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Fronteiras do esquecimento

Um pouco filme de terror, um pouco suspense investigativo, um pouco drama e um pouco documentário, Pajeú é uma junção entre a tentativa de dar continuidade ao recente diálogo de um certo cinema brasileiro com as convenções de gêneros americanos e o desejo de se apoiar em operações documentais como estratégia para um diagnóstico político ilustrativo, imediato. A sequência de abertura nos revela o encontro de Maristela (Fátima Muniz), protagonista, com uma espécie de assombração, que logo entendemos ser a figura do monstro, iconografia característica dos filmes de terror. O monstro, sendo tipicamente uma manifestação material ou psicológica do medo, do desespero ou da ansiedade, apresenta as possibilidades narrativa e estética de que um problema de ordem política ou social – que em princípio teria seu escopo muito além dos limites do sujeito – tenha sua superfície de contato, sua expressão de realidade, diretamente na interioridade do indivíduo. O que antes era um antagonismo entre o sujeito e o mundo passa a ser um conflito de consciência.

Através das investigações da protagonista, descobrimos que Pajeú se trata do nome do rio sobre o qual a cidade de Fortaleza teria sido erguida. Conforme seu interesse evolui e as conversas se acumulam, Maristela passa a se engajar por perguntas como “você tem medo de ser esquecido?”. Fica claro que a relação da cidade com o rio Pajeú, com a sua história, está sendo avaliada a partir das ideias de identidade individual dos entrevistados, o que de alguma forma sinaliza que aproximar-se da história do seu lugar de vivência é também um caminho para se repensar a própria história, a própria identidade. Dito de outro modo, o filme busca reconectar os destinos individual e coletivo, pôr em xeque uma premissa de sociedade que relega esse vínculo ao abandono. A figura do monstro, portanto, é um reflexo das inseguranças que transcorrem por cada tijolo dessa ponte; é um reflexo dos medos de renunciar ao passado a tal ponto que o presente se torna não mais do que uma impressão efêmera de mosaicos perdidos no tempo. É um problema que o filme persegue a todo custo: será que mais à frente há um precipício do qual não se pode retornar? Um futuro sem lembranças, sem preservação, sem história? Um futuro em que a marcha do progresso é tão implacável que o presente não pode ser senão um eterno processo de despejo?

Não obstante, como Felipe André Silva bem aponta em sua crítica do filme para a Zagaia em Revista: “Não é exagerado dizer que Pajeú, córrego que corta Fortaleza, e se viu literalmente soterrado pelo progresso, apresenta uma ideia muito clara de Brasil. Está ali a invasão portuguesa, a falta de planejamento urbano, a negligência política, a especulação imobiliária”. Pajeú é, pois, um espelhamento de um momento político do país; um momento em que as narrativas históricas também se veem cada vez mais atacadas, distorcidas, fragilizadas. As convenções de gênero do terror em Pajeú elaboram, então, uma medida de suposição do que seria essa realidade política sob uma chave psicológica: uma crise de identidade. A estrutura documental do filme permite que, através das entrevistas, sejamos muito bem informados tanto da história do rio Pajeú quanto do seu estado atual de sucateamento, tendo se tornado essencialmente um esgoto. Oferecendo uma dimensão do descuido com que se realizou o apagamento do Pajeú, uma entrevistada chega a dizer que quando chove, o rio transborda e enche tudo d’água. Outro entrevistado também comenta que sua casa é constantemente invadida pela água, que chega a 50cm dentro de casa.

Em certo sentido, Pajeú é um filme muito nitidamente dividido em três partes: a primeira, em que a protagonista digere psicologicamente a ameaça, e na qual temos todos os elementos da preparação de um filme de terror; a segunda, em que a protagonista decide partir à procura de respostas e temos um misto de suspense investigativo e drama com tons documentais na condução das entrevistas; e a terceira, em que a protagonista entrevista pessoas na praia, quando o filme parece já ter abandonado o drama de vez e mergulhado de cabeça no documentário. Apesar de ser a interessante a premissa de costurar essa variedade de formatos em um único filme, Pajeú nunca consegue realmente articular suas estratégias de abordagem, e ao final é difícil não se perguntar qual o propósito de certas escolhas que o filme opta por negligenciar ao longo do caminho.

Na primeira parte, por exemplo, quando o filme lida com as convenções de gênero do terror, a ideia é que tenhamos uma perspectiva daquele problema social pelos efeitos que ele produz no corpo e na psicologia de Maristela, o que de algum modo nos diz que compreender o problema é sobretudo compreender como ela o processa. Quando chegamos à segunda parte, há uma sensação de dissonância peculiar a partir desse preparo, porque ao mesmo tempo em que o filme subentende que para dar substância aos códigos de gênero que estabeleceu é preciso ter uma boa ideia dessa recepção emocional e psicológica da protagonista – e não à toa temos cenas como a de Maristela contemplando um mundo em transformação e a do bar-karaokê, que tentam dar conta disso –, ele registra as entrevistas num caráter documental que dificilmente poderia sustentar essas demandas. Afinal, o procedimento de entrevista documental que Pajeú emprega é acima de tudo uma operação de escuta. Do ponto de vista da narrativa e do documentário, é uma estratégia cujo intuito é agregar fontes de informação sobre o problema e identificar como esse problema se expressa através de várias realidades e vários corpos, sendo o entrevistado a ponte entre a informação bruta e a informação emocional – ponto de contato entre o problema e a vida do entrevistado –, o que evidentemente coloca o entrevistado em primeiro plano e a protagonista em segundo plano.

O preparo do filme no primeiro ato, contudo, vai na exata contramão dessa escolha. Em um filme de terror ou de suspense investigativo, a entrevista ou o contato com o outro é menos uma ocasião de escuta do que uma oportunidade de observar como uma informação inédita pode gerar novos efeitos psicossomáticos, novas camadas de densidade no buraco psicológico que um determinado protagonista estaria adentrando – basta pensar em suspenses investigativos como Zodíaco (2007), Under the Silver Lake (2018) ou um filme de terror como Morto Não Fala (2018), projeto mais recente de Dennison Ramalho. No modo como as cenas se conectam e a protagonista se porta entre elas – quando observa os espaços sob atmosferas sonoras de tensão –, há um interesse visível de lidar com um suspense investigativo, visto que essas cenas de conexão tentam justamente dar a dimensão de como as informações decorrentes das entrevistas estariam transformando aquele olhar – trazendo, assim, a protagonista de volta como prioridade, como fio condutor. A maneira, porém, com que as entrevistas contradizem esteticamente esse percurso cria um atrito que nunca se resolve, uma incongruência que faz o filme soar simplesmente indeciso. Para que os gestos de observação de Maristela sobre um mundo que se apresenta para ela como crescentemente assombroso ressoassem, seria necessário que existisse uma substância estética e narrativa com as cenas de entrevista, pois é nessa troca que está dada a relação de causa e consequência que catalisa a observação. As cenas de entrevista e de observação, no entanto, parecem pertencer a filmes diferentes, o que faz com que a força narrativa de causa e consequência nunca aconteça.

A tentativa de Pajeú de se equilibrar na corda bamba entre tantas abordagens é o que parece ser o grande obstáculo, porque o filme é consideravelmente mais feliz quando se detém exclusivamente sobre o terror – no primeiro ato –, sobre o drama – no bar-karaokê – ou sobre o documentário – nas entrevistas na praia. A cena do bar-karaokê é isoladamente muito boa, e desde o excepcional Inferninho (2018) já havia ficado clara a intimidade de Pedro Diógenes com cenas como essa, que em muito assemelha-se ao universo de Inferninho. Apesar disso, é sem dúvida uma cena saída de um filme de drama – Inferninho é a evidência –, e que ela entre para contextualizar a paisagem emocional da protagonista à luz do que teria se construído a partir do terror e do – suposto – suspense investigativo é um indício de que o filme parece pouco disposto a realmente incorporar e investir nos códigos de gênero dos quais se apropria, optando, em contrapartida, por navegar por todos sem se comprometer com nenhum. A escolha por uma cena como a do bar-karaokê para um estudo emocional da protagonista parece estar ligada menos a um engajamento com as demandas estéticas da narrativa do que à concessão a uma zona de conforto; uma forma de se acomodar numa ideia de cinema que já está mapeada, na qual já se sabe operar, ainda que essa ideia tenha pouco ou nenhum diálogo com a matéria do filme que se está fazendo.

