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Deslocamento do gesto, insubmissão da forma

Corre quem pode, dança quem aguenta (Welket Bungué, 2020) estrutura sua carne em um relato, sobreposto por imagens aéreas da cidade do Rio de Janeiro e fragmentos do pátio externo de um prédio em Santa Teresa. Aos poucos, a imagem de Welket Bungué surge em tela através de um movimento oscilatório de se desmanchar e se rematerializar em cena, por meio de transições que o inserem em diferentes pontos do quadro. A construção sonora apresenta Auris (voz de Welket Bungué), através de uma entrevista ficcional, que decorre ao longo de toda a narrativa, se iniciando ainda na tela escura antes mesmo da imagem de abertura: um plano aberto da cidade amanhecendo.

Não é dado no filme se Auris (relato sonoro) e Bungué (imagem) cumprem esse pacto representativo de ator e personagem. Auris conta sua história, sua origem e o motivo de estar sendo entrevistado. A imagem parece operar no sentido oposto, não contextualizando Welket nem a locação que ambienta o filme. Se através de uma hermenêutica da suspeita, a espectadora buscar relacionar essa performance visual com o relato, ela se encontrará suspensa entre duas camadas que parecem não se tocar, mas que, de alguma maneira, se provocam.

Se a narração entre Auri e seu entrevistador totalizam o campo sonoro da obra, as imagens põem em crise qualquer solidez estabelecida. Exercendo uma composição visual a partir de fragmentos dos espaços e entremeando na narrativa e na forma o corpo de Welket, sua materialidade e suas ausências. Em seus gestos físicos, ele hesita, dá um passo, se dissipa e se reconcretiza em outro lugar. Essa repetição fílmica, que dissolve e depois ordena sua corporeidade, é a forma da permanência de Welket no quadro. Ele caminha brevemente, seus gestos são constantemente interrompidos, sua presença física está sempre em um jogo de se movimentar e desaparecer, caminhar e se diluir. São apenas em alguns momentos, em que seu corpo está parado em cena, que as transições não o atravessam e ele permanece até o fim do plano.

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Nesse deslocamento na forma, das imagens não estão subjugadas à temática do relato, se constroem desatadas desta narrativa sólida, e são originadas novas camadas à obra. É em sua condição de desatada, que essa imagem é autônoma para se enlaçar e tensionar o relato de Auris. No momento chave de sua entrevista, ele conta quando decide se tornar bailarino e não um policial. Conforme a tônica do relato cresce, surge na faixa de áudio uma trilha musical que ambienta essa descrição indecifrável: a dança de uma estranha que causa um efeito hipnótico em todos na cena, salvando a vida do homem agredido pela polícia. A imagem neste momento desenha Bungué em uma sala performando sua repetição gestual, não há crescente, dor ou expurgação em seus gestos. Metodicamente ele repete seu movimento, dá um passo para frente, um outro para trás, some e retorna ao quadro. Em breves momentos a narração de Auris parece tocar a esfera da imagem. Na tensão máxima da história, Welket some deixando na tela apenas a imagem da sala vazia. Mas em seguida ele retorna e essa breve impressão cessa, Welket faz novamente seu gesto. Imagem e narrativa seguem executando dois jogos distintos.

Talvez esteja aí o nó central de Corre quem pode, dança quem aguenta, que se ergue nesse relato ficcional e nessa performance do corpo. Numa relação de não controle entre narração e imagem. Auris cresce em um mundo que lhe nega o movimento, sua mãe o proibia de correr. Se deslocar rápido demais poderia resultar no fim de sua vida e exaltar-se demais poderia resultar em uma repressão fatal da polícia. O próprio episódio disparador de seu relato é sua prisão no dia anterior, após ter ido a uma manifestação contra o aumento da passagem do transporte público. Mesmo agora, Auri ainda sofre repressões que o impedem de se deslocar e de se manifestar. A arte não trouxe liberdade, mas dançar segue sendo sua maneira de se movimentar e permanecer vivo.


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