Revolta, decoro e terrorismo: a anarquia das imagens

outubro 1, 2013 em Cinema brasileiro, Em Pauta, Pablo Gonçalo

zerodeconduta

Zero de Conduite (1933), Jean Vigo

por Pablo Gonçalo

-¿Quiere usted la salvación de México?
¿Quiere que Cristo sea nuestro rey?
-No”

Malcolm Lowry na epígrafe de Os Detetives Selvagens, de Roberto Bolaño.

1.

À merda!”. Sim, parece e é a frase de uma criança revoltada. Uma criança que lança ao professor, aos bedéis, aos colegas e a todo o colégio os insultos, os impropérios e os mais chulos palavrões que há anos aglutinam-se na sua boca. À merda: uma expressão síntese, dionisíaca e anti-arquiteônica. Estamos diante de uma antológica sequência de Zero de Conduite (1933), de Jean Vigo. Um momento de autonomia no qual, infantilmente, ridiculariza-se o estranho mundo dos adultos. À revolta segue-se o júbilo, segundos de libertação: penas de travesseiros voam pelo dormitório, flutuam, sugerem leveza, e desprendem grilhões de um cotidiano insosso, sem graça, de uma vida que paira incólume, regrada demais, sem versos livres. Como poucas vezes ocorreu na história do cinema, Jean Vigo consegue aglutinar um ímpeto de veemente negação à sua potência poética.

Os personagens de Jean Vigo não usam máscaras, nada apedrejam nem arruinam vidraças transparentes de grandes corporações. No entanto, essas crianças rebeldes carregam consigo alguns dos traços anarquistas que perambulavam no início do século XX, na França, quando Almereyda, o pai do ainda menino Jean Vigo, estampava em letras garrafais a palavra “MERDE” na manchete do seu jornal. À merda – e pinta-se um dos “a” da anarquia. Como poucos, o jovem e talentoso cineasta francês soube coligar esse átomo de revolta com os vórtices do desconforto e da provocação, caros à trajetória marginal delineada por artistas anarquistas. Embora essa história esteja razoavelmente delineada em outras linguagens (onde encontramos escritores como Tolstói, músicos como John Cage, ou artistas como Duchamp), quando no cinema, os desvios anárquicos parecem mais soltos ou desenlaçados. É como se a violência das e nas imagens carregassem em si um tabu eivado pelo fardo de retratar a realidade, ou pelos anseios de uma imagem boa, bela e pura.

Shit, Scheiss, merde, mierda, σκατά, , 狗屁, غائط, – é o que esses ecos nos dizem. Sobretudo em Zero de Conduite, quando redescobrimos um lampejo marcado tão somente pela recusa, por um dissenso que não visa produzir nada além do que o próprio dissenso. A inquietação da revolta dos meninos de Vigo ainda vigora, imageticamente, por não propor nada, por estar nua de qualquer programa, de qualquer pauta. Trata-se de uma violência não dialética, que desdenha os jogos da ágora e, muitas vezes, prefere ignorar o valor da cidade como espaço de possibilidades políticas e de negociação. A força estética da anarquia repousa na sua recusa de fazer o trajeto de 360 graus caro à revolução. Não há programa, não há partido (ou uma semiótica política) e tampouco companherismo que possa, futuramente, resguardar-se entre segredos, paredes e conchavos de burocratas. Mais do que um caminho definido, ou do desejo de morar numa ilha ideal, há apenas o instante da revolta como uma força política saudavelmente amadora. Violento, insuportável, arruinador, esse instante dionisíaco não se sustenta em si mesmo. Aquecido pelos dínamos da dinamite, ele se auto-destrói enquanto detona tudo o que estiver à sua volta. Haja saco, haja merda. Endiabrados, os meninos de Vigo nos conduzem a escavarmos as potências dessas imagens anárquicas.

2.

Nesse longo travelling por trilhos revoltos, encontraríamos o rosto de Luis Buñuel. Há, na obra desse cineasta espanhol, interessantes modulações entre sua dramaturgia e seu riso amoral. Num primeiro ímpeto, costuma-se voltar à sua produção no cinema mudo, quando, juntamente com Salvador Dali, compunha desvarios surrealistas e dadaístas para provocar a burguesia parisiense. Síntese, o gesto de Buñuel e Dali traduz-se no corte ao olho, numa imagem-lâmina, insuportável de ser vista.

Los Olvidados, Luís Buñuel

Los Olvidados (1950), Luís Buñuel

No entanto, há mais. O exílio de Buñuel nos mostra como o cineasta soube palpitar sua ironia no seio de uma das maiores indústrias do melodrama da metade do século XX, a mexicana. Em Los Olvidados (1950), a violência não é restrita à condição da miséria. Pelo contrário, já que retrata-se a pobreza como uma força por vida brutal e lancinante. Ao evitar as facilidades e mediocridades da compaixão, Buñuel cutuca com vara curta a violência dos seus personagens de modo que ela ecloda dramaticamente. É esse mesmo ímpeto que reverbera no padre Nazarin (1959), que só procura fazer o bem, e Viridiana (1961), cuja perversão faz com que a personagem oscile entre opostos. No entanto, é em O Anjo Exterminador (1962) que descobrimos uma das principais obsessões de Buñuel: o decoro. Seja nas suas pulsões ou nos seus escapes – lúdicos, vitais – os personagens do cineasta espanhol se deliciam em criar e contornar regras e códigos que guiam suas fantasias e obsessões.

Essa predileção pelo decoro acaba por revelar Buñel como um mestre dos códigos do cinema clássico, um diretor que soube como poucos subverter justamente o teor catártico e melodramático do cinema da transparência. Como nos personagens que não conseguem sair de uma festa ou quando Jesus Cristo, na Via Lactea (1969), solta palavrões para um carro que rejeita dar-lhe carona. Seja em seus personagens, seja entre eles, não há compaixão alguma. Pelo contrário. Por isso, o riso de Buñuel torna-se nervoso; instala e compartilha um niilismo que ultrapassa qualquer intenção de revelar ou explicar algo – é um niilismo latente que não figura transcendências.

Esse gesto de negar a compaixão e de embrenhar-se pelo decoro talvez também seja uma das tônicas da obra de João César Monteiro. Ao contrário do grito vibrante de “Merde!” dos meninos de Jean Vigo, aqui encontramos a fala calma, às vezes mansa, mas intensamente sacana e perversa de um personagem como João de Deus. Além da sua obsessão por virgens – e por todo o decoro que envolve as núpcias –, João de Deus também desdenha a família, a amizade, e todos os laços fraternos que embalariam as cantigas de coroinhas. Em Vai e Vem (2003), ele é um velho solitário, ranzinza, que procura um prazer perverso em momentos banais do cotidiano. Coleciona taras que são regadas por um decoro católico; pequenos atos amorais, mas cheios de prazeres sexuais e sensualidades, num erotismo escancaradamente machista como poucas vezes foi visto. É como se, pelos códigos do catolicismo – e do seu modo de ver o mundo –, João César Monteiro fosse redescobrindo uma força pagã, uma forma de zombar, violenta e sutilmente, dos costumes e códigos lisboetas. Assim, o riso de João de Deus ri de todos; de si, do seu filho, dos seus amigos, do seu próprio infortúnio, numa performance eivada por uma autoridicularização que elegantemente também zomba do decoro que é a projeção do espectador no protagonista. Um escárnio que lega nada além de uma terra arrasada. Luís Buñuel e Joao César Monteiro parecem nos sussurrar que esses eletrochoques às vezes são mais potentes quando mascarados pelo decoro que guia o dia a dia e a convivência social, pelas instituições e a normalidade (in)sensata que nos rodeia.

Vai e Vem (2003), João César Monteiro

Vai e Vem (2003), João César Monteiro

3.

A sequência final de Zabriskie Point (1970), de Michelangelo Antonioni, ilustra bem a força sensível de muitos movimentos sociais e culturais dos anos sessenta e setenta. O que vemos são objetos-dejetos num constante estado de explosão. Captados em câmera lenta, esses objetos industriais surgem no instante em que estão se desintegrando: são fiapos de ferro, pedaços ao ar, numa destruição que não é bela, mas que nos sugere uma estranha catarse, um instante de sublimação do próprio entendimento. Antonioni acaba por nos conduzir ao conceito de Sublime, tal como formulado por Kant, lembrando, sempre, da distância entre as noções de sublime e a de belo. Seja pelo maravilhamento ou pelo asco que desperta, essa sequência final tem um pouco daquele conceito justamente por nos colocar frente a algo incompreensível, incomensurável, inclassificável, numa assombrosa sensação de infinito que é imposta aos nossos olhos.

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Zabriskie Point (1970), Michelangelo Antonioni

Não por acaso, os movimentos terroristas brotaram com força no mesmo contexto histórico retratado por Antonioni. Se o terrorismo é politicamente lido como um ato insano de radicalismo, no campo da estética ele talvez possa ser compreendido como a intenção de explodir as imagens cotidianas – já sem graça, já sem potência – por meio de imagens inflamáveis. Por mais estranho que pareça, há algo de sublime nos aviões, carros e homens-bomba cujas chamas são captadas e impregnadas por fotogramas e píxels – e nessa linha a síntese histórica e estética seria o próprio dispositivo engatilhado em 11 de setembro de 2001. Mesmo a guerra, no seu elan catártico e no seu jogo masculino (como nos lembra Susan Sontag), acaba por guiar seus espectadores, ativos ou passivos, a uma lida frontal com as próprias engenharias da sensação de sublime. Para além de uma força de auto-destruição, de um grito irracional ou dos julgamentos superficiais da grande mídia, os atos e gestos do terrorismo guardam consigo uma inquietação sensível que passa pelo sublime.

Filmes tão diversos como A Batalha do Chile (1975; 1977; 1979), de Patrício Guzmann, e Videogramas de uma Revolução (1992), de Harun Farocki e Andrei Ujica, nos revelam como a força desses instantes de revolta também passam por uma forma de lidar com o regime das imagens de cada época. No filme de Guzmann, a morte de um dos cinegrafistas do filme – ocorrida e filmada durante uma das manifestações – nos leva a perceber como a força de abafar uma revolta também passa pela interdição do ato de mostrar, pela interrupção e negação de fazer ver, de argumentar e interagir por meio da imagem. O filme de Farocki, por outro lado, documenta a ocupação de televisão pública da Romênia, quando da destituição do regime soviético e do seu ditador. Há, nas cenas daquela ocupação, um anseio caótico de buscar a autonomia e a gestação das próprias imagens. Não é por acaso que a televisão, naqueles dias, passa vários instantes fora do ar, sem imagens, entre seus pontilhados, brancos, cinzas, seus chamuscos que nada mostram, num gesto de interrupção do fluxo, que traz em si as evidências de uma sublimação de um cotidiano, e de um regime de imagens, cuja gota d’água já fez o copo transbordar.

Quando nas telas, a anarquia tem algo de demoníaco, algo de enxofre, de um velho e desagradável diabo. Por isso, talvez, em alguns instantes, esses mesmos ímpetos anárquicos acabem por mandar à merda o próprio decoro da democracia, traçando um tênue e perigoso limite com as pulsões fascistas, as quais diferenciam-se justamente por propor um programa de extrema direita, uma temática de ações que buscam uma unificação e padronizacão ideológica que vão além da fagulha da revolta. Trata-se de um choque de valores, no qual as pedras nas vidraças são, por alguns segundos, uma vontade de transvalorizar valores gastos. Essas imagens anárquicas não são apenas voláteis e inflamáveis, mas elas sublimam o próprio decoro da observação das imagens – e não levam a uma ação concreta ou a uma atuação racional. Por isso, tais imagens, sempre múltiplas e únicas, esquivam-se de um conceito ou de uma essência. Se a anarquia é uma verve que busca a autonomia radical e violenta do indivíduo, quando nas telas ela ensaia reavivar esses mesmos valores. Seja pela revolta, pela quebra de decoros ou por outros explosivos, o encontro de imagens anárquicas passa pela reivindicação de uma autonomia.

4.

É a imagem de Helena Ignez fumando e dirigindo um cadilac conversível que nos sequestra para essa mesma trilha anárquica na história do cinema brasileiro. Estamos diante da Ângela Carne e Osso, em A mulher de Todos (1969), de Rogério Sganzerla, onde, desde o título do filme, temos um elogio não apenas à autonomia do desejo feminino mas ao escárnio constante com os códigos do mundo masculino, que é retratado como se fosse fraco ao invés de forte. Irascível, imprevisível, dominadora e deliciosamente insana, Ângela Carne e Osso carrega consigo a autonomia das Amazonas e a alucinação coletiva das bacantes, encarnando com brio o elogio do matriarcado como forma de revolta aos valores patriarcais da história brasileira, tal como compreendidos por Oswald de Andrade num dos seus ensaios.

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A Mulher de Todos (1969), Rogério Sganzerla

A fúria de Ângela Carne e Osso é literalmente antropofágica. Por isso ela “adora um boçal”, como diz numa das suas frases sínteses, num bordão repetido dezenas de vezes ao longo do filme. Ela não quer apenas denunciar, criticar e sublimar essa boçalidade – como implementado pela racionalidade masculina – mas prefere trepar com ela, comê-la, fudê-la, chupá-la, engoli-la, degluti-la, assassiná-la para depois vomitar seus restos ao chão, como dejetos em putrefação. Suas armas são seus dentes, suas contorções castradoras.

Sempre semi-nua, sempre de mini-saias, num erotismo autônomo, Angêla Carne e Osso transforma-se numa das primeiras figuras femininas que faz um elogio à força das vadias. Ela é uma anti-musa e a boçalidade que deglute é a boçalidade que entorpece o cotidiano tão regrado e militarizado da São Paulo daqueles anos. Angêla Carne e Osso sintetiza uma boa parte das imagens anárquicas que foram tecidas por Rogério Sganzerla e por outros diretores do cinema marginal. Numa geração que hospedava uma agonia contra a institucionalização do nacionalismo e que buscava, pelo escárnio, uma forma direta de viver o júbilo de um cinema sem projeto, um cinema impulsionado pela revolta. A ira dos seus personagens projeta nas telas o amargo vandalismo das suas imagens e inquietações.   

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