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Às que veem sem mapas

O plano geral de uma casa que emana, da pequena janela lateral, uma luz vermelha, abre o longa de Isaac Donato, Açucena. Como se fossemos observadores ocultos na penumbra que acomete o mundo na virada do dia para noite, gravitando em direção à luz rosácea, consolida-se, já na primeira cena, o ambiente enigmático e lúdico que habitaremos a partir daí.

O filme se passa no tempo de preparação do aniversário de sete anos de Açucena – que se cumprem há mais de vinte anos – e todos os enlaces se dão em razão da arrumação da festa em vias de acontecer. A preparação da festa encontra uma dobra temporal por se tratar de um aniversário eterno, em que a liturgia se torna mais valiosa que sua própria finalidade. Açucena não ganha corpo em tela. Como se esquivasse da imagem, não concede sua forma às espectadoras. “Cadê Açucena?”, “quem é Açucena?”, “a Açucena já chegou?” são perguntas que norteiam o longa, e seu nome se repete como uma espécie de leitmotiv que se perde entre os cômodos da casa.

Em torno dessa existência incognoscível há um grupo de mulheres que sabem dos seus gostos, se mobilizando, ano após ano, para realizar a festa. Guiadas por Guiomar, senhora que parece melhor conhecer Açucena, essas mulheres nos são apresentadas através de filmagens enviesadas, oblíquas. Recortadas pelas paredes e portas da casa, as mulheres são de interesse de uma câmera fugidia em relação aos seus objetos, que, por sua vez, parecem bastante alheios às imagens captadas de si mesmos. Há um distanciamento imperscrutável entre nós, a câmera e aquele universo insólito que não acena a qualquer gesto autoexplicativo. A liturgia, tanto fílmica quanto diegética, não se revela para à espectadora não-iniciada, ao público branco-ocidental.

Entre portões sendo repintados, gnomos de jardim lavados e balões rosa-choque, há um elemento central que suga toda a atenção: as bonecas de Açucena. Logo no início do filme, ouvimos Guiomar falando ao telefone: “vocês já sabem que a criatura só gosta de boneca, então enche a casa de boneca”. Entre as gerações que habitam a casa, a eternidade espectral de Açucena é simbolizada pelas bonecas que atravessam os anos no perene estado da infância. Ainda que a protagonista e suas bonecas comunguem do laço da fixidez infantil, há, nesse duplo, fricções insolucionáveis: partindo de uma maneira de filma que assume as incógnitas daquele universo, os nexos entre o que há de material e o que de metafísico se tornam liames que pairam no suspense. A singeleza e honestidade daquelas personagens carregam mistérios fractais que escapam da nossa compreensão.

Os retratos de quem organiza a festa são adornados de mistérios. Adentramos sem apresentações nesse universo assombrado cor-de-rosa, que se gere, na incógnita profunda, sem necessidade de providenciar compreensão alguma. À espectadora não são oferecidos mapas, bulas ou manuais de instrução de como compreender esse cosmos, e permanecemos na suspensão até o fim. O entendimento foge, num átimo, quando se supõe costurar as evidências daquele espaço que, a primeira vista, soa comum, familiar, aprazível.

Apesar de localizados pelo plano inicial, a casa também sempre parece desconexa e suspeita. Os cômodos se rearranjam deliberadamente entre reflexos de micro-ondas e espelhos de armário. O que parece sólido e sombrio por fora é lúdico e maleável por dentro. Sem conseguirmos reconstruir o quebra-cabeças da moradia, os pedaços aludem a um mosaico disforme que, da própria indefinição, aquiescem ao encantamento cotidiano que ronda o filme. A tensão, agravada pelas músicas de suspense d’O Grivo, entranham o visionamento ao terror furta-cor.

O filme, portanto, realiza a fragmentação de dois elementos geralmente muito sólidos: o corpo e a casa. Em Açucena, esses dois elementos só podem ser apreendidos a partir dos retalhos que deles temos acesso. Ao mesmo tempo em que tentamos dar forma à aniversariante, buscamos fazer a cartografia espacial e genealógica do quê e de quem a rodeia. Açucena se talha, para nós, apenas a partir de quem alude a sua existência. A maneira com que Isaac Donato opta por filmar a família também carrega traços dessa fragmentação. Sem apresentações, as pessoas entram e saem de cena, são recortadas pela câmera e executam ações que muitas vezes não compreendemos – ações estas sempre motivadas pela festa de sete anos.

Açucena é um filme de matéria bruta, e que, mesmo assim, consegue ser invadido de encantamento. A atmosfera carregada acontece com sol a pino, sob paredes rosa-choque, pulverizando as imagens cruas com que lidamos. A festa, organizada em pedaços (ou aos pedaços), é tão enigmática quanto quem a produz, e nós somos reféns mesmerizados do mistério de toda sua confecção.


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