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Um cinema da culpa?

Felipe André: É notável como se instaurou uma espécie de “cinema da culpa” nos círculos da produção cinematográfica mundo afora durante os últimos dez, talvez cinco anos. Criadores que não necessariamente teriam interesse em determinados assuntos ou pautas encontraram na possibilidade de falar sobre ou “oferecer voz” a corpos dissidentes um bom combo de autopromoção e mea-culpa. Para Onde Voam as Feiticeiras é um exemplo cabal: duas realizadoras brancas e um realizador branco reúnem um grupo heterogêneo de artistas e militantes para criar um happening nas ruas de São Paulo. A rua é o palco, todos os transeuntes são atores, a existência plena e possível é o mote do jogo. A isso se entrecortam bastidores do processo, vídeos de violência policial e revoltas populares, e uma entrevista com a filósofa Judith Butler. Em um dado instante (ou talvez no momento mais hierarquicamente complexo) de Para Onde Voam as Feiticeiras, duas pessoas pretas se dirigem frontalmente para uma das diretoras do projeto e reiteram o poder soberano dela perante todos eles, em mais de um contexto, posto que a gravação pode ser interrompida quando ela achar conveniente. O fato disso ter entrado no corte final potencializa um pouco essa cacofonia de poderes e lugares que o filme passa sua breve duração tentando emplacar com muito afinco e vontade. Não se implicar enquanto cineastas privilegiados dirigindo um projeto sobre as arestas e confluências entre pautas identitárias e sociais distintas é pior ou melhor do que se implicar dessa forma?

Gabriel Moraes: É uma questão política difícil, porque cada filme é um filme e não existe uma receita, mas é estranho como Para Onde Voam as Feiticeiras destoa mesmo no interior de sua própria estrutura. Se uma cena como a que você cita pretende uma atitude de frontalidade, de horizontalidade, aquela em que vemos uma entrevista de Judith Butler para os realizadores não seria o contrário disso? Num filme que pauta tanto a localização social dos discursos, não é curioso que a fala de Butler, uma filósofa americana branca, entre tão fluidamente na narrativa, sem ruídos? Por que problematizar a posição de branquitude dos realizadores e não a daquela que participa da narrativa justamente exercendo uma força de autoridade discursiva sobre o problema do filme? E ainda: se o olhar que o filme lança sobre a realidade daqueles corpos está profundamente arraigado numa certa cultura brasileira – mais especificamente, paulista –, como não assimilar o discurso de Butler sem uma medida de parcimônia? A maneira com que o filme recebe as palavras de Butler tão espontaneamente parece ser indício de uma naturalidade anterior que os realizadores têm com a própria, e que isso seja posto de forma tão chave no filme sem uma implicação é sinal de que esses princípios de frontalidade são mais nebulosos do que realmente aparentam.

Felipe André: Sim, e muito honestamente não me sinto convencido pelas intenções ou pela execução. É estranho que a arte do cartaz do filme remeta a uma bandeira LGBT, já que esse está longe de ser o tema central. Nessa sequência que a gente está comentando tem um momento em que Helena Vieira, pesquisadora trans, relembra um dado em que estamos todos bem versados: enquanto a direita se une mais e mais, a esquerda se afoga em discordâncias, dissidências e atritos. O que é plenamente natural, visto que existe uma tentativa de respeitar a voz do outro ou da outra, mas na prática o resultado é exatamente o oposto. Talvez fosse esse um filme possível aqui, um filme sobre uma gritaria primal tão generalizada que faz com que ninguém se escute, pouco importa a relevância de cada grito. Seria um filme interessantíssimo. No entanto, o que a gente recebe é uma campanha de marketing com cores LGBT, porque é “relevante”, uma participação estranha e mal ajambrada de corpos indígenas brasileiros, “porque tem que ter”, e a isenção da montagem perante a aparição de uma filósofa estrangeira, numa entrevista concedida aos realizadores e realizadoras. E cito aqui a montagem em específico porque de forma geral ela é bastante propositiva, consciente, na maneira como oferece reações intensas e imediatas a qualquer ação que tente “silenciar” suas personagens, mesmo quando isso não necessariamente tem a ver com enfrentamento. Como na sequência em que o grupo entra num embate com um grupo evangélico, que acaba sendo silenciado, e suas opiniões só podem ser concluídas num momento seguinte. Volto à pergunta primeira que a gente se faz antes de digitar uma linha no documento: para quê um filme? Para quê, por exemplo, a utilização de um dispositivo performático, uma autoconsciência narrativa, quase dramatúrgica, para falar dessas pessoas? Não quero dizer aqui que não se podem disparar discussões identitárias a partir desses lugares, prefiro inclusive que seja assim se a alternativa é o documentário de entrevista em terceira pessoa feito única e exclusivamente para “passar a mensagem à frente”. Tais construções performáticas e autoconscientes precisam estar agarradas a uma verdade, e não me refiro necessariamente ao conceito de lugar de fala, por exemplo, mas de honestidade quanto às motivações. Seria fascinante ver um filme no qual o realizador assume que seu interesse em tratar de determinado assunto é puramente um caça-níquel, mas ocorreu algo naquele processo que moveu sua visão, ou não. É muito fácil perceber que um protesto foi fabricado, e falo aqui de protesto enquanto tração, sentimento, enquanto desejo de fazer um filme. Queria ouvir alguém assumindo essa manufatura. Mas esse é só um desejo meu.

