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Olho para o passado, corpo para o futuro

No nosso último editorial, publicado em abril, encerramos o texto falando da instabilidade da primeira pessoa do plural, um movimento do “nós”. Neste mesmo período, tivemos uma mudança na composição da editoria, pois Raul Arthuso deixou a revista, depois de trabalhar como editor desde 2016, primeiro com Fábio Andrade e depois sozinho. Seguimos agora com Ingá, Victor Guimarães e Juliano Gomes como núcleo de proposições, na tentativa de manter o rigor de olhar e de escrita consolidados na última década, mas buscando ampliar o leque de possibilidades metodológicas e perspectivas na Cinética. Fica aqui a gratidão ao Raul pela interlocução fértil nestes anos que passaram e a porta aberta para futuras conversas, pois casa não pode ser sinônimo de confinamento. Casa é o que se oferece.

Nesses últimos seis meses, a revista experimentou levar adiante algumas das linhas propostas no texto de abril. Iniciamos com uma sequência de escritos coletivos intitulada “Conversas ao redor de uma nova cinefilia” elaborada por parte considerável da redação, dando corpo à perspectiva de contato e formação mútua para a qual havíamos apontado. Escrevemos, também em coletivo, “Uma aprendizagem: prosa sobre Sete Anos em Maio e Vaga Carne“, aproveitando o lançamento conjunto dos dois filmes e buscando pontos de contato férteis entre eles. Dedicamos uma sequência de produções, entre textos e vídeo-ensaio, ao filme Retrato de uma Jovem em Chamas (Céline Sciamma, 2019) na série #4xretratoemchamas. Lançamos uma série de treze publicações em torno da obra de José Mojica Marins, #mojicainvenção, com críticas, ensaios, foto-colagem e mais um vídeo-ensaio, em atenção especial a um dos nossos maiores cineastas, cuja ambiguidade inerente nos serviu de bom mote para reencarar as imagens do presente. Mais recentemente publicamos a série #visõesdatreta, analisando imagens produzidas, no contexto da luta social, tanto pelos trabalhadores de entrega e militantes apoiadores, quanto pelos patrões donos de aplicativos. Retomamos, assim, o desejo de expandir o leque de obras tratadas na revista, para além do escopo do que está instituído enquanto “cinematográfico” e farejando como o jogo com a produção de imagens também aponta traços de uma disputa política em curso.

Esses meses também foram de arejamento das possibilidades de escrita na revista. Alguns textos buscaram enveredar por caminhos distintos do ensaio dissertativo, que de certa maneira prevaleceu como modelo na revista nos últimos anos. Tivemos alguns esforços que se aproximaram da ficção especulativa, da fotonovela em colagem, outros que se organizaram como blocos de notas e esboços, outros que se aventuraram na composição de diálogos críticos, outros que adotaram uma linguagem mais próxima da crônica. Seguimos acreditando que a análise argumentativa é trabalho essencial da crítica, mas desejamos uma variação dos métodos e dos estilos de se aproximar das imagens e de atravessá-las. Uma revista pode ser também um espaço onde as vozes se comunicam sem necessariamente falarem a mesma língua, mas com um desejo onipresente de contato e transformação mútua.

Um aprendizado desses últimos seis meses foi o início de uma compreensão de que a Cinética pode ser mais do que uma revista que se expressa majoritariamente em seu site, através dos textos publicados, e só a partir daí utiliza suas mídias sociais. De forma ainda incipiente, temos tentando ativar as redes da revista para além da função de divulgação: seja através de um uso mais intenso do Twitter, seja através de publicações pensadas especificamente para o Instagram, como no caso das “Conversas ao redor de uma nova cinefilia”, que receberam leituras ao vivo por integrantes da redação. Essa ação, particularmente, nos pareceu desdobrar a proposta da série de conversas de uma maneira interessante, pois jogava com a dissonância entre os corpos de quem escreve e quem lê, numa tentativa de redesenhar noções como “autoria” e “identidade”, tão caras ao texto de Girish Shambu. Há, no horizonte, novas ações no sentido da expansão, como a retomada do podcast da Cinética e uma atuação mais forte no Letterboxd, às quais ainda não conseguimos dar a devida atenção. A multiplicação das frentes de atuação da revista é um desafio que assumimos para os próximos tempos.

Em relação à contribuição da Cinética para a comunidade, ainda é cedo para elencar mudanças significativas, mas nossa tentativa é a de nos instalar, de maneira inquieta, no campo tenso das principais disputas do nosso tempo, sem receio da impureza ou do erro. Cultivar a ambiguidade das obras e a polissemia das leituras é uma maneira de enfrentar um imaginário contemporâneo que tende à purificação, às reações pré-fabricadas, à infiltração da norma no interior de espaços contra-hegemônicos. É possível que a tarefa fundante hoje seja não a de oferecer respostas, mas a de formular boas perguntas. Interrogações que nos instiguem a destravar o pensamento, levá-lo até lugares limítrofes, em que as palavras e as imagens possam exercitar sua vocação para a desordem fertilizadora de novas hipóteses.

É nesse sentido que, ao longo dos próximos meses, até o fim de 2020, a redação se dedicará a um mapeamento retrospectivo da última década do cinema brasileiro. Rechaçando a tarefa redutora de uma “lista de melhores” ou o olhar totalizante de uma perspectiva histórica única, ensejaremos uma leitura plural desses dez anos. Nosso desejo é realizar uma cartografia múltipla, que ensaie maneiras variadas – e eventualmente dissonantes – de dar conta das linhas de força que se manifestaram no cinema nacional entre 2010 e 2019. Sem receio de arriscar sínteses, mas abrindo-as ao contato transformador com outras leituras históricas possíveis. Essa cartografia não se restringe aos filmes, pois compreende que as mudanças mais importantes também atravessaram os debates, os festivais, os modos de produção, as relações com o passado. Algumas perguntas já têm nos mobilizado: quais foram os pontos de ruptura? Quais tendências podem ser mapeadas? Que ideias foram influentes e se desdobraram em debates e práticas? De que maneira os modos de produção de filmes foram transformados? Quais filmes do passado foram convocados ao presente na última década, reconfigurando os cânones do cinema brasileiro? Como os esforços de releitura histórica do cinema brasileiro feitos na última década transformam as relações com o passado? Como outras possibilidades de imaginação fílmica transfiguraram a face do “cinematográfico”?

Agora, em outubro, a parceria da Cinética com o Instituto Moreira Salles tem um novo capítulo. Com as atividades da Sessão Cinética interrompidas desde o início da pandemia, formulamos o Laboratório De Crítica: Práticas Do Olhar, que acontecerá entre outubro e novembro, remotamente. Para uma revista que nasce online, a interação remota não é uma novidade, mas aqui temos a chance de interagir com um público que talvez não esteja nas cidades onde fazemos sessões, onde poderemos trocar de forma mais intensa. Buscaremos trabalhar temas que consideramos cruciais para o exercício da reflexão sobre cinema e arte no Brasil hoje, intensamente contagiadas pelo que os parágrafos anteriores aqui narram. A ideia não é exatamente uma introdução tradicional à prática da crítica, mas um trabalho partilhado em torno de temas que estão longe de estarem resolvidos ou estáveis. O programa das aulas está disponível aqui. Sigamos.


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