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O cine-sample de Lincoln Péricles

A filmografia de Lincoln Péricles nos convida, como espectadores, a refletir se o que chamamos de cinema pode ser, ou não, concebido pela lógica do beatmaking – a criação de batidas musicais – como dinâmica de produção. Essa talvez seja a grande sacada para pensar imagens de um cinema que frequentemente é colocado como inapreensível – quando tentam refletir sobre o modo de produção sem se apegar, essencialmente, aos discursos sobre a luta de classes ou ao que se espera do cinema de quebrada. Nos entrecortes do procedimento de montagem nos filmes de Lincoln, considerando que além de montador ele também é produtor musical, o rearranjo dos materiais se apega em fluxos indevidos quando pensamos nas normas do cinema, mas se adequa ao pensamento musical.

Um estilo de produção de batidas musicais que se assemelha ao método de montagem de Lincoln é o boom bap, uma onomatopeia que se refere a um estilo de produção de batidas que se caracteriza pelo uso de bumbo e caixa, o uso de samples (a reutilização de um arquivo de som em outro arquivo de som) e timbres de bateria acústica. Em outras palavras, o boom bap é um arranjo que se desenvolve em compassos regulares, onde a sensação de continuidade do ritmo é aquilo que reproduzimos com o padrão: “tum, tá. tum-tum, tá”. O ritmo e a reprogramação da bateria acústica firmam uma experiência da música hip hop que remete a uma força muito característica do rap produzido na década de 1990, quando o discurso engajado é incorporado às técnicas formais do beatmaking. Nas décadas anteriores, a mensagem política se manifestava apenas na lírica como parte do legado e da influência do rap norte-americano. É só a partir do final dos anos 1980 e começo dos anos 1990 que a tradição do rap começa a ser reformulada pelos procedimentos de mixagem de som. A possibilidade de invenção pelas máquinas e os equipamentos de som é o que possibilitou também que o rap nacional começasse a lidar com o desafio de criar uma tradição própria, buscando representar suas particularidades através da técnica importada. Isso parece ter a ver com a anulação da ideia de cinema periférico como unidade. Na última década, a manipulação digital de som e imagem em movimento possibilitou que os cineastas de quebrada incorporassem o jogo dos aspectos não-verbais do hip hop como linguagem. Cria-se, desse modo, uma forma particular de fazer cinema engajado, que não se apega, exclusivamente, à lírica, aos discursos e à denúncia falada como única possibilidade de articulação política.

No cinema de Lincoln Péricles, a demarcação do território é um elemento fundante que me parece também ter raízes no jogo do hip hop. Um marco do discurso engajado no rap nacional é o grupo Racionais MC ‘s, natural do Capão Redondo, periferia de São Paulo – lugar a qual Lincoln Péricles também pertence. O grupo foi o que mais contribuiu para a idealização de uma tradição do rap nacional através da difusão de um imaginário de voz periférica. Os relatos crus sobre a vida na quebrada e as críticas sociais se alinharam ao ritmo do boom bap e do gangsta rap – estilo que se caracteriza pela descrição da violência ao qual pessoas negras e periféricas estão submetidas diariamente. O gesto fundamental dos Racionais MC ‘s foi atribuir ao rap nacional um dos motes principais da luta de classes pela postura rítmica desobediente, rebelde e imprópria.

Há um desdobramento no cinema de Lincoln que possui raízes nesse modo de fazer rap nacional. A opção por uma abordagem ruidosa da imagem é, também, uma construção ética que remete ao modus operandi do rap da década de 1990, estabelecendo um jogo entre o que entendemos por desordem – frequentemente associada à noção de ruído – e a justaposição dos arquivos na montagem. Se a música é o “som organizado”, Lincoln coloca o ruído neste mesmo patamar. Em seus filmes, o ato de criar música hip hop usando sampleamento digital para construir colagens sonoras – técnica que evoluiu da prática de discotecagem do hip hop – é transposta para a materialidade fílmica. Tencionando sua poética pela ótica do sampleamento, é possível entender o uso de arquivos musicais como elemento primordial para reprogramar a organicidade própria do pensamento musical para a imagem em movimento. Lincoln utiliza cenas de filmes e seriados baixados diretamente do Youtube como instrumento para insinuar, assim como os Racionais MC ‘s fizeram pelas suas músicas, a realidade vivida no Capão Redondo.

