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Insistir na opacidade: reverberações a partir do Seminário Flaherty 2021

O diálogo a seguir busca reverberar a experiência do 66o Flaherty Seminar, evento ocorrido entre 9 e 17 de julho. Com a curadoria da brasileira Janaína Oliveira, o tradicional seminário estadunidense, criado por Frances Flaherty nos anos 1950 e realizado pela primeira vez em modalidade online este ano, foi guiado pela palavra opacidade, e contou com exibições e discussões a partir de obras das seguintes artistas: Deanna Bowen, Garrett Bradley, Denise Ferreira Da Silva e Arjuna Neuman, Isaac Julien, Isael e Sueli Maxakali, André Novais Oliveira, Grace Passô, Morgan Quaintance, Athi-Patra Ruga, Larissa Sansour e o Sudanese Film Group. Outras artistas/pensadoras que participaram com obras convidadas em sessões pontuais do seminário foram Tina Campt, Saidiya Hartman, Jota Mombaça e Anti Ribeiro.

Esta conversa foi escrita a oito mãos entre Aline Portugal, Bárbara Bergamaschi, Juliano Gomes e Victor Guimarães, em um arquivo conjunto no qual fomos reagindo umas às outras nesse período entre o fim do seminário e a publicação do texto. Ao final, em um diálogo com a proposta do Flaherty e com o tema deste ano, optamos por retirar os nomes de quem escreveu cada parte. Esse gesto é uma aposta nas indeterminações que contribuem para garantir as diferenças irredutíveis — entre as formas de escrita e os pensamentos. Uma aposta nas relações e trocas que não pressupõem um conhecimento total para se constituírem enquanto experiência.


– O seminário Flaherty deste ano, programado pela brasileira Janaína Oliveira, enfrentava de saída um desafio muito particular. A tradição do Flaherty – e a reputação do evento entre as pessoas que participaram de sua versão presencial – parece estar assentada em dois pilares. De um lado, a concepção da criadora do evento, Frances Flaherty, de “non-preconception”, que guiou todas as edições desde os anos 1950 até aqui. Isso significa, na prática, que todos os participantes do seminário, que na versão presencial atual permanecem juntos num campus universitário durante uma semana, entram três vezes ao dia numa sala de cinema sem saber o que vão ver, sem saber quem são os artistas responsáveis pelo que veremos, e sem saber, em alguns casos, quanto tempo vai durar a sessão. Isso provoca uma espécie de atenção radical à singularidade das obras e aos diálogos entre uma e outra no espaço da sessão, e aponta para um tipo de relação com os filmes que é, sem dúvida, menos mediado pelos paratextos e pela retórica em geral, se compararmos com um festival de cinema convencional ou com a experiência cinéfila doméstica. O outro pilar do Flaherty – uma espécie de fama que corria à boca pequena – é o calor dos debates pós-filme. Há relatos de lendárias discussões, em que os atravessamentos estéticos e políticos entre vozes muito diferentes permitiam um ambiente raro de cultivo do dissenso e da franqueza nas posições. Eu mesmo presenciei algumas delas. Acho que ambos os pilares são, de saída, deslocados a partir do momento que o evento se realiza online. Não é?

– Com certeza. Interessante saber dessa tradição metodológica. Foi minha primeira vez. Sinto que foi a primeira vez de muita gente, com o desconto que fizeram para países periféricos.

– Me chama atenção essa intuição da Frances Flaherty porque ela já pegou o problema lá de trás, das estratégias de antecipação e de descentralização da experiência com o filme. É belíssima essa coisa do sem “pré concepção”. Me parece uma coisa hiper radical hoje se entregar à vulnerabilidade da dark room sem saber o que vem. Mas sim, no online é diferente, meu mouse passava no player, via quantos minutos ia ter, podia pular um filme que já tinha visto – apesar de não ter feito isso. O outro pilar, como você falou, me parece igualmente acertado, e ainda mais difícil de manter num ambiente online, a coisa dos debates com calor e dissenso.

– No mundo pós rede social, pós Steve Bannon e tudo mais, esse modo de expressão neste tipo de interface já está incrustado. É muito duro mover esse hábito para fora do habitual, que é a surra de likes e toda sua cultura. Porém, imagino que deve ter havido experiências muito diferentes entre as pessoas. Pode ter havido um núcleo de debates intensos de que nenhum de nós participou. O online permite essa simultaneidade e pulverização, né?

– Apesar de o Flaherty ser um evento muito bonito enquanto método, sempre foi algo extremamente elitista se olhamos para ele com os olhos do sul do mundo. A inscrição normal custa mais de mil dólares. E mesmo se você tiver uma bolsa, você precisa ir aos Estados Unidos, conseguir um visto, hospedagem, enfim. O online tem essa promessa de democratização, com uma taxa de inscrição bem menos excludente (ainda que, para países com moeda fraca como o nosso, continue sendo muito difícil conseguir participar). Isso certamente gerou esse ano um ambiente mais diverso do que o presencial. A presença forte de latino-americanos, por exemplo, foi um indício disso. A experiência online é, nesse sentido, muito contraditória, pois foi um ano em que conseguimos ter diálogos muito interessantes com pessoas que não encontraríamos de outra maneira (e muito provavelmente nós tampouco estaríamos lá). Sobretudo nas salas menores de conversa, formadas meio espontaneamente após as sessões, e que em alguns casos foram construindo pequenos conjuntos de pessoas e ideias que tiveram alguma chance de se adensar. Por outro lado, tudo na experiência online parece empurrar para a superficialidade, para a dispersão, para a distração. Desde nossas telas pequenas que surgem em meio a um cotidiano doméstico de trabalho até o chat aberto das discussões com o grupo inteiro, no pós-sessão. A concentração é uma experiência quase impossível nessa modalidade. Isso tem a ver com opacidade, né?

Frances Flaherty liderando uma discussão na fazenda de Vermont, local dos primeiros seminários

– Na minha experiência particular também tive uma dificuldade enorme de concentração, não apenas pela característica intrínseca da internet que convida a gente à multiplicidade de telas e a dispersão dos hiperlinks (por exemplo: ficava pesquisando simultaneamente referências no Google que eram citadas nos debates) como também pelo fato do chat de mensagens ter cerca de 400 mensagens, com mais de 180 pessoas comentando tudo que era dito, uma experiência radical de hiper-comunicação que por vezes produz mais ruído que mensagem. Mas, por outro lado, mesmo quando estamos na sala de cinema tradicional nos distraímos, podemos perder uma informação ou outra, sonhar acordado, misturar a narrativa com as nossas memórias pessoais…

– A espectatorialidade tradicional é também um sonho capitalista de controlar a nossa atenção, acreditando que pode conduzir a experiência da audiência como público consumidor – Jonathan Crary já cantou essa pedra nos livros 24/7 e Técnicas do Observador, né? Então, a opacidade, nesse sentido, surge como uma resistência a esse discurso transparente que prende o espectador durante duas horas de sala escura, e isso é bastante presente no discurso dos cineastas experimentais, um gênero de filme que esteve muito presente no Flaherty esse ano. Gosto de lembrar aquela fala famosa do Deleuze naquele documentário de 1995 “o Abcedário segundo Deleuze”, em que ele define o verbete “Aula”, e diz que uma aula não é feita para ser compreendida, mas sim para produzir emoções e um tecido de diferenças. Também gosto de lembrar uma entrevista do Truffaut em que ele diz que o Godard nunca via um filme inteiro na Cinemateca Francesa, às vezes saía no meio e voltava no dia seguinte para continuar de onde parou, e também era famoso por ir à casa dos amigos, folhear livros e arrancar as páginas que mais interessavam para serem citadas nos seus filmes. Ele não necessariamente lia os livros em sua totalidade, e a sua obra tem esse caráter fragmentário e de colcha de retalhos que é muito potente.

– Isso me leva a pensar no acerto do tema que Janaína Oliveira escolheu. Opacidade tem tudo a ver com isso. Tem a ver com superficialidade, com não saber o fundo das coisas, em só pegar uma parte e se haver com ela, produzir um entendimento novo, que trai a matriz. Isso é muito “do Sul”. Fazemos isso com tudo.

– O André Novais falando de como o trabalho de Billy Wilder e Howard Hawks foram importantes pra ele é suco de Sul, purinho, a “incapacidade criativa de copiar” do Paulo Emílio…

– É um eixo que nos permite pensar todas essas coisas estruturais e conversar diretamente com as jogadas metodológicas da Frances Flaherty, né?

– É interessante pensar que o convite para a Janaína veio antes da pandemia. A princípio, opacidade já seria um tema fascinante no presencial, porque teria tudo a ver com o método Frances Flaherty. Você tem que se deparar com diferenças radicais, tem que mergulhar no escuro – da sala e da experiência da sessão -, tem que se mover menos pela doença da racionalidade e mais por uma relação física e direta com a opacidade das obras e das relações entre elas. Na experiência online, a opacidade certamente se reconfigura e se torna interessante por outros motivos.

– Sim. Primeiro, no online, o ambiente é todo feito, literalmente, de informação, né? Tudo digital, tudo zero ou um, dados. Isso é um puta desafio. Como produzir com isso algo que seja o contrário disso? O problema tá na carne da coisa.

– Aquele filme de Athi-Patra Ruga, Public Service Announcement (2014), lida diretamente com esse problema…

– E de fato, a Janaína teve uma intuição precisa. É bacana que venha e se relacione com o Glissant, que é alguém que tem sido cada vez mais lido, um teórico do Caribe, que fala de creolização, de poética da relação. É muito oportuno mesmo que tudo isso ganhe relevo nas discussões hoje. Acho que numa entrevista da edição brasileira do livro dele, “Poética da relação”, ele fala uma coisa belíssima sobre o livro que ele escreveu sobre o William Faulkner, “Faulkner, Mississippi”. Diz que ele leu o autor americano sempre traduzido para o francês. Que não teve acesso às palavras do Faulkner. E que essa situação, de lê-lo vertido para o francês, o levava a reparar mais na estrutura do texto, mais do que talvez fosse o comum. Gosto do exemplo.

– É legal mesmo.

– Isso que você disse me lembra muito o processo criativo de Beckett. Em certo momento ele passa a escrever seus livros primeiro em francês, língua que não dominava completamente, para, em seguida, traduzi-los para o inglês. Assim ele evitava cair em “vícios de estilo” de sua língua natal. A língua estrangeira seria o lugar onde a língua está crua e desnudada, produzindo, nas palavras dele, uma literatura da “despalavra”, uma fala “desprogramada”. Então esse lugar opaco da língua, permite que a gente lide com as palavras de uma maneira mais viva, e a escrita sai desse lugar de conforto, “pacificada” ou “domesticada”.

– Acho que isso estava acontecendo o tempo todo nessa edição do seminário, essa variação dos entendimentos. O problema é como produzir um solo comum que permita ao mesmo tempo algo em comum e algo divergente, para que o dissenso possa produzir e expandir a experiência. Nesse sentido foi bem especial pra gente acompanhar as artistas brasileiras que entraram no programa, né? Digo, no sentido de observar isso em ato, esse estudo empírico de recepção, de ver como pessoas estrangeiras sentem coisas que nos são íntimas, né?

Vaga Carne (Grace Passô e Ricardo Alves Jr., 2019)

– Acho que podemos pensar um cinema da despalavra e da desfiguração (a desarticulação da imagem enquanto mimesis) também, como um paralelo no Flaherty. Penso que a maioria dos filmes da Grace Passô que vimos como o Vaga Carne (co-dirigido com o Ricardo Alves Jr., 2019), O Segundo Antes da Coragem (co-dirigido com a Wilssa Esser, 2020), e o Ficções Sônicas (2020) estão todos dentro dessa linhagem do estranhamento com a linguagem, de um lugar de desconforto com a própria pele, corpo e língua, e com a representação “transparente” do mundo. A Grace mesmo comentou isso nos debates pós-sessão, sobre se aproximar do cinema como quem está aprendendo, onde tudo ainda é novo, como uma criança brincando pela primeira vez com um brinquedo.

– Sempre fui muito curioso pra saber de que forma um filme como Fantasmas (André Novais Oliveira, 2010) seria recebido fora do Brasil, por alguém que não sabe que tipo de esquina é aquela, que não consegue se deliciar com aquela maneira de falar por uma limitação da língua. Eu tinha a impressão de que seria uma experiência radicalmente diferente da minha (já que a minha prosódia é muito semelhante a dos personagens do filme, tem algo forte de intimidade na experiência mesmo). E foi das sensações mais lindas perceber que o filme tocava as pessoas, que elas se relacionavam com ele de maneiras talvez diferentes, mas com a mesma intensidade de quando a gente viu esse filme pela primeira vez, ou das muitas vezes em que o mostramos para os nossos alunos. Eu fui anotando algumas coisas que as pessoas disseram e eram fascinantes. Alguém disse, por exemplo, que o filme parecia inicialmente um filme estrutural, e que uma de suas grandes virtudes era implodir essa tradição quando a câmera se torna parte da ficção. As escolