o real não liga a câmera – e nem produz sentido sozinho – é que é preciso modulação, mise en scène, linguagem, estética.

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Em Um Episódio…, a busca pela realidade se assenta nos protocolos de sempre: enredo mínimo, uso de atores não profissionais, câmera na mão, som direto, iluminação natural. Essa conjugação de elementos – tão antiga, mas tão em voga contemporaneamente –, no entanto, não encontra uma tradução formal que a faça descobrir algo mais do que uma vaga impressão de “vida real” – ora tomada como um fim em si mesma, ora transformada em substrato para o velho miserabilismo. A mise en scène é permanentemente tateante e parece não se importar com as modulações de cada escolha: alterna-se entre o plano geral e o close-up de forma intercambiável; os enquadramentos parecem regidos pela casualidade; a busca pela iluminação natural é injustificável, a não ser pela adesão a um dogma falido. A extrema falta de rigor é a mesma da montagem: acumulam-se imagens com o único intuito de acompanhar a intriga, interpõem-se sobras de planos em uma sequência (na coleta da lenha para o almoço, a câmera faz um traveling inacreditável em direção a uma árvore para filmá-la por menos de um segundo, enquanto a imagem seguinte nos conduz a outra árvore caindo, sem que haja nenhum motivo para esse corte). A modulação do tempo fílmico, essa operação fundamental de qualquer montagem, não chega sequer a ser uma questão: enquanto cada segundo das sequências de corte da lenha em um filme como A Liberdade (Lisandro Alonso, 2001) é fundamental para a relação filme-personagem-espectador, em Um Episódio… os planos duram quase sempre muito pouco, e não chegam sequer a ter uma função suficientemente descritiva (que dirá poética). Quando a encenação, enfim, consegue produzir um bom plano (como o dos objetos encontrados sendo jogados para o alto da colina), ele é interrompido prematuramente e voltamos à mesmice reinante.

O frescor das interpretações dos atores ocasionais é inegável, mas o realizador insiste em sobrepor a elas um lirismo pré-fabricado, que cristaliza seu emblema maior nos insistentes olhares para a câmera das duas meninas. Se um cineasta como Wang Bing encontra no cotidiano das crianças em uma província rural chinesa uma possibilidade de construir um verdadeiro monumento cinematográfico à infância (Três Irmãs, 2012), pleno de nuances e intermitências, Tanovic só consegue produzir a comoção mais corriqueira, acrescentando, com seus close-ups recorrentes, uma sobrecarga de fofura ao que já é, quase sempre, amável.

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Mas a escolha mais problemática talvez seja o uso de uma instável câmera DSLR, que parte dessa vontade de aproximação e de exposição ao imprevisto dos corpos e dos espaços, mas só consegue produzir o risco como simulação. Há uma tentativa ininterrupta de injetar tensão em todas as situações possíveis (o preparo da comida, a espera no hospital, as conversas entre o pai e um amigo, a volta para casa de carro), como se a encenação estivesse sempre na iminência da dissolução. Paradoxalmente, no entanto, Um episódio… é um filme sem fora-de-campo: não há nada que ameace a existência dos corpos em cena, nenhuma força invisível à espreita. Todo o drama ocorre no plano da intriga, e a mise en scène é apenas o espaço no qual se retêm as consequências dos acontecimentos.

Afora a precariedade um tanto inevitável dos planos em que há movimento (pouquíssimos cineastas conseguem extrair produtividade estética das limitações dessas câmeras), o desejo renitente de instabilidade é puro simulacro: filmar uma conversa amigável em uma mesa de bar com um enquadramento tremido é reter o que há de pior no cinema dos Dardenne, é aderir a um fetiche da imprecisão que é um dos vícios mais nefastos do cinema contemporâneo. Os grandes realistas – Rossellini, Bresson, Pialat – sempre souberam que o acaso não é nada sem um gesto estético que lhe faça existir cinematograficamente. Longe de ser um problema menor, transformar o risco em simulação é depor contra toda a potência do realismo no cinema. 

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