A cena inicial de Aluguel – O filme (Lincoln Péricles, 2015), uma imagem de arquivo em língua francesa cuja legenda do próprio filme burla o que está sendo dito originalmente, é um tipo de ruído semântico que se assemelha ao processo de reprogramação no boom bap. Ao traduzir a língua europeia com as gírias de quebrada, Lincoln constrói um ritmo próprio e provocativo, uma síntese do próprio filme. Pela justaposição entre imagem e som, Lincoln cria um dispositivo de negociação do sentido das imagens. A cena de Chaves, seriado televisivo, é um exemplo de como o realizador transpõe o processo de reprogramação do boom bap para o cinema. Sem querer querendo, a associação entre a cena do seriado – que narra o problema da falta de água na Vila – e a narrativa da falta de água na periferia se complementam como compassos que se repetem em loop pelo procedimento de montagem rítmica. O intertítulo, artifício que era utilizado no cinema silencioso para complementar a narrativa é utilizado no filme não para identificar os arquivos, como acontece em Filme dos Outros (Lincoln Péricles, 2014) – onde Lincoln, exercendo a função de montador, distingue cada material de arquivo pela descrição, em intertítulo, da câmera utilizada – mas sim para colocar os materiais como indissociáveis. O intertítulo “Merda” constrói uma unicidade entre o arquivo de Chaves e o relato no Capão Redondo, assumindo que o problema da falta de água na periferia possui a mesma dramatização da ficção. Ao ficcionalizar sobre a realidade crua de um território sem assistência governamental, Lincoln brinca com a irredutibilidade da imagem como ritmo contínuo que se repete, mas que não se esgota em si mesmo.

Para entender verdadeiramente a poética de Lincoln Péricles e como é possível fazer cinema quando, na realidade, se faz música, é preciso se apoiar na tradição do rap nacional. Aquilo que chamo de cine-sample é uma ideia para tentar dar conta de uma proposta estética no cinema análoga à produção musical no hip hop pela articulação de imagens e sons em recortes ou justaposições. No boom bap usa-se um ou dois samples para compor camadas não percussivas que podem ser cortadas ou justapostas em loop. Em Ruim é ter que trabalhar (Lincoln Péricles, 2014), a estratégia de manipulação de arquivos segmentados de som e imagem é muito expressiva e opera nas variações de ritmo. Pelo rap, Lincoln desloca as imagens de arquivo de sua posição original e introduz o cotidiano de um morador de quebrada. A música “A lei do opressor (500 anos)” do grupo DMN também funciona como uma espécie de ruído semântico, uma vez que desloca a imagem de arquivo de seu sentido original. Ao filmar o trajeto de volta para casa no transporte público, Lincoln usa a música para estabelecer a ponte que liga o arquivo de uma cena de lazer da classe alta ao relato do trabalhador:

Com a articulação de imagens filmadas em baixa resolução e as fotografias de Adriano Araújo – o trabalhador – Lincoln constrói uma narrativa contrária da reproduzida pela grande mídia sobre a Copa do Mundo de 2014 no Brasil. Adriano conta as condições precárias de trabalho na construção dos estádios, fala sobre a supervalorização de seu antigo bairro, que fez com que ele precisasse se mudar, e sobre o problema do transporte. As longas falas de Adriano são divididas em duas partes e entre elas há uma experimentação com a densidade sonora pela abordagem ruidosa das cenas em que Adriano caminha, nelas, o ruído opera dentro e fora da diegese. No processo de produção musical no rap, existe uma técnica de segmentação de um sample em partes menores, chamada chopping. É como se Lincoln fizesse esse recorte na fala de Adriano para criar um groove – a sensação do efeito da mudança de um padrão rítmico propulsivo – sem perder a força e a autenticidade do relato.

O cinema de Lincoln se estrutura e se fortalece na música hip hop. Os movimentos longos, superpostos ou contrapostos a movimentos de curta duração, seguidos da experimentação não convencional de sons e de planos cinematográficos, indicam a premissa latente de suas criações, a de que não existe uma unidade do fazer periférico, mas que a música seria um dos pontos de partida para entender o cinema de quebrada. Reviver o boom bap na era do trap, grime e drill também tem haver com o posicionamento de Lincoln em seus filmes, dessa ânsia em rejeitar tudo aquilo que é mainstream para construir uma linguagem própria, fundamentada nas heranças do passado. Elabora-se, dessa forma, compassos na estrutura rítmica que é localizada no tempo e espaço. O cine-sample é um núcleo atemporal que incorpora o procedimento de produção da música hip hop para o cinema. Para depois revirá-la.


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