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A matemática do poema

A exibição conjunta no festival Ecrã de Telemundo (2018), filme dirigido pelo septuagenário artista norte-americano James Benning e co-escrito com a jovem atriz e cineasta argentina Sofía Brito, e de 中孚 61. A Verdade Interior (2019), filme-ensaio elaborado por Brito durante o processo de colaboração entre os dois, é uma oportunidade e tanto de imaginar o que pode significar um encontro em cinema.

Em Telemundo, Sofía e James estão em cena, durante noventa minutos, em frente a uma televisão ligada no canal hispânico Telemundo, que exibe O Castelo da Pureza (1973), longa-metragem do mestre mexicano Arturo Ripstein. O plano único e fixo dura o quanto dura a exibição do filme na televisão, incluindo as pausas para os comerciais. De certa maneira, Benning continua o interesse de Leitores (2017), apontando a câmera para a densidade corpórea e temporal do ato de fruição estética. Mas se em Leitores a concentração na experiência da leitura é máxima – quatro planos de pessoas lendo um livro, em silêncio, entrecortadas apenas por uma breve citação do livro lido –, em Telemundo o mergulho na experiência de assistir televisão vem contrabalançada por uma pletora de histórias, conversas, poemas intercambiados entre os dois em meio à fruição. Com o detalhe fundamental de que um não entende completamente o outro (ao menos no sentido convencional). James não entende nada de espanhol e Sofía entende apenas um pouco de inglês.

Imagem2Telemundo (James Benning, 2018)

Imagem3Reverse Television (Bill Viola, 1982)

Por um lado, o “monomorfismo” de Benning, como definiu Hermano Callou aqui na revista, segue presente, pois se trata de um conceito tão estrutural e cerrado quanto o de Dez Céus (2004) ou Vinte Cigarros (2011). Desse ponto de vista, o projeto é uma radicalização da experiência de Bill Viola em 1982, quando em Reverse Television o artista elaborou uma série de retratos curtos em vídeo de espectadores de televisão – em plano fixo, de poucos segundos –, destinados inicialmente à exibição nos intervalos da programação televisiva. Se em Reverse Television a banda sonora era composta unicamente pelos ruídos ambientes captados nas casas dos retratados – com uma especial atenção aos ruídos da rua –, aqui é o som do filme de Ripstein que é decisivo na experiência, ainda que o espectador nunca o tenha visto: os gritos, a música, o ruído constante da chuva que contrasta com o silêncio quase absoluto da casa. Com a duração virtualmente infinita do digital, Benning expande as possibilidades do vídeo e nos faz mergulhar nas reações ao filme que não vemos, mas também na vacilação da atenção, nas diferentes posturas e, sobretudo, no desconforto desses corpos tão diferentes que compartilham um tempo e um espaço. Uma aventura inevitável é seguir imaginando que encontro desconfortável é esse, quem são esses dois que mantêm sempre uma distância segura um do outro, qual é a natureza dessa misteriosa relação.

Por outro lado, o encontro com a sensibilidade artística de Brito – que co-escreve o roteiro com Benning, além de atuar junto dele nesta pequena ficção de câmara – dispara uma vontade de drama. As intervenções verbais de ambos – James em inglês, Sofía em espanhol – ressignificam constantemente a experiência do filme. Quando James faz uma proposição filosófica sobre a possibilidade imprevista de conhecer – talvez melhor – uma cultura mesmo sem conhecer sua língua, Sofía responde com um belíssimo poema de Alejandra Pizarnik: “a língua natal castra/a língua é um órgão de conhecimento/do fracasso de todo poema/castrado por sua própria língua/que é o órgão da re-criação/do re-conhecimento/mas não o da res-surreição”. Benning é um ator mais contido, cioso de um regime de contação de histórias, enquanto Brito expande as possibilidades para uma performance arrojada, que combina a naturalidade contrariada de sua experiência de espectadora – sempre inquieta, sempre a trabalhar sobre o incômodo da situação de fruição vigiada – aos arroubos da dicção dos poemas rigorosamente escolhidos.

O cinema recente de Benning é marcado por um gesto de depuração extrema: aquilo que num filme convencional é detalhe ou “plano de passagem” – alguém fumando um cigarro ou lendo um livro, uma vista do céu – adquire em seus filmes a centralidade absoluta (que um dos maiores artistas deste início de século XXI faça basicamente o que os camarógrafos dos Lumière faziam no fim do século XIX não será mera coincidência). O que surpreende em Telemundo – e já era uma marca relevante em L. Cohen (2017), com a presença marcante da canção de Leonard Cohen – é que esse cinema-vista seja, agora, atravessado por um traço romanesco. Um traço, não mais que um traço. É como se Benning, nas primeiras décadas do nosso século, estivesse refazendo o caminho Lumière-Meliès. Ou como se, retornando à infância, precisasse primeiro aprender a olhar, para depois começar a falar, ler e escrever. Que a nós seja dada a oportunidade de acompanhar essa aventura, como testemunhas de uma infância renovada, é um absoluto prazer.

Imagem1中孚 61. A Verdade Interior (Sofía Brito, 2019)

A Verdade Interior avança decididamente no caminho da composição romanesca. O filme se dispõe a narrar esse encontro, desde a conversa em um bar em Buenos Aires que disparou o convite para a colaboração até o processo de Telemundo, o compartilhamento de uma casa, os passeios pela vizinhança do esconderijo de James na floresta californiana, os desencontros linguísticos entre os dois mediados pelas tradutoras Alexandra Cuesta, Raquel Schefer e Andrea Franco. Se Telemundo é um filme da concentração – desde o enquadramento que empareda os dois atores contra o fundo do quadro até a história contada por Benning sobre o isolamento particular de sua casa nas montanhas, desde o desajeito dos corpos que assistem à televisão até a impossibilidade de comunicação numa língua comum –, A Verdade Interior é um filme da fuga, dos espaços abertos, do fôlego e da respiração. Move-se com destreza de uma imagem de arquivo do rosto de Sofía aos rascunhos do roteiro, do interior da casa a um passeio pela floresta, de uma tentativa de entrevista a uma viagem a São Francisco.

Num certo sentido, Telemundo é o filme perfeito para traduzir nossa própria experiência de isolamento atual – quando passamos tanto tempo diante das telas –, enquanto 中孚 61. A Verdade Interior é o que nos faz ter vontade de sair ao ar livre, encontrar gente e caminhar entre árvores gigantes. Mas as coisas são mais complicadas. Mesmo na frontalidade de Telemundo, o ângulo é levemente oblíquo, e ambos olham para um ponto situado à esquerda. Se não há ponto de fuga na imagem emparedada onde o olhar rebate, há essa presença constante no fora de campo de um vetor de descentramento, até que, ao final, ambos nos encaram de maneira verdadeiramente frontal. A fuga aqui é o retorno do olhar.

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Em A Verdade Interior, por sua vez, a multiplicação de estratégias narrativas não rima inteiramente com a dispersão, pois a costura de Sofía impele sempre a uma experiência muito íntima, silenciosa e atenta. Sua coleção de fragmentos não conduz a uma narrativa do processo que se destinasse a explicar ou a definir esse encontro. Há sempre algo que sobra, uma presença equivocada no quadro ou uma câmera que cai, uma sobre-exposição à luz da floresta ou um rosto que guarda sua impenetrabilidade, que o filme recolhe não como marcas de uma aleatoriedade inerente ao desenho de um filme-processo, e sim como pontos de atenção em si mesmos, como uma materialidade que é preciso encarar. Noutro sentido, portanto, o filme de Benning é o que nos faz desejar sempre o fora-de-campo, a abertura, o mundo – ainda que esse mundo seja apenas a televisão ali ao lado. E o de Brito é o que nos impele a ficar em casa, ler um poema e fitar o mistério das coisas.

O mítico encastelamento recente de Benning nas montanhas e num cinema que retirava sua força da solidão do artista foi perfurado pela impureza do encontro. E todo encontro pode ser um começo: o primeiro filme de Brito é também um sopro de fôlego em meio à inflação de um ensaísmo excessivamente entulhado de razão. A alegoria de O Castelo da Pureza – um homem que mantém toda a família encarcerada em casa durante anos, produzindo veneno de rato enquanto os “protege” da corrupção do mundo exterior – recobra sua força. Mas não na parábola do encarceramento, e sim no barulho da chuva que insiste em cair lá fora.

E assim como há algo da sensibilidade de James em Sofía, há algo da inteligência de Sofía em James. Talvez ela tenha definido melhor que ninguém o cinema dele, ao relatar uma teoria segundo a qual, se tomarmos o comprimento curvilíneo de um rio e dividirmos pela distância em linha reta entre a nascente e a foz, obteremos sempre, em qualquer lugar do mundo, o mitológico número pi (π). Todo rio percorre um caminho 3,141… vezes mais longo do que uma linha reta até chegar ao mar, numa espécie de necessidade intransigente de desviar. Encontrar na irregularidade tortuosa de um rio uma razão exata. Encontrar num teorema a sensualidade da água que corre. Definição possível para o cinema de Benning: uma equação matemática tão bela quanto um poema. Definição possível para o nascente cinema de Brito: um poema tão rigoroso quanto uma equação matemática.


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