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Perdi a cabeça, pulei na piscina

Então me lembrei: não sabia nadar

“Boca a boca”, composição de Nazildo e Juvenal Ungarelli

1. Uma ideia mais ampla, profunda, profissional etc., do que seria um tal “cinema brasileiro” ainda não estava na minha gama de preocupações quando assisti a Alguma Coisa Assim, curta que Esmir Filho dirigiu em 2006. Já naquela época, no entanto, era possível notar certa distância mantida entre o cinema jovem, ativo, colorido e queer (há quem dispute o termo, mas a discussão não cabe aqui e agora), proposto pelo cineasta paulista e as machonarrativas do nosso cinema.

2. 2006 foi também o ano em que Beto Brant e Renato Ciasca lançaram Cão sem Dono, que, mesmo não sendo uma antítese perfeita do cinema de Esmir (o afã juvenil, ou quase, de se afogar nas possibilidades da vida perpassa ambos), colabora um tanto com a pintura do panorama. Desde sempre, dramas sobre corpos cis hétero exercendo qualquer função, habitando qualquer espaço, são apenas isso, filmes. Se um elemento gay (ou queer) é adicionado à narrativa, automaticamente estamos diante de um filme “temático”. E essa lembrança me ocorreu sobretudo porque o material no qual ele se baseia, o livro Até o dia em que o cão morreu, do gaúcho Daniel Galera, está para a literatura assim como seu par filmado está para o cinema. Os anos 2000 e 2010 foram o grande campo fértil de certa literatura brasileira que tinha enorme interesse nas desventuras do homem branco de pretensões artísticas frustradas e relações tóxicas com mulheres quebradas. Essa definição é algo redutora, e certamente muita coisa interessante aconteceu nesse intervalo, mas é impossível não notar que a falta de disputa, tanto criativa quanto crítica, estabeleceu como boas um punhado de narrativas espelhadas e derivativas. Eu adorava, ainda adoro, mas me alivia saber que outras literaturas são possíveis.

3. A curiosidade que os curtas do Esmir causaram (e é curioso pensar que Tapa na Pantera foi um dos grandes precursores do vídeo viral na cultura internética brasileira) desembocaram naquele que para mim é um dos grandes momentos audiovisuais dos anos 2010, sua porta de entrada, se podemos chamar assim. Os Famosos e os Duendes da Morte, preferências deixadas de lado por um instante, é um filme jovem como não se fazia no Brasil até então, e que levou muito tempo até desaguar como referência para quem vinha. À época reduzido a um combo de Carlos Reygadas, Andrei Tarkovski, e estética emo, o que faz pouquíssimo sentido, diga-se de passagem, e denota a grande resistência que a crítica brasileira teve em relação ao filme. Famosos fazia um esforço muito energético e refinado de pensar como poderia se dar o transplante de um filme high-schooler gélido e europeu para o sul do Brasil. O frio e certa Europa seguiriam presentes, mas não sem algum tensionamento geográfico; tanto que a cultura colona do interior Riograndense é das grandes questões de incômodo para o protagonista. Ele quer sair de lá, ter outro corpo, habitar outros espaços. Drama jovem, mas não só.

4. Existe um vídeo muito interessante da Lindsay Ellis, escritora e crítica cultural americana, em que ela comenta o fenômeno de manada que foi o ódio apontado para a Saga Crepúsculo e suas consumidoras. Lindsay defende que o desprezo não está direcionado a vampiros que brilham, mas sim a meninas adolescentes, que existe algum pacto comum para rechaçar tudo que possa ser associado com esse gênero e faixa etária. No mesmo vídeo ela demonstra como, curiosamente, o livro Ready Player One, que talvez tenha menos mérito literário que a série de Stephenie Meyer, não angariou ódio parecido, sendo até alçado a certo status de cult. O público-alvo do livro de Ernst Cline é sobretudo masculino.