Gabriel Moraes: O filme reconhece nitidamente a existência desses obstáculos, tanto do crescimento da direita quanto da dificuldade da esquerda de se articular politicamente a partir de alianças ressonantes, que sejam capazes de dar substância coletiva não só às ideias, mas principalmente à forma da ação política, a como agir diante das ideias. Como você apontou, parte do problema está na noção de que o longa tenta se valer pelo suposto enfrentamento de tais obstáculos quando na prática isso nunca ocorre. Na sequência em que os protagonistas participam de uma roda de discussão na rua com evangélicos conservadores, em que vemos mais literalmente a tentativa de disputa de ideias e narrativas com a oposição, o resultado que temos não é uma relação propositiva com a dificuldade daquele confronto, mas uma cena subsequente em que os personagens – como que aceitando a inviabilidade do diálogo –, explicam para o espectador os problemas das posições e atitudes representadas por aquelas pessoas. Mas a questão é: ainda que o filme possa fazer uso dos seus artifícios de montagem para se esquivar daquele terreno de disputa, ele não vai continuar dado no mundo? Não vai continuar tendo que ser enfrentado? Não é que o filme precise solucionar problemas que o excedam tão largamente, mas se a ideia é identificá-los como parte fundamental da realidade cotidiana das lutas que retrata, então que ao menos ele encare e compreenda as dificuldades pelo que realmente são, ao invés de forjar saídas convenientes pela montagem. Igualmente, temos uma cena em que os personagens discutem entre si sobre a complexidade envolvida na prática cotidiana da interseccionalidade, do respeito mútuo de cada movimento pelas demandas e vozes do outro em meio à convivência. O filme apresenta o problema e, sem que ele se resolva ou seja realmente lidado, chegamos a um desfecho que se ancora na formação de alianças que não temos entendimento algum de como teriam se formado na prática. É uma elipse politicamente perigosa em um projeto que se apresenta de modo tão ilustrativo a respeito das suas questões e que supostamente tem tanta preocupação com a realidade delas, porque presume que a prática do processo é muito menos intrincada do que realmente é – inclusive, do que vemos que é no próprio filme. É uma abordagem que mina a realidade do processo às custas de uma conclusão que soa satisfatória, “gratificante” e que potencializa um desfecho apaziguante, sem muito ruídos, incertezas. Como receber, enfim, um resultado de luta política tão significativo quanto esse através da completa elipse do seu processo?

Felipe André: Não sei.