As duas cenas que antecedem a do bar-karaokê, inclusive, são cenas que assumem os códigos do terror bem literalmente: uma primeira em que Maristela se sente transtornada ao ponto de parecer estar engasgando enquanto observa o rio Pajeú, o que a leva a visualizar novamente a figura do monstro, e uma segunda em que ela acorda em sua cama abruptamente e com falta de ar, saída de um pesadelo. Que essas cenas antecedam a do bar-karaokê só a torna ainda mais estrangeira no corpo do filme. Assim, é como se nenhuma das abordagens chegasse a encontrar um desenvolvimento ou um resultado. É difícil não ter a impressão de que o filme soa como uma colagem de muitos códigos que não conseguem se fechar e nem conversar entre si. A sequência das entrevistas no terceiro ato, na praia, partilha de uma condição similar à cena do karaokê: ela é boa isoladamente e consegue encontrar um material de escuta interessante, mas não dialoga com a unidade do filme. As entrevistas do terceiro ato ao menos soam mais eficientes do que as do segundo, pois àquela altura o filme já renunciou ao drama e coloca ambos os pés no documentário, o que permite que internamente a sequência seja coerente. No segundo ato, as entrevistas provocam um estranho senso de despropósito, de estarem à deriva, porque ainda que Diógenes esteja as registrando por uma operação de escuta característica do documentário, é perceptível que há uma vontade de, no curso desse processo, passar uma sensação de que ainda se está sob a atmosfera da ficção, do drama, do suspense investigativo. Além disso, como o documentário de entrevistas tende a ser naturalmente expositivo, essa tentativa do segundo ato de manter as entrevistas coerentes com o drama gera uma impressão de que o filme está sendo demasiadamente expositivo, de que está se utilizando delas para interpretar e explicar a si mesmo. É impossível esperar, por exemplo, que uma conversa como aquela com a entrevistada que discursa sobre o rio Pajeú a partir dos seus estudos de Mestrado consiga minimamente se integrar ao fluxo da ficção, do drama. No terceiro ato, por outro lado, essas preocupações parecem não estar mais lá, e tudo o que importa é a escuta e nada mais, o que permite que as entrevistas tenham uma outra fluidez; é como se elas não devessem mais nada ao drama.

É claro que não há nada mais comum no cinema de gênero do que a interpelação de códigos de gênero em um mesmo filme, do mesmo modo que o doc/fic já se consagrou como formato há muito tempo. A problemática de Pajeú não é tanto sua ambição quanto sua prática. Não é o que o filme opta por fazer, mas como opta por fazê-lo. Ao invés de elaborar os atravessamentos a partir de um pensamento sobre a unidade do filme, Diógenes agrega uma série de elementos que só fazem sentido estético no interior de sua própria estrutura e que sequer parecem planejados para conversar com os elementos antecedentes ou subsequentes – senão tematicamente, apenas. Como processar, por exemplo, uma cena dramática de expurgo como a que encerra o filme quando Pajeú já deixou o seu drama perdido pelo caminho faz tempo? É certo que o expurgo poderia ser visto como a sublimação de uma catarse coletiva decorrente da metonímia que o apagamento do rio Pajeú representa no contexto político atual do país. Mas aí também resta uma dúvida: sequestrado de todo fundo dramático, poderia esse expurgo de fato ser uma catarse ou seria ele só mais um comentário dentre tantos outros que o filme acumula pelas entrevistas? No fim das contas, Pajeú ao menos deixa um novo desafio em jogo para o recente percurso do cinema brasileiro no cinema de gênero: seria possível para o cinema brasileiro hoje lidar com um legado histórico de escuta imensurável como o de Eduardo Coutinho sem perder de vista a força política e estética da apropriação dos códigos de gênero que tem potencializado alguns dos gestos criativos mais arrebatadores dos últimos anos?


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