5. Ou seja, é muito difícil falar sobre o período da adolescência com alguma franqueza, respeito e consideração, sobretudo se levarmos em consideração que boa parte dos realizadores interessados nesse tipo de história se alimenta muito de certa verve nostálgica em seu processo criativo. Quando isso é motor e base para o filme per se, acabamos com coisas interessantes como o Califórnia (2015), de Marina Person, que reconstrói o espírito jovem oitentista com algum sucesso. Quando se trata de pessoas de 40 anos tentando entender a cabeça de alguém que tem seus 14 agora, incorre-se no grande risco da cisão ficar evidente, ou de ceder simplesmente ao exploitation barato– vide Depois de Lúcia (2012), de Michel Franco, exemplo primeiro de torture porn para a era do bullying. Há muita eletricidade e letargia em conflito na juventude dos anos 2010-20, há uma torrente absurda de informação e compartilhamento, e isso gera um volume ainda maior de apatia e desprezo por um mundo em franco processo de autodestruição, e essa é apenas uma possibilidade de ser. Não proponho aqui que se evitem as pinceladas folhetinescas ou o melodrama (Caroline Fioratti dirigiu Larissa Manoela numa coisa muito singela chamada Meus 15 Anos, de 2017, e tenho certeza que o nome da protagonista rechaça qualquer interesse mais rápido que o tempo de ler a sinopse), mas levar em consideração que não há qualquer demérito ou empecilho em construir uma narrativa a partir de pessoas em construção. Afinal, qual de nós não está?

6. Depois de se colocar, em meus olhos pelo menos, como um grande projeto de virtuose, Esmir Filho desapareceu dos radares em alguma medida, para retornar com uma continuação/desenvolvimento de seu já citado e bem sucedido curta, o que infelizmente não funcionou. Algumas histórias dependem do seu tempo e entorno para manter certo viço criativo, precisam de colágeno. Por isso me intriga tanto e tão positivamente a existência de Boca a Boca. Uma série que é (e não é) um retrato muito curioso, falho, potente e caricato dessas juventudes 2010-20.

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7. Estruturada mais como um filme fatiado em porções do que uma narrativa episódica de fato (formato cada vez mais favorecido pelos serviços de streaming), a série embarca desde o primeiro momento numa cruzada vertiginosa e algo confusa que atravessa veganismo e agronegócio, sexualidades dissidentes e homofobia, abordagens médicas de caráter duvidoso, fake news, negritude, luto, e romance adolescente, tudo envelopado em pinceladas de ficção científica neon. Distante daquele primeiro momento citado, onde essas histórias eram francamente raras, Boca a Boca surge no rastro de coisas como Assassination Nation (2018) e Euphoria (2019), de Sam Levinson, e Boi Neon (2015) e Divino Amor (2019), de Gabriel Mascaro, para me manter em dois cineastas que investiram boa parte de sua energia em propor confluências interessantes entre estética extremamente composta e narrativas demasiado humanas. No entanto, mesmo surgindo num terreno mais receptivo, é curioso seu gosto de novidade.

8. Me foge agora a informação precisa, mas creio que essa seja a décima quinta incursão do Brasil no universo de originais da Netflix e, posto que não acompanhei os resultados sempre de perto, existe agora uma tentativa interessante, e algo nova, de ruir com os limites notoriamente estritos que a empresa propõe. Não é segredo para ninguém, sobretudo para os profissionais da indústria, que o padrão Netflix de qualidade é uma realidade, e é possível notar, por exemplo na maneira extremamente polida e pudica com a qual o sexo (e todos os outros temas, verdade seja dita) é tratado pelos roteiristas, que este material não passou imune aos regimentos da empresa. No entanto, parece haver um tônus particular no uso da representação do beijo, por exemplo, que me parece propor uma centelha de anarquia.

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9. A crítica Emma Stefansky disse ter ficado enojada com a quantidade de línguas e saliva envolvidas nos beijos da série, o que me remeteu a uma antiga discussão sobre certa americanização das literaturas latinas. A já citada geração literária brasileira dos anos 2000 foi cultivada à base de um culto a nomes como David Foster Wallace, Thomas Pynchon, Jonathan Franzen e Don Delillo (curiosidade: o título internacional do primeiro longa de Esmir foi tirado das últimas páginas de Ruído Branco, livro essencial de Delillo), o que implicou numa clara assepsia e rechaço a tudo aquilo considerado sujo, visceral, latino. Traço geracional, nenhum problema nisso, é possível encontrar essa mesma assepsia, essa limpeza anglófona nas próprias criações de Esmir, mas me parece haver algo de muito brasileiro em Boca a Boca. É uma trama que, sim, deve muito ao universo do high-school norteamericano, mas transpõe isso para uma comunidade agrícola no interior do Brasil onde os conflitos se configuram todos a partir de um sentimento muito novelesco. A representação das figuras adultas, por exemplo, em especial a diretora escolar interpretada por Denise Fraga, caminha a todo momento no limiar do caricato, usa frases de efeito com propriedade, não tem medo de deixar suas intenções – e aqui me refiro a intenções do momento, da cena – perfeitamente claras. Não há muito espaço para propor interpretações quando o personagem delimita seu espaço com vigor, ele quer ser compreendido rapidamente, assim como numa novela. E não há nada mais brasileiro que novela.

10. A disputa sobre o termo queer à qual me referi anteriormente surgiu por conta do arremate escolhido por Esmir para o arco da primeira temporada. Boca a Boca é, muito surpreendentemente, uma série sobre certo furor adolescente que emana sobretudo da expressão sexual e sentimental de cada um, mas que escolhe não transformar isso numa questão particularmente delineada. Quase todos os personagens jovens participam de festas onde não parece haver uma grande preocupação com rótulos de sexualidade, e mesmo quando isso é questionado para além dos momentos de loucura, as consequências parecem não ser tão definitivas. Há quem chame de oportunidade perdida, eu preferiria ler como uma possibilidade de projeto utópico, algo como a São Paulo de Marcelo Caetano em Corpo Elétrico (2017).

11. No entanto, essa proposta parece ser totalmente desconsiderada quando surge o famigerado momento de violência homofóbica do sexto e último episódio. Estaríamos novamente numa disputa com os processos algorítmicos do padrão Netflix? É preciso, por algum motivo relativo à recompensa narrativa que um espectador desse tipo de plataforma supostamente necessita para se manter atraído, filmar um corpo queer sendo brutalizado? É importante pontuar que não se trata, e aqui falo de um ponto de vista puramente pessoal, de levar em consideração uma política pós-moderna de ”gatilhos”, mas de ter coerência com o universo estabelecido. Boca a Boca é, desde o princípio e sem ônus relativo a isso, uma série que opera em fogo brando. As questões existem, mas não são definitivas, como o fazendeiro inescrupuloso que é mau, mas num grande esquema das coisas não representa um perigo factual. Apresenta-se mais como peça de um sistema que, este sim, é o vilão. O peão mais velho cria uma relação com o adolescente da capital, mas no que diz respeito à idade não há qualquer implicação maior – curiosamente, são as suas origens e estratos sociais que criam um ruído. Há uma corrente algo moralista e religiosa entre os adultos da cidade, mas ela é rapidamente desprezada quando a necessidade real de união surge. Os jovens estão morrendo, aparentemente vítimas de sua própria avidez por liberdade, mas há julgamento nisso? Creio que não.

12. Em certa medida, a maneira como essas emoções cozinham em baixa temperatura me lembra os cinemas de Leonardo Mouramateus e Anita Rocha da Silveira, exemplos claros de certa corrente dos últimos 10 anos que observa a juventude com carinho e estranheza em igual medida, ou talvez a observa plenamente pela primeira vez. No entanto, o questionamento segue: Enquanto elemento “facilitador” na trama, parece particularmente perverso que o espancamento homofóbico de um personagem esteja intrinsecamente conectado com a possibilidade de ele receber o “perdão” ou a “benção” de seu pai.

13. Certamente gravada há muitos meses atrás, existe um momento em Boca a Boca onde o uso de máscaras de proteção se dá de forma muito curiosa. Uma analogia aos contraceptivos, uma piscadela para os que morreram antes, uma coincidência. Essa imagem me persegue até agora.


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