Gabriel Moraes: Há uma questão que ficou em aberto nessa discussão e que me parece bem importante, que é quando você discute atitudes – a partir dos lugares políticos que o filme ocupa – de “autopromoção”, algo que é retomado no final do seu segundo comentário quando você diz que “é muito fácil perceber que um protesto foi fabricado”. Fiquei pensativo sobre isso, principalmente considerando o modo como você localiza essa atitude numa tendência mais ampla – ao se referir a um certo “cinema de culpa”. Em princípio, me parece que essas autopromoções seriam a antítese dos horizontes que orientam os movimentos e as ideias que estão em jogo aqui, mas ainda assim elas estão lá justamente na posição de representantes, de defensoras dessas lutas políticas. Fico a me interrogar sobre quais consequências tais atitudes, quando recorrentes, têm ou poderiam ter sobre esses movimentos. Outro disparador para o problema que vejo em Para Onde Voam as Feiticeiras é quando Renata Carvalho, atriz trans, afirma que não pode fazer um filme, em confronto com a diretora cis, que pode  – alocando, portanto, essa responsabilidade de representação diretamente na diretora, que teria essa oportunidade em mãos. Mas bem, se a diretora opta por assumir uma responsabilidade de tal ordem, a autopromoção, nesse caso, não seria a expressão de um problema moral da representação que o filme deveria estar combatendo desde o princípio?

Felipe André: Sim, e acho que é por isso que a questão aqui está muito na gênese da coisa. É bem visível que esse campo de batalha e essas investidas são mediadas quase que inteiramente pelos corpos que estão ali na frente das câmeras e pelos outros que invadem aquele espaço. Mas fico numa eterna dúvida do quanto essas existências e experiências são formatadas de maneira insidiosa num espetáculo decolonial proposto pelos próprios “colonizadores”. Não tenho problema nenhum em ver héteros contando histórias de gays, homens contando histórias de mulheres, mas aqui é um corpo (ou três que se equivalem), querendo dar conta de vários corpos, e talvez se escondendo atrás do escudo que esses corpos proporcionam. Às vezes fico meio triste de pensar (e ver acontecer na prática) como muitas curadorias no Brasil e no mundo compram com facilidade o token do “filme importante”, sobretudo no espaço político que a gente habita agora. Basta sugerir uma “tomada de consciência” para que o filme ganhe um valor que jamais teria em outros tempos.

Gabriel Moraes: É como se existisse uma vontade de defender esses corpos, advogar e lutar por eles, mas ao mesmo tempo um desejo latente de preservar um certo controle sobre as operações de representação, né? Será que essas atitudes de “autopromoção” poderiam ser vistas como uma tentativa de dignificar o anseio por essa manutenção de poder? Para Onde Voam as Feiticeiras não seria simplesmente o caso cotidiano de héteros contando histórias sobre gays ou homens sobre mulheres, porque no fundo o filme se pretende mais do que só isso. Deseja ser uma espécie de manifesto; uma espécie de comentário totalizante sobre esses corpos, sobre essas representações, sobre essas lutas. Por mais que essas pessoas estejam ali construindo agências criativas e políticas através da performance, é diferente do que seria se elas tivessem, além disso, também organizando a mise-en-scène, tomando as escolhas da montagem etc. Enfim, colaborando criativamente no processo também de outras formas. Não se trata de argumentar isso de um ponto de vista genérico e deslocalizado, que poderia pressupor essa resposta a partir de qualquer problema de representação, mas de pautar a dissonância específica entre a premissa e o gesto do manifesto. E se entendemos que o princípio de organização criativa do cinema está historicamente arraigado numa hierarquia das funções criativas que tende a refazer as hierarquias que estão dadas no mundo, não caberia a um manifesto cinematográfico como esse enfrentar um enquanto se enfrenta o outro? Não seria uma questão de sustentar a estrutura de poder substituindo de modo conveniente os corpos que a compõem, mas de propor que o gesto do manifesto possa se dar através da própria estrutura de poder que trabalha a favor daquilo que ele enfrenta. Em outras palavras, não apenas representar a luta, mas corporifica-la na matéria das estruturas de poder – talvez esse seja um primeiro passo para se repensar a natureza e continuidade dessa hierarquia. Ademais, se os realizadores reconhecem os limites argumentados por Renata Carvalho e inclusive optam por manter no corte final esse reconhecimento, por que não abrir esse espaço? Não estaria a exposição dessa consciência substituindo a tomada de atitude diante dela? No fim das contas, retomando o seu primeiro comentário, fico também com a impressão de que o filme é um atestado de culpa de quem tem poder, uma tentativa de se dignificar colocando-se no lugar da disposição à escuta, da disposição ao diálogo. Mas em suma, não seria ainda um filme sobre a branquitude e pela branquitude? Não seria uma maneira da branquitude, através de um mea-culpa, de continuar se colocando nos holofotes?

Felipe André: Com certeza.


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