É provável que ninguém nos anos 1910 tenha demonstrado tanta obsessão por encontrar uma fórmula de sucesso para o cinema alemão quanto o produtor Eric Pommer. Mergulhando na tradição dos films d’art italianos e dos melodramas nórdicos que haviam elevado o status do cinema ao das altas artes, Pommer acabaria por descobrir na feérie dos contos góticos mais populares da época a ‘fagulha germânica’ que faltava para vender bem lá fora os seus filmes. O resultado acabado desta investigação – aquele que fez o cinema alemão existir para o mundo – foi o seminal O Gabinete do Dr. Caligari (1920); mas antes dele, Pommer já havia incursionado em algumas dezenas de filmes, experimentando alguns caminhos possíveis para o que almejava. Um ano antes, sua DECLA lançara nas salas de cinema um filme de alto investimento que poderia muito bem ter tido o mesmo destino que o do conseguinte. Entregou o roteiro nas mãos de um jovem em quem apostava muito (Fritz Lang), e que acabava de ter tido uma estreia na direção considerada aquém das expectativas com As Aranhas (1919), para adaptar um conto de Edgar Allan Poe. Desta vez, a direção ficaria ao encargo de um mais experiente Otto Rippert, que havia feito o próprio nome com o seriado Homúnculos (1916), expressionismo avant-la-lettre, o mais popular filme do país naquela década.
Este épico decadentista, intitulado A Peste em Florença, foi talvez, no mundo, a única incursão ficcional que respondia, ainda que por tabela, ao acontecimento da gripe de 1918, realizada imediatamente em seguida a ela. É um filme do gênero histórico. Não há menção direta à epidemia da época, mas uma indireta, feita através de um retrato da chegada da peste bubônica à Florença do século XIV que lhe serve como paralelo. Embora conste no título, a peste nem mesmo é o elemento central. Surge na reta final do longa-metragem, prenunciada por uma cartela que explica: “as pedras começam a falar / a natureza se revolta contra a vida amorosa (Liebesleben) que é contrária à natureza”. De um close-up das pedras, passamos à imagem de uma poça de lama, brilhante como um riacho, onde surge, em fusão, a figura de uma mulher com maquiagem escura, pesada, símbolo material da própria doença. Esta mesma mulher irá vagar pelas ruas e adentrar os palácios de Florença e, tocando um violino, levar à cabo o tal castigo divino e dizimar a população da cidade. Sua mera aparição é o suficiente para que os moradores lancem-se ao chão em agonia, como se, de repente, nos víssemos diante da visão do inferno. Esta aparição pode nos contar algumas coisas.
Primeiro, a transposição da imagem em um corpo físico, a fusão da violência da natureza com a sua representação humana. A mulher que surge é menos pesadelo subjetivo à kammerspiel e mais algo que obedece ao modo de figuração típico da sensibilidade simbolista-decadentista em voga na Europa da década mesma que o cinema surgiu, e do qual alguns dos melhores cineastas dos anos 1910 (Ievgueni Bauer, Victor Sjöström) souberam se aproveitar e extrair as maiores consequências e possibilidades. Ou seja, é símbolo transfigurado, carnalidade que, sim, significa uma forma de ascese metafísica – uma outra coisa que não o objeto mesmo -, mas não é uma alucinação espectral: é presença corpórea que habita a própria imagem, vaga por ela, pertence ao mundo dela tanto quanto os homens de Florença – só que o afeta misteriosamente. Do mesmo modo como o apocalipse de O Fim do Mundo (August Blom, 1916) precisa se ‘fazer ver’ através de um conjunto de efeitos especiais decorativistas no interior do plano, e não por trucagens de montagem, a doença incorporada é um ser estilizado que vaga distribuindo a morte, empilhando corpos, cujas atrocidades são também apelo de excesso visual, sinuosidade e volume nos tableaux cuidadosos de Rippert; sempre em plano, na evidência da imagem. O referencial maior aqui talvez seja Pastrone, Guazzoni e o filme histórico-espetacular da primeira Era de Ouro Italiana, embebidos do D’annunzianismo tardio, influência do poeta-laureado da Itália pós-unificação. Também eles eram obcecados pelos planos de geometria neoclássica, pelo jogo de camadas visuais entre proscênio e fundo, a direção e organização de multidões em cena, o gestual de intenção pictórica, o luxuoso detalhismo do décor; e, principalmente, pelas narrativas sobre o fim de civilizações, a decaída de impérios seduzidos pelo excesso de beleza – quando todo este cuidado e rigor do plano é penetrado por chamas, fumaças e elementos fakeados, mas estonteantes, que representam a sua auto-destituição. Neste sentido, A Peste em Florença não é menos que uma síntese bem acabada do que foram muitos dos desejos artísticos do momento imediatamente anterior, mas, através do seu flerte com a feérie e os temas fáusticos, em alguma medida, é também um vislumbre do momento seguinte.
Em segundo lugar, a própria demora para que a peste do título dê as caras é significativa, pois a doença aqui é vista mais como efeito do que como causa. Resultado. Penitência. É curioso que, como Fim dos Tempos (M. Night Shyamalan, 2008) exploraria muito mais adiante, a epidemia é revolta da natureza contra os homens. Talvez apenas um século depois o cinema procuraria recobrar sua vocação animista. Lá atrás, no apogeu da modernidade industrial e da crença na fábrica como espaço-signo topológico tanto do capitalismo quanto da possibilidade da revolução operária, a verdade é que são “avis-raras” obras que atribuíram à natureza qualquer valor autônomo durante muito, muito tempo (Aleksandr Dovjenko, Mário Peixoto). Os surrealistas consideravam Dulac ou Epstein reacionários porque a vocação animista do “cinema puro” se interessava pela observação detida do germinar do trigo ou do farfalhar das árvores, e não necessariamente pelo girar das rodas do trem, ou pela sinuosidade das formas dos prédios. Era uma herança da representação simbolista, onde, mesmo assim, a força da natureza é, em alguma medida, submetida ao crivo do humano. Aqui, sua revolta é produto dos descaminhos civilizatórios de Florença, seu “secularismo” e queda da moralidade cristã do qual a trama, anteriormente, estava a tratar: o domínio dos rigorosos velhos padres deposto quando a cortesã Julia chega à cidade e promove festas populares. A libertinagem como excesso e um certo proselitismo contrarrevolucionário, em tom quase reacionário no roteiro de Lang, embora também o clero não seja objeto de elogio; não há valores aceitáveis na mesa ou pontos de identificação possíveis. Carnalidade e morte se misturam quase ritualisticamente, na investigação formal de um mundo que definha e que encontra na epidemia o seu golpe final. O carnaval de Bakhtin, um pouco mais popular, é certo, era morte e nascimento, putrefação e semente, como aqui, a natureza é rito ou ciclo. O filho matou o pai. O santo eremita matou o filho. Mas não sem antes derrubar a cruz à qual dedicou sua vida. Nada restou a Florença se não deixar de existir, perecer para que outra coisa, inumana, possa vir a surgir em seu lugar. Outra sociedade. Outro mundo. Nada ao príncipe Lorenzo senão abrir as portas para o próprio túmulo e deixar que a Peste cumpra o seu curso, sendo este o seu único gesto de redenção possível.
Ainda sobre a epidemia, não deixa de ser notável como o longa-metragem localiza seu escopo de ação e alastramento: não há mundialização dela. Suas mortes não significam extinção em escala humanitária. Há um efeito bem mapeado sobre uma única cidade (mesmo que Florença – berço do moderno -, aqui, represente toda uma transição de formas civilizatórias e organizações sociais). É possível que isto se justifique no fato de que, salvo raras exceções (Blom, Abel Gance), até onde se sabe, o fim do mundo, pensado de maneira global, só tenha passado a ser uma questão cinematográfica real a partir dos anos 1960. Provavelmente foi no momento mais duro da Guerra Fria que passou-se a ter a consciência de que um novo confronto significava extinção. Até lá, epidemia era sinônimo de um acontecimento local, possível de ser delimitado e contido, muitas vezes tornado objeto de redenção individual dos protagonistas em filmes tão diferentes entre si, como Skeleton on Horseback (Hugo Haas, 1937), Arrowsmith (John Ford, 1931) ou Jezebel (William Wyler, 1938). No ciclo de “noirs epidêmicos”, em títulos como Pânico nas Ruas (Elia Kazan, 1950), The Killer That Stalked New York (Earl McEvoy, 1950) ou Cidade do Medo (Irving Lerner, 1959), havia, inclusive, a quimérica crença de que, para vencer a epidemia, bastava simplesmente deter o primeiro portador. Um único sujeito era a causa do mal. Impedi-lo era salvar sua cidade.
Não sei se é possível fazer de A Peste em Florença um exemplar de nada. A verdade é que houve poucos filmes que fizeram referência à gripe de 1918 (até onde se sabe; muita coisa se perdeu), principalmente quando comparado à guerra nacionalista-europeia que a antecedeu, e matou menos gente; sobre esta, houve inúmeras elegias e libelos patrióticos que deixaram bem clara a insistência do ocidente na lição não-aprendida. Talvez a ausência seja o dado mais significativo. Mas, se acreditarmos minimamente na possibilidade de que obras sintetizam formas de visibilidade e do dar a ver, ela não se torna, nem por isto, menos reveladora. Por dialogismo, evidenciar a diferença entre como um mesmo fenômeno (ou tipo de fenômeno) foi encarado em outros momentos (ou em relação a outros fenômenos do mesmo momento), pode nos render, se não verdades, suposições. Se confrontamos isso às formas estruturais, sociais e de dominação atuantes, é possível que o singular possa ganhar um sentido um pouco mais coletivo. Não como exemplar, mas como sintoma.
Há, é certo, as mudanças econômicas, a alternância de poder que a epidemia causou nos EUA e a reconfiguração dos sistemas de distribuição e exibição, como bem descrito no artigo de Richard Koszarski intitulado “Flu Season: Movie Picture World reports on pandemia influenza, 1918-19″. Mas há a forma como os artistas e os filmes a sentiram e a incorporaram, ainda que pouco a tenham mencionado frontalmente – em Pai Pernilongo (Marshall Neilan, 1919), Mary Pickford espirra no saguão de uma estação de trem, e todos saem correndo desesperados; no primeiro episódio de Histórias Extraordinárias (Richard Oswald, 1919), outra adaptação alemã de Poe, a pandemia é o plot twist final. Trata-se, sobretudo, de uma questão de escopo. Há um hábito de se esperar que obras artísticas, porque feitas pelos homens, comentem necessariamente também aquilo que os homens fizeram; e não aquilo que temos mais dificuldades de explicar, mas que é sentido (a natureza, por exemplo). Uma história do efeito das doenças na cultura, ao contrário, poderia ajudar a iluminar outros aspectos disso que, desde a publicação de Lotte Eisner, chamamos de expressionismo. O aprofundamento nos contos góticos não seria somente uma afirmação de um modo de “germanismo”. Nem seria à Grande Guerra e à ascensão do populismo na década seguinte que os auteurenfilms (gênero minoritário, vale a menção) do cinema na República de Weimar reagiriam/preconizariam, como pretendia Siegfried Kracauer. Não estou falando de narrativas metaforizando o poder ideológico da imagem (Thomas Elsaesser) ou sobre hipnose e experiência de possessão, que teriam sido partes da paisagem e saber humano da virada do século XX (Stefan Andriopoulos) – ainda que sem rejeitar nenhuma destas hipóteses -, mas talvez sobre algo um pouco mais “razo” que essas duas coisas: como a humanidade sentiu e entendeu a morte de um quinto dos seus. Assim, a obra do maior gênio do cinema silencioso, F.W. Murnau, poderia ser compreendida à luz dos sentimentos causados por este mal. Seu Nosferatu (1922) seria menos Drácula e mais o portador da Peste. A remissão ao Fausto (1926) de Goethe seria reação à finitude da doença, que é a primeira aparição do mal no longa-metragem. E até mesmo o seu Tartufo (1925) seria menos o de Molière e mais o do Decamerão. O mal ilustrado na década de 1920, assim, seria outro, e A Peste em Florença, um retrato desta transição.
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