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Um thriller paranoico

O novo projeto de Lewis Klahr consiste em um ciclo de seis filmes, exibidos em agosto no festival Ecrã. O cinema de Klahr tornou-se conhecido por uma certa maneira de se debruçar sobre a sensação de passado contida nos resíduos das indústrias culturais dos anos 1950 e 1960, a partir de uma prática de colagem que retoma o fascínio dos artistas surrealistas pelas formas fora de moda e o caráter inquietante de sua montagem de materiais heteróclitos. A mesa de trabalho de Klahr era o lugar em que fragmentos do mundo eram convocados a testemunhar a passagem do tempo, em filmes que recuperavam a tradição da animação de vanguarda, especialmente de Harry Smith e Stan Vanderbeek, para perscrutar a memória cultural do século passado. O seu novo filme, contudo, se distancia da melancolia dominante dos filmes anteriores, destinando um lugar marginal para os materiais de predileção que se tornaram sua marca característica, como os recortes de comic books, impressos em pontos Ben Day, que cedem agora os direitos de protagonismo. A maioria dos materiais de base de Prazeres Circunstanciais carrega, na verdade, a marca da contemporaneidade, consistindo em resíduos desprovidos de qualquer pendor nostálgico e investimento afetivo. Ao contrário, as qualidades dominantes dos materiais escolhidos são o vazio, o maçante e o neutro: pacotes, envelopes, embalagens, lacres de segurança, cartões de crédito, notas fiscais, adesivos de sinalização, códigos de barras, gráficos, passaportes e notas de dólar – os restos materiais da infraestrutura do capitalismo global. O horizonte de Prazeres Circunstanciais é o tempo presente.

A obra de Klahr sempre parece perguntar o quanto se pode suprimir de uma história para que ela possa ainda ser sentida – aprendemos com seus filmes que bastava às vezes um homem na penumbra, uma arma em riste, uma mulher em fuga para reconhecermos um gênero – como o noir, o melodrama, a ficção científica – e entrarmos na atmosfera de uma história ao mesmo tempo familiar e nebulosa. A capacidade de comprimir suas histórias em meia dúzia de motivos repetíveis funcionava como uma espécie de redução mítica dos gêneros de ficção popular. Em Prazeres Circunstanciais, a estrutura narrativa mínima que ainda era conservada em alguns filmes anteriores parece ter se perdido completamente; não temos nem personagens, nem situações claras, mas apenas a procissão de uma série de motivos, cujas afinidades, contudo, nos fornecem a consistência de um mundo ficcional. O filme não nos oferece a sensação de uma história em particular, mas insinua a ambiência de um gênero: o thriller paranoico. “Is there something wrong?”, pergunta uma figura no meio do filme, em uma de suas poucas frases legíveis. A sensação de que algo está errado exala de algumas das suas poucas figuras humanas, recortes de quadrinhos observados sob ângulos oblíquos, quando não vistos de costas, furtivos; encontram-se ocupados com telefonemas importantes ou em movem-se para longe de nós, olhando para trás, como se pressentindo uma ameaça. Uma série de fotografias sugere a ambiência de um thriller global: aeroportos, viadutos engarrafados, depósitos, refinarias, navios de carga – pontos de convergência de uma rede econômica complexa, pelos quais circulam vários motivos centrais do filme, como barris de petróleo, embalagens plásticas e contêineres, verdadeiros emblemas das nossas formas de vida, que assumem no filme a presença de um enigma. Os recortes de jornal de indivíduos como Donald Trump, Xin Jinping, Jeff Bezos e Mark Zuckerberg delineiam a atmosfera de conspiração, guerra comercial e poder que parece fervilhar sob as imagens.

O título do primeiro filme do ciclo, Capitalist Roaders, é uma referência à expressão de Mao Tsé-Tung, pela qual designava os membros do Partido Comunista Chinês que considerava de tendência reacionária – como Deng Xiaoping, que se tornaria, anos depois, o arquiteto do capitalismo chinês. No primeiro plano do filme, vemos o movimento de uma mão gigantesca imprimindo ameaçadoramente um carimbo no chão, sob o fundo de uma fotografia do Capitólio. As figuras de Trump e Xin Jinping aparecem logo em seguida e, mesmo que não voltem a aparecer, torna-se difícil não encontrar na sucessão ritmada de padrões decorativos que formam o grosso do primeiro filme – padrões de passaportes, documentos e correspondências – os murmúrios de uma trama política. O espectador encontra-se como um personagem de thriller paranoico, sendo lentamente tragado pela ordem que acredita descobrir em fragmentos de realidade aparentemente desconexos. O segundo filme abre com uma imagem do atirador responsável pela morte de Andre Karlov, embaixador da Rússia na Turquia, e introduz uma outra série de personagens – Putin, Hillary Clinton, Bernie Sanders – que se encontram em meio a uma iconografia política mais reconhecível: eleições, protestos, barricadas, atentados, desastres ambientais. A estilística do segundo filme, fundada por uma montagem estroboscópica e sonorizada pela música eletrônica turbulenta de David Rosenboon, nos conduz do estado de ligeira inquietude do filme anterior para uma sensação de perigo iminente.

Os filmes seguintes conservam a sugestão de uma crise em curso sem se ater às referências diretas ao contexto político internacional. O penúltimo filme do ciclo destaca-se em particular porque é o único que não se utiliza de técnicas de animação. Trata-se de um fragmento de um travelogue, em que vemos, da janela de um trem, um bairro de arranha-céus aparentemente recém-construído, localizado – inferimos pelo som ambiente – na China: a imagem que vemos é a de uma opulência distópica, cartão postal do futuro. O último filme, que recebe o mesmo título do ciclo inteiro, rompe com a trilha eletroacústica das partes anteriores, introduzindo a voz desolada de Scott Walker, com a insondável canção sdss1416+13b, do disco Bish Bosch. A sua letra críptica acrescenta uma outra camada de enigma a um filme que seria desde sempre suficientemente misterioso. Um mal-estar difuso ganha corpo agora em uma série de novos motivos, cujas relações parecem se fazer e se re-fazer o tempo inteiro sob as variações de intensidade da canção: uma mulher deitada languidamente no sofá, uma cicatriz atravessando o peito, uma pessoa tomando soro em um hospital, por uma mangueira que conecta as suas veias a um intrigante gráfico pizza pulsante.

O novo projeto de Klahr procura apresentar uma imagem do tempo presente. A ficção paranoica se revela como uma forma privilegiada não apenas porque é um mito central do nosso tempo, mas porque ela consegue dar uma forma narrativa à nossa posição de saber finito diante do capitalismo global, cuja complexidade tornou-se intratável, nos abandonando a um estado de desorientação continuado em que apenas as grandes conspirações parecem nos fornecer o apaziguamento cognitivo. A nossa posição no filme confunde-se, inclusive, com a do próprio Klahr, pois o artista ocupa-se, como nós, em descobrir, em sua mesa de colagem, relações possíveis entre retalhos do mundo sem aparente conexão. O espectador, ocupado em descobrir uma ordem na pletora de materiais heterogêneos que o filme manipula, entra em uma zona de experiência sombria, reminiscente das descidas infernais a que se submetem os protagonistas das ficções paranoicas, em que todo esforço de compreensão parece ter a estrutura do delírio. A experiência do espectador de Prazeres Circunstanciais, ávido pelo sentido do todo, é, incontornavelmente, a da apofenia: eu não terei sido o primeiro, nem o último, a encontrar, na aparição sistemática no filme de médicos estarrecidos, máscaras de proteção hospitalar, trajes de biossegurança, seringas, luvas de plástico, o prenúncio da atual pandemia global, que só se iniciaria meses depois do filme encontrar-se terminado.


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