olhar 2 filmes perel e outro 2020

A lata de lixo da história

1. Em meio a lapsos de alegria, crescimento econômico e arroubos de revolução, os anos 2000 e 2010 viram acontecer uma espécie de “cinema festivo” que celebrava, geralmente a partir de corpos jovens, energias relegadas a segundo plano por muitos anos. Talvez por seu caráter individual, talvez pela sua ingenuidade. Fato é que, por exemplo no Brasil, aconteceu uma movimentação interessante, cujos traços podem ser rastreados em vários lugares: na Universidade Federal Fluminense, de onde curtas como Hiperselva (Helena Lessa, Jorge Polo, Lucas Andrade e Pedro Lessa, 2014), e Corações Sangrantes (Jorge Polo, 2015), ou no já notório cinema do cearense Leonardo Mouramateus, ou mesmo nos experimentos de cinema queer da produtora Surto & Deslumbramento, em Pernambuco. Não quero dizer que esse período estava totalmente descolado de sua realidade política, mas foi um breve momento de maior permissividade estética e narrativa, uma primavera maneirista para o cinema brasileiro e mundial. A realidade, que começou a bater na porta de forma mais incisiva em 2013, parece ter sido o disparador de uma tomada de consciência que começou no reconhecimento do próprio corpo enquanto espaço de disputa, nesses estranhos terrenos de celebração e batalha que eram essas festas, e que anos à frente se transformariam num cinema mais frontalmente político. Foi nesse mesmo 2013 que o espanhol Luis López Carrasco propôs a sua festa, com o essencial e infelizmente obscuro El Futuro.

2. Noite de festa num apartamento, Espanha, 1982. O partido trabalhista venceu as eleições e a sociedade, em especial os jovens, estão absolutamente eufóricos com seus planos de futuro, eufóricos por sair, pela primeira vez em décadas, da sombra do Franquismo e das garras da direita. Eufóricos o suficiente para deixar para trás uma malfadada tentativa de Golpe de Estado no ano anterior. As palavras de ordem eram manter a democracia, fortalecer a economia, unir a nação. Nessa noite, nesse filme tão breve, os jovens bebem, falam de amenidades, flertam, dançam as mais novas músicas produzidas em seu país, e fermentam esse sentimento sobre as coisas que estão por vir. Ver El Futuro como uma proposta de utopia, um sonho levemente febril do que as coisas poderiam ter sido, deixa ainda mais intensa a ressaca causada por um paquiderme como O Ano do Descobrimento.

3. A primeira e talvez mais delineada estranheza seja a deliberada confusão temporal que se instaura logo que as primeiras personagens começam a compartilhar suas anedotas e historietas. Estamos dez anos depois da festa naquele apartamento, mas de alguma forma estamos também nos dias de hoje, olhando para esses momentos. Carrasco parece propor que a febre de futuro e juventude foi tão intensa que os índices temporais ficaram um pouco borrados. O cenário é muito mais opaco: uma cafeteria em Cartagena, Murcia, para onde confluem todas as vítimas diretas e indiretas do colapso vivido pela região em 1992, ou pelo capitalismo, em qualquer capítulo da história. No ano em questão, enquanto ocorriam as Olimpíadas de Barcelona e a Exposição Universal de Sevilha, Cartagena queimava em protestos populares motivados pela crise econômica. A ação repressiva da polícia contra os manifestantes culminou no incêndio do parlamento da Comunidade Autônoma.

4. Havia uma classe muito interessante em El Futuro, fruto sobretudo de sua fotografia refinada em 16mm, mas também de seu efervescente sentimento de vitória, de sua exuberância e confiança nesse conceito estranho que é a possibilidade do que está por vir. O Ano do Descobrimento tenta operar num polo oposto, trocando o refinamento do grão pela violência da textura de VHS, trocando o luxo de uma festa pelo campo de batalha de um café popular, onde só se vem para matar a fome e troca relatos de mazelas com alguém disposto a ouvir e falar. Todos esses elementos são apenas aparatos para sustentar a maior das diferenças: enquanto havia algo de muito coletivo e fluido na vitória, a derrota é dura e individual. Montado numa tela perpetuamente dividida, o filme de Carrasco aprisiona essas pessoas, resignadas ou não, numa imagem e numa estética levemente desumanizadora: o espaço é um só, as roupas se parecem, a cor é fria e morta, mas as histórias estão vivíssimas.

