Atribuir ao corpo a condição primeira de nossas relações com o mundo é uma das portas de entrada para o visionamento do cinema de Welket Bungué, onde o corpo situa-se, simultaneamente, no texto e fora do texto, no esforço de esculpir o tempo pelo movimento corporal. Através de um ritmo próprio – enquanto movimento expressivo de um ciclo temporal, porém, em outro tempo que não o cronológico – de suas criações e dos entremeios que constrói pela multidisciplinaridade, o cineasta lança uma proposição na ausência de uma verdade interpretativa que totalize o sentido: versar um olhar sobre o cinema é também se abrir para o letramento do corpo, as múltiplas variações da performance e a história.
Em Mudança (Welket Bungué, 2020), encontramo-nos em um terreno pantanoso, de difícil delimitação, onde a cena inicial adianta a proposta do filme-dança. O batuque de roda, círculo improvisado onde músicos se posicionam em grupo para tocar instrumentos de percussão, instaura o ritmo que mobiliza o corpo. Um pouco depois, nos bastidores de um teatro, alguém caminha em um plano escuro, com um único foco de luz ao fundo, e o ritmo é transposto para o barulho do salto alto em atrito com o piso. É Joacine Katar Moreira, deputada e ativista luso-guineense, que caminhava e agora olha para a câmera, em silêncio por alguns segundos. Logo em seguida, se maquia, se dispõe a falar sobre o trauma colonial, partindo de dois textos originais de Paula Tambá Bungué – “Mudança” e “COBDE”. A polissemia do corpo que olha de volta não é a mesma da palavra, no entanto, o gesto discursivo mobiliza algo semelhante. Joacine interpreta ela mesma, mas as palavras não são só suas, fazem parte de um sintoma histórico de deslocamento, mas, ao se posicionar sobre o colonialismo, o racismo e o fascismo, ela propõe um deslocamento outro.
A harmonia edificante da música de Mû Mbana dá concretude ao movimento proposto pelas palavras evocadas por Joacine e, aos poucos, interpõe a mensagem à medida em que o som da música fica mais alto que a fala. Outro corpo ocupa a mise-en-scène e leva a emancipação, sobretudo simbólica, da palavra para as técnicas do corpo. Aos poucos, precisamos serpentear com os olhos para acompanhar o movimento da dança – que é fluido e que leva o corpo a desaparecer, por vezes, na tela preta – e sua brutalidade, que se assemelha à potência do discurso. Entretanto, um respiro ofegante escapa no meio da performance e nos leva a tomar consciência do corpo, suas lateralidades e as subjetividades individuais que escapam da generalização do coletivo. Se a “passagem de objeto a sujeito é o que marca a escrita como ato político”, como diz Grada Kilomba, no cinema de Welket a produção de sentido corpóreo é o que marca o ato político como escrita. O ser que subsiste como dizer é o aspecto que reitera a auto representação de Welket em seus filmes, como se ele falasse com o próprio corpo, ou através dele.
Pelo uso de projeções de cenas da floresta amazônica sobre os corpos negros, a relação corpo-natureza é colocada como imanência. O corpo que existe, ao mesmo tempo, sozinho e mediado pelas imagens é estrangeiro. Através da dança, dos movimentos inefáveis do corpo e das luzes que se dissipam sobre a pele – em tonalidades azuis, verdes e vermelhas – constroem-se superfícies e texturas, assim como o texto. Joacine discursa em voz over enquanto somos tomados pela performance. A voz, que antes era pausada e fundamentada no didatismo, se mostra forte e extremamente política, embora não traga respostas prontas para o problema enunciado no início do filme. “O que é isso de igualdade? O que é isto na política?” ela diz e circunscreve o cerne do trauma colonial na dúvida. Aqui, a dança também não parece tecer respostas, mas é propositiva na medida em que estabelece o corpo como superfície de inscrição dos acontecimentos do passado. A câmera que tateia os movimentos duros do corpo, também persegue os olhares, que parecem estar suscetíveis a mudanças. No caos que se instaura entre o discurso, as palmas do público, a força da dança e a música, escapa do corpo que dança uma palavra em um tom quase inaudível, uma catarse que nos situa na realidade. O que é essa catarse se não uma suspensão física do próprio discurso? Que gesto é esse de atravessamento que ainda não consigo encaixar em palavras?. E então, sinto como se Joacine escutasse a minha dúvida, por que ela me responde: “Não vamos deixar de herança um planeta que não presta”.
Na tela em que se projeta a floresta, reconheço um limite. O corpo nas obras de Welket não é colocado como independente dos outros corpos não-humanos. Na harmonia entre a natureza e a humanidade é que se estabelece o diálogo entre a ancestralidade. No entanto, aquilo ainda é uma tela e a floresta existe, naquele espaço, apenas como registro. Joacine fala de sua filha como sua maior realização e faz pensar sobre o gesto do futuro, o processo de deixar como herança um mundo diferente. E então, a dançarina encara a floresta pela tela e depois fica de costas para a projeção. Os novos sentidos que se estabelecem pela recusa à contemplação passiva das imagens é a grande proposição que encontro nesse filme. O giro do corpo posiciona o discurso como ação corpórea e política. O gesto da mudança está, sobretudo, no letramento do corpo e nos olhares.
do passado para recordar eternamente
e é dançando que se constrói o amanhã
Um movimento de câmera desorientado em uma estrada que penetra a imensidão de uma paisagem tropical nos introduz ao processo de travessia em É bom te conhecer (N’Sumande Tchalih Hudi, Welket Bungué, 2019). É na potência geográfica da intervenção de um nevoeiro em uma estrada construída por mãos humanas – onde, logo nos primeiros minutos, as qualidades dos sujeitos e objetos se apresentam como indestacáveis dos espaços – que entendemos o filme como um cinema de atmosfera. O som extracampo de uma conversa em língua portuguesa indica o território, lugar retratado como sublime pelas paisagens naturais, ao mesmo tempo em que flerta com o vazio como informe, visto que, apesar da beleza das paisagens, há uma descontinuidade de olhar que desloca os sujeitos e objetos, focando na contemplação. O texto abstrato que, em alguns momentos, se desloca das imagens criadas e do próprio filme, estabelece um discurso próprio que, no primeiro momento, não parece dialogar com a imagem. A imagem textual, portanto, é construída em um lugar outro que não a cachoeira filmada. A aspiração desavergonhada à poesia pela criação de desconexões.
O filme se divide em atos para estruturar a narrativa. A narração remete à preservação das histórias e memórias coletivas através da oralidade, indicando o alicerce em que se constituem as sociedades tradicionais africanas. Aliás, é a associação entre a paisagem bucólica de um grupo de amigos em uma cachoeira e a maneira com que o texto se apresenta — uma narração em voice-over sobre uma lenda Balanta, grupo étnico da Guiné Bissau, sobre a criação do mundo — que nos faz questionar a temporalidade. Na imagem, o tempo é presente. No texto, com a reflexão retroativa sobre Abó, um corpo sofredor do qual todos teriam se originado, Welket Bungué nos leva a um imaginário de outras vidas pulsantes. “Bom, vou contar-vos uma história”, ele diz.
A reflexão acerca de Abó nos leva à imensidão de um outro mundo, o entremeio do dizer e do contemplar. As heranças culturais transmitidas pela fala nos contam da motivação da criação de todas as coisas, estímulo que nasce de um sonho e se materializa como elemento palpável. No filme, a materialização do corpo é marcada pela intensificação sonora: o som anteriormente construído como ambientação se coloca como instrumento veemente através de ritmos africanizados. “Por ter sonhado, por agora ter em si o poder de sentir coisas”, Abó assume o poder da corporeidade e, a partir da dança, dá o direito à existência a todas as criaturas deste mundo. No momento em que Welket nos diz que “Abó dançou muito para que fossemos criados”, há a representação de um percurso transversal de letramento do corpo, onde a ampliação de sentidos nos leva à reflexão e contemplação dos elementos em cena de uma outra forma. Mais sensível, mais intensa e propondo novas formas africanizadas de escritas de si.
Na resolução do filme, Welket aparece em cena olhando para fora de campo. O corpo negro se mostra como catalizador de uma passagem entre duas temporalidades distintas, ao mesmo tempo em que nos incorpora como espectadores. Nos dois filmes, Mudança e É bom te conhecer, o que há dá espaço para outra coisa pela mediação do corpo que está localizado em um tempo não cronológico. A construção simbólica do papel do corpo nas práticas de letramento em É bom te conhecer é uma proposição semelhante daquela trabalhada em Mudança, a de que o corpo é o mecanismo para nunca se esquecer do passado e, ao mesmo tempo, um instrumento para projetar o futuro.
Leia também