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Entre a revolta e a psicopatia

A começar pelo fim: há algo de inconclusivo no esfaqueamento levado à cabo pelo protagonista de Em Chamas. Não há uma preparação anterior que o anuncie, um barril de pólvora que desenhe uma insustentabilidade exaustiva das relações dramáticas ou sociais em jogo. Chegamos, com certa naturalidade, ao ponto limítrofe, onde a saída viável e moralmente aceitável, na cabeça do protagonista, é a eliminação solene do adversário, sem haver uma tensão irrevogável delineada na dramaturgia que não uma sutil desconfiança que ele possa ser o culpado de um crime. Não é a revolta assassina de Huppert e Bonnaire em A Cerimônia (Claude Chabrol, 1994), nem a incineração do patrão de Coisas Secretas (Jean-Claude Brisseau, 2002), onde esta sublevação é, de algum modo, produto da exposição de uma profunda ferida do capitalismo patriarcal. Quando a matriarca de Paranóia (Antônio Calmon, 1977) vinga-se da morte do filho disparando contra o marido, trata-se quase de uma revelação de classe (a culpa recai sobre a elite, e não nos criminosos); as bombas arremessadas contra Brasília em Branco Sai, Preto Fica (Adirley Queirós, 2014) são o evidente resultado de uma percepção de conjuntura, e como que uma resposta panorâmica. Por mais que Roberto Pires pareça condenar o atentado anarquista de A Grande Feira (Roberto Pires, 1961), preferindo a via de aproximação com o sindicalismo, há ali motivações reconhecíveis e o ato em si é visto como reação. Aqui, não há nada a ser revelado quando Jong-Su (Ah-in Yoo) apunhala Ben (Steven Yeun). Não é um gesto prosaico, evidentemente, mas ele também não resolve os parâmetros da equação. Talvez não tenha o poder de assertiva moral que este tipo de ação conclusiva tem na história do cinema.

O que nos resta é mesmo a dúvida: o que ele significa? Estaríamos diante de uma inconsciente luta de classes, onde a vítima do playboy milionário (que incendeia moças solitárias da cidade grande por hobby) é vingada por um jovem apaixonado, mas alheio à exata dimensão política desta vingança – e neste sentido, Em Chamas seria uma fábula, mais próxima aos mencionados anteriormente, onde o ódio ganha uma dimensão menos narcísica e mais progressista, em certa dose, revolucionária; e o “trabalhador a duras penas” que veio do interior matar o herdeiro rico que nunca precisou trabalhar, uma ação, senão plenamente justa do ponto de vista moral, ao menos catártica e compreensível? Ou, por outro lado, é o retrato da absoluta introspecção de uma juventude solitária (tão evidente naquele plano geral que circunscreve do exterior da janela Jong-Su a escrever em sua sala) e ressentida com o seu lugar no mundo, que mergulha em uma obsessão patológica, inventando as justificativas para destruir a imagem mais acabada daquilo do que se ressente – e então o filme seria um diagnóstico distanciado de um eminente protofascismo quase geracional? O mais curioso é que este gesto final de Jong-Su nos abre ambas as possibilidades – em realidade, como que constituindo uma estranha soma das duas coisas, emaranhada uma na outra – e, por isto, Em Chamas concede-nos um dos mais singulares diagnósticos sobre a raiva como um estado de espírito de uma certa juventude atual – mais do que ao nome do gato de Hae-Mi (Jun Jong-Seo) ou às estufas virtualmente queimadas, o título faz real menção a este sentimento difuso.

Esta quadratura em aberto presente na forma como encaramos a situação final é possível porque Em Chamas é um filme absolutamente lacunar. Tudo se constrói por uma matemática de dados incompletos que se dispõe ao espectador, mas o longa-metragem se recusa a concatena-los, emulando o Haruki Murakami que adapta (mas também a literatura de Paul Auster ou Patricia Highsmith). É algo como que espelhado na investigação solitária, obcecada, quase injustificada de Jong-Su, que move-se por terreno instável, fornece-nos uma pista, mas nada para acompanhá-la. Ben diz que tem como hobby queimar estufas na parte rural da Coréia do Sul. O protagonista vigia todas as estufas da região, e nenhuma delas é queimada. Mais adiante, Ben sugerirá que Hae-Mi desapareceu como que fumaça evaporada pelo vento, e aparecerá com uma nova amante. A estufa é uma metáfora para os corpos femininos que incinera? O gato de Hae-Mi talvez seja o gato que desaparece na residência de Ben: responde pelo mesmo nome, mas como ter certeza se Jong-Su jamais o viu? O paradoxo, espécie de jogo de esconde-esconde entre o que é dito e o que é mostrado, através do qual Em Chamas constrói sua trama esburacada, é mais amplamente um modo de investigação do psiquê de seu protagonista, aquele por quem o filme parece mais se interessar. O estilo lacunar, neste sentido, simula a forma como este percebe as coisas.

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Em entrevista à Film Comment, Lee Chang-Dong comenta que, antes de realizar o longa-metragem, havia escrito três projetos sobre “o ódio e o desolamento dos jovens hoje em dia, seu sentimento de que há algo de errado com o mundo que eles não percebem ou entendem muito bem”. Jong-Su é o protótipo de uma juventude que despencou em um universo cujos sentidos não consegue capturar: o real e virtual se mesclam, tal qual a pantomima de descascar uma laranja – basta desejar (o desejo como filtro dos sentidos) para esquecer que o que não é real não existe. Os dados da percepção lhe surgem, algo como que vagamente, mas sem as arestas que permitam uma interpretação – ele nota o seu “golpe de sorte” com a menina do sorteio (mas não o esforço publicitário e apelativo envolvido no prêmio); entende que a perdeu para um bon vivant mais rico e menos trabalhador (mas não extrai as consequências de classe ou entende o quão esta diferença está enraizada nos mecanismos do próprio capital); a proximidade com a Coréia do Norte e o governo Trump fazem parte do cenário, mas o que fazer com todas estas informações? O mistério central da trama (o desaparecimento), no fim das contas, não é mais que um mcguffin para que Jong-Su extravase o seu ódio naïf (pois ele retraça, na solidão de seu quarto – e dada a sua vocação de romancista – o que ele quer que suas descobertas signifiquem sem precisar que a realidade as comprove – afim de eleger o seu vilão).

Extravasar o ódio, produto da incompreensão e de sensações vagas que as coisas estão erradas e que é preciso transformá-las. Eis o grandíssimo feito do longa-metragem de Lee Chang-Dong: demonstrar que esta juventude que arde “em chamas” tem um ódio que é uma química vaga entre o senso de justiça contra o opressor e uma psicopatia ressentida e patológica mais elementar contra um adversário qualquer. Que talvez do motor desta incapacidade de explicar o que está errado, mas saber que há algo de errado ali, possa nascer tanto a revolta justa quanto o protofascismo; ambos, quase que lado a lado. Existe um denominador comum entre as duas coisas, no mundo de hoje, que espreita toda força progressista que explode sem direções, sempre à espera de novas invenções mitológicas para direcionarem os seus esforços. Lee Chang-Dong parece querer nos dizer que o que é mais definitivamente marcante no espírito jovem atual não é o seu progressismo ou seu conservadorismo, não é sua capacidade de radicalizar seus gestos para fazer justiça, e nem tampouco um ressentimento mais elementar, tornado psicopatia pura, mas a sua raiva desgovernada, um furor que se atém a um objeto muito mais que a uma conjuntura, e que pode explodir, à qualquer momento, em qualquer direção.

Oscilando entre momentos brilhantes de dramaturgia com eventuais cenas de excessiva literalidade, achados de construção narrativa potentes e outros por vezes demais esquemáticos (principalmente na metade final), Em Chamas acaba por ser um dos grandes filmes do ano, pela sapiência e forma como encara um grande vespeiro dos últimos anos sobre o qual ainda temos muita dificuldade de falar sobre. Indiretamente, é um dos mais interessantes filmes sobre o descolamento entre a tese, ou conceito, e a existência mundana, quando já não se faz necessário que as ideias passem pelo crivo da realidade. Se não existem mais formas históricas, genealógicas ou arqueológicas de entendimento que consigam explicar a nossa experiência atual como um todo; se os objetos estão aí como rastros ou rizomas, prontos para servirem de suporte a qualquer narrativa inventada subjetivamente, resta-nos o marasmo das interpretações individuais e solitárias que geram um mal-estar civilizatório enorme. Ou talvez elas sejam apenas aparentemente individuais, porque o que governa estas formas narrativas que prescindem do real é o desejo. E o desejo, Em Chamas parece nos dizer, o capitalismo tardio quer transformar em pulsão de morte.


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