5. Nesse sentido, a operação aqui, que difere de El Futuro por existir num limbo pouco preocupado em se delinear documentário ou ficção, remete muito aos melhores momentos de Eduardo Coutinho, quando o diretor se retirava quase que totalmente da mediação e escutava muito atentamente o que suas figuras compartilhavam, entendendo o valor de documento histórico que o relato, contado em tons de anedota, de como uma mulher angariou respeito trabalhando num espaço majoritariamente masculino nos anos 1980 pode ter. Diferente talvez seja o movimento narrativo e insidioso que Carrasco descreve, ao aproximar o “clímax”, nesse caso a materialização visual da destruição do Parlamento, com opiniões cada vez mais politicamente apontadas para a direita, defesas de projetos neoliberais que soavam como a grande tábua de salvação desses cidadãos. O jogo de tentar compreender o quanto de observação pura e o quanto de fabricação narrativa compõem esses depoimentos é das sensações mais desconcertantes que ele consegue provocar. E se for tudo verdade, quem poderá culpá-los?

6. Das coisas mais belas desse filme, e da obra de Carrasco, é uma compreensão muito profunda de que o elemento humano e a história são entidades indissociáveis. A vida não existe apenas a partir do reconhecimento externo, a partir de um processo de alteridade, mas a história sim. É preciso que os atores da história, seja no tempo presente ou num futuro distante, compreendam e aceitem os mecanismos pelos quais as coisas se deram de maneira tal, porque somente assim é possível reconhecer, de fato, algo como uma sociedade, um povo, ou o dizimar deste. Existem formas diversas de exercer esse reconhecimento, mas a palavra falada talvez seja o mais valioso e urgente, já que se confunde com o termo em questão: História/História.

7. História: um livro chamado “Responsabilidade Empresarial por Crimes Contra a Humanidade e Repressão de Trabalhadores durante um Estado de Terrorismo” radiografa a participação de grandes e médias corporações em crimes contra os direitos humanos durante a ditadura militar argentina. Publicado às pressas em 2015 pelo Ministério da Justiça e Direitos Humanos da Argentina, no fim de um mandato que cederia lugar ao governo de Macri, o texto é uma descrição direta e objetiva de operações governamentais de opressão política auxiliadas pelas citadas empresas, nomes de vítimas, locais e motivações. Um método para lidar com as marcas da violência política praticamente alienígena para nós, brasileiros, ainda que, num desdobramento muito similar ao que acontece entre nós, o livro seja virtualmente desconhecido pelos argentinos.

8. Responsabilidade Empresarial, o filme de Jonathan Perel, soa como uma espécie de cria bastarda e politicamente ativa de James Benning. Para Perel, a contemplação é ferramenta essencial para que não se esqueça, para que o absurdo permaneça vivo, com a gravidade que tem, mas o discurso-palavra é igualmente importante. Perel dirige seu carro até as portas das indústrias citadas no livro em questão e ali propõe um confronto de homem versus máquina, vítima e algoz, enquanto lê estoicamente o texto; um Lumiére consciente das agruras contidas na imagem de trabalhadores encerrando o expediente e saindo da fábrica (quem sabe indo para uma cafeteria próxima). Aqui, no entanto, não há trabalhadores. A devastação das forças de trabalho já se deu muito antes, e de maneiras muito mais perversas. A sisudez e economia dessas imagens confere a elas um tom que beira a videoarte (faria muito sentido vê-las numa galeria, por exemplo), mas discordo de comentários que sugerem a falta de caráter “cinematográfico” do filme como um todo. O que Perel faz, afinal, é usar a ferramenta primeira do cinema, a capacidade de mostrar.

9. É interessante, mas talvez não de todo surpreendente, que suas imagens mais potentes sejam aquelas onde o peso da história se materializa: a visão de indústrias abandonadas, o ponto final do sonho capitalista, uma risada de escárnio na cova dos mortos. De certa forma ele parece tecer uma conversa muito frontal e dura com The Exit of the Trains (2020), dos romenos Radu Jude e Adrian Cioflâncã, documento longuíssimo que arquiva e cataloga os judeus assassinados na Romênia durante o massacre de Iasi. Para Radu e Adrian, assim como para Carrasco e Perel, é preciso render às coisas o tempo que elas demandam, seja ele o tempo de uma conversa de bar ou de um documento que existe apenas para deixar claras as rachaduras na configuração de uma sociedade. Não é raro ouvir comentários sobre como Responsabilidade Empresarial é um exercício de estilo maçante e arrastado. Me parece que a batalha para salvar a história, essa história, está perdida.


Leia também: