Juliana Costa Manigini Colaboração Especial 2021 leve

Cecilia Mangini: nada é acidente

Uma senhora com a idade impossível de contar, o corpo em direção à terra. Ela brinca com seu neto, reza no altar, conversa com os animais enquanto os alimenta e participa das atividades familiares em uma cidade rural italiana. Esse é o registro documental de Maria e os Dias (Maria e i giorni, Cecilia Mangini, 1960), expandido pela atmosfera que se impõe: uma luz dramática contorna os espaços da casa pelos quais Maria se movimenta, um plano em plongée no pátio interno, um mistério em torno do seu rosto. Sobretudo a trilha sonora, que comenta cada prisma da personagem: a criança, a louca, a bruxa. Um olhar sobre Maria e ela encarna todos os excluídos do mundo, as mulheres perseguidas, a relação ancestral com a terra, uma cultura prestes a desaparecer. “Continuo aqui, continuo útil”, diz ela.

Assim é o olhar narrativo de Cecilia Mangini, cronista política e social do seu tempo, que filmou de forma singular o sul da Itália nas décadas posteriores à Liberação. Sua obra foi difundida no Brasil em todo o mundo, após a sua morte em janeiro de 2021, pela revista feminista britânica Another Gaze. A mostra online de estreia da plataforma Another Screen, streaming da revista, reuniu oito filmes realizados entre 1960 e 1974, que foram recentemente restaurados e exibidos em alguns festivais mundo no último ano.

Fotógrafa de formação e marxista de coração, Mangini encontrou no cinema um olhar inventivo e experimental para narrar o abandono da população nas décadas posteriores ao pós-guerra, deixada à mercê da aceleração de um capitalismo predatório. Considerada a primeira documentarista mulher da Itália, o documental e o ficcional como categorias parecem não interessar à cineasta. Antes, o que está em jogo é a imersão na atmosfera dos contextos sociais filmados e o discurso político sobre as realidades narradas pelo seu olhar.

Pertencente à geração posterior ao neorrealismo italiano, o humanismo revolucionário de Mangini é ainda mais político do que dos seus predecessores. Se o movimento cinematográfico do qual a cineasta é em parte herdeira, através de seus modos de produção, faz emergir da cena uma realidade furtiva capturada pela objetiva, Mangini experimenta em seus filmes uma construção da realidade social e política através de um olhar feito de imagens, textos e sons. Enquanto Rossellini e amigos deflagram uma sociologia do pós-guerra no coração de suas ficções, Mangini ficcionaliza essa realidade no terreno do documentário.

Para dar corpo a esse olhar narrativo, Mangini explora livremente a linguagem cinematográfica de que dispõe: trilha sonora, voz over, entrevistas, montagem dialética, fotografia dramática, variedade de enquadramentos. Seu cinema é um conjunto de experimentos no campo da narrativa documental. É como se, para cada tema, ela encontrasse o seu modo pessoal e preciso de olhar. E a cineasta sabe exatamente o que quer olhar e o que quer que olhemos. Ela nos mostra, sublinha, pega pela mão e aponta. Se Hitchcock fosse documentarista…

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Comunista indisfarçada, Mangini convida Brecht para abrir seu ensaio feminista Ser Mulher (Essere Donne, 1965). “I’ll tell you we must die”, verso de “Alabama Song”, embala as primeiras imagens: mulheres em fotografias coloridas de revistas de moda. A imagem da bomba atômica encerra essa sequência inicial, mas essas fotografias ecoarão na nossa mente ao longo de todo o filme, construindo uma espécie de montagem dialética imaginária com todas as outras que seguem. Imagens da indústria da moda e imagens da indústria têxtil: a mulher é produto, mão de obra e consumidora de uma cadeia fabril febril da qual não se beneficia.

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Se em filmes como Maria e os Dias e Stendali: Eles Ainda Jogam (Stendali: suonano ancora, 1960) a imersão do espectador nas realidades que as obras apresentam é essencial para preservar a memória de rituais e práticas em vias de desaparecimento pela invasão das fábricas na paisagem rural do sul da Itália, para olhar a mulher e o mundo do trabalho Mangini convoca a montagem soviética e o distanciamento crítico brechtiano. A aceleração do capitalismo industrial – por meio de uma montagem vertiginosa, mas milimetricamente calculada – impõe o ritmo da narrativa ensaística que em surpreendentes 29 minutos percorre as condições das mulheres operárias, as relações de gênero na classe média e na classe trabalhadora, o monopólio da indústria nas relações sociais, o trabalho doméstico, o trabalho rural, a maternidade compulsória, a migração italiana sul-norte, e, ufa!, mais tantos temas políticos concernentes às mulheres e ao trabalho quanto possamos listar. Não existe o tempo de parar: nem na vida, nem no filme.

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Ao lado da cidade existe outra cidade: a fábrica que literalmente incendeia a paisagem devora a vida comunitária e determina o destino da população. Além de Ser Mulher, ao menos mais dois filmes do recorte apresentado pela plataforma Another Screen comentam as deformações causadas pela industrialização acelerada do sul da Itália nos anos 1950 e 1960: Brindisi 65 (1966) e Tommaso (1965). Não por acaso, ambos de montagem dinâmica e dialética. O mais sarcástico do recorte, Brindisi 65 faz um jogo discursivo com um teatro de fantoches e a burguesia industrial local. Rostos que Mangini filma com grande angular em contra-plongée, no melhor estilo expressionista de apresentar porcos-capitalistas, são intercalados com máscaras de papel machê de títeres que encenam uma comédia sobre a luta de classes, chamando Brecht novamente pra conversa: “Eu trabalho para a indústria, sou um operário morto de fome”. Mas o humor grotesco, exagerado, típico do comunismo italiano, tão bem encenado por Lina Wertmüller na década de 1970, aqui não vai muito adiante e aparece pontualmente para emoldurar o contexto de abundância que contrasta com as realidades narradas em seus outros filmes, como, por exemplo, Tommaso.

Tommaso parece ser o Accatone de Mangini: um jovem do interior da Itália dirige sua moto e não quer guerra com ninguém. Mas Tommaso tem alguns sonhos, e não teme o trabalho, ao contrário, cobiça-o. O que Tommaso não sabe é que não é ele quem espera o trabalho, mas o trabalho que o espera. E o trabalho o espera na fábrica. E na fábrica se ganha mal, e se morre de acidente. E se perdem os dias. Tommaso não sabe o que Accatone sabe: “Quem trabalha é bicho.”. Talvez o filme mais estilizado de Mangini, sua nouvelle vague, com enquadramentos modernistas, câmera subjetiva, adolescentes enamorados e sequências urbanas. Certamente o filme mais ficcional da mostra. Mas o comentário político documental de Mangini vem no final. Se em Accatone (Pier Paolo Pasolini, 1961) é um acidente causado pela repressão policial, tão bem conhecida por Pasolini e pelos accatones do mundo (uni-vos), que põe fim às aventuras do personagem, aqui o filme termina não com a morte de Tommaso, mas com uma espécie de presságio: uma notícia de jornal e o lamento de uma mãe que perde seu filho para a fábrica. Não foi um acidente.

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No conjunto de filmes exibidos na mostra da qual trata este ensaio, duas vezes Cecilia Mangini deposita seu olhar em rituais religiosos. As imagens ecoam umas nas outras, a fotografia em chiaroscuro vibrante de Giuseppe de Mitri é uma constante, mas é no trato do som que as narrativas se diferenciam.

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Se em Stendali: Eles Ainda Jogam os cânticos ancestrais das carpideiras nos transportam para dentro daquele ritual fúnebre, em Divino Amor (Divino Amore, 1963) a trilha musical é externa, alheia aos personagens filmados. A trilha modula a narrativa, ora revelando um filme de terror, ora uma comédia ou drama familiar. A música em Divino Amor comenta as imagens. É o texto tácito: uma multidão sobe a montanha à noite, com tochas acesas, emoldurada por uma um piano grave, e já não sabemos se estamos vendo uma procissão ou uma turba enfurecida prestes a matar o monstro da colina. Um tratamento sonoro que objetiva nosso olhar, conduz, separa quem olha e quem é olhado.

Ao contrário, em Stendali, a intervenção do texto declamado sobre a perda de um filho sublinha a catarse do ritual, nos imerge no transe compartilhado. Em meio à espiral violenta de vozes e rostos, um timbre trágico se ergue: “Eu te esperarei, filho meu”. Todo o filme se curva diante do canto e do ritmo daquelas mulheres. É pelo som repetido da oração, pela voz das anciãs com a idade da Terra que nos transportamos para o interior daquele ritual ancestral de despedida dos mortos. Um canto que atravessa os mundos: leva o falecido ao reino dos céus e o espectador para dentro do filme.

A diferença no tratamento do som ao determinar nosso lugar de espectadora diante de cada obra revela as relações de poder internas das práticas religiosas da região. Revela também o lugar de Mangini, como corpo, como mulher, naquelas diferentes situações. Em Divino Amor, a festa pública, a presença do Bispo, os homens de terno se submetem a um poder maior enquanto as mulheres cumprem sua penitência do lado de fora. Em Stendali, o ritual doméstico, o mistério incorporado por um corpo coletivo de mulheres. O primeiro, observamos; no segundo, mergulhamos.

É curioso que esses dois tratamentos convivem harmoniosamente em Maria e os Dias, filme que abre este texto. Ao mesmo tempo em que experenciamos aquele universo mágico como uma cápsula do tempo, uma trilha musical dramática, ora infantil, ora de suspense, comenta cada faceta da personagem. Aqui também temos a voz over e a voz da própria Maria, em um caleidoscópio de sons que compõe as muitas camadas de significados das imagens que presenciamos. Maria é um complexo atravessamento de processos sociais, políticos, econômicos, culturais e religiosos. Mas Maria também é apenas uma mulher. E todas essas Marias estão no olhar polifônico de Cecilia Mangini.

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Uma vez meu pai me perguntou: “Qual a coisa mais incrível, mais complexa, mais maravilhosa do mundo?”. “Não sei, pai. Qual é?”. “São as pessoas.”. Cecilia Mangini é desse grupo de cineastas que amam as pessoas, como Hawks amou um pouco antes, como Glenda Nicácio e Ary Rosa amaram um tanto depois. Seus filmes que olham a rua, Desconhecidos para a Cidade (Ignoti alla città, 1958) e O Canto dos Pântanos (La Canta delle Marane, 1961), carregam um discurso político marcado, mas não deixam de amar através do cinema – como Douchet falou certa vez sobre Bazin: “Ele ama as coisas através do cinema”.

Em O Canto dos Pântanos, o recurso da voz over para sublinhar o discurso político, um clássico do cinema militante, contrasta com as imagens da liberdade abandonada das crianças que o filme retrata. “Eles não têm o que comer”, diz a voz “de Deus”, enquanto na tela os meninos comem talvez um resto advindo da caridade. Mas o peso do contexto social não se sustenta no olhar de Mangini. Talvez sua indignação política não seja suficiente para filmar aqueles garotos de forma comiserável. Nas imagens o que vemos são crianças gozando da liberdade dos que não têm nada a perder, enfrentando a força policial, e mesmo a câmera, com o vigor da juventude, fazendo verão das poças de água e dos pântanos marginais.

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Uma cidade ao fundo, um cavalo bebe água ao amanhecer, e Desconhecidos para a Cidade começa no embalo de uma sinfonia da metrópole digna de Mikhail Kaufman (cineasta russo que amava as pessoas e as cidades e as pessoas nas cidades). Em ambos os filmes a colaboração com Pasolini é explícita, não apenas pelo texto, ou pelo tema “marginais urbanos”, mas pelo olhar amoroso que depositam nestes personagens que vivem a cidade como extensão dos seus corpos. Um deambular de apropriação, como grupos de felinos que demarcam seu território ao caminhar. A cidade lhes pertence ou “Nós amamos o mundo enquanto o mundo nos despreza”, como diz a narração em O Canto dos Pântanos.

Mas a cidade não pertence a Fabio, personagem de sete anos de O Freio no Pescoço (La briglia sul collo, 1974). Fabio não ama o mundo, e devolve o seu desprezo. Em contraste com os corpos coletivos dos filmes pasolinianos de Mangini, O Freio no Pescoço enfatiza no quadro a solidão da criança inadaptada. Filmado quase sempre sozinho, corpo inteiro ou close up ocupando a tela, Fabio não comunga o mundo com os demais. Diversos personagens avaliam, caracterizam, interpretam, patologizam Fabio, enquanto um entrevistador os interroga. A presença do entrevistador neste filme é singular, não existe em nenhum outro da mostra, e demonstra o olhar pessoal e preciso de Mangini para cada tema: o entrevistador existe aqui não apenas como um recurso óbvio da narrativa documental, mas porque Fabio interroga essa sociedade. A presença de uma voz externa catalisa as perguntas que a criança só consegue fazer com as suas ações. A marginalização aqui não é apenas econômica, mas afetiva. Fabio parece nos desprezar e por mais de uma vez nos mostra a língua, desafiando a câmera, como os garotos perdidos de O Canto do Pântanos, que no plano final xingam a câmera, soltando impropérios para o espectador. Mas Mangini ama Fabio, por mais difícil que seja.

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Seu último filme, Duas Caixas Esquecidas – Uma Viagem ao Vietnam (Due Scatole Dimenticate – Un Viaggio in Vietnam, 2020), estreou no Festival de Sevilha, no final de 2020, juntamente com uma retrospectiva em sua homenagem, e foi exibido no festival de Roterdã de 2021. Mangini também foi homenageada na Viennale, no final de 2019, com uma mostra de seus filmes. Em março de 2021, a revista feminista Another Gaze não por acaso escolheu Mangini para estrear sua plataforma de streaming. Em solo latino-americano, a cineasta foi homenageada com uma mostra no BAFICI, Festival de Cinema de Buenos Aires, também em março deste ano. Cecilia Mangini escolheu a rua e o cinema para fazer política e para amar. Morreu em janeiro de 2021, aos 93 anos, reclamando dos dias de isolamento impostos pelo Covid-19. Olhou e narrou o mundo até o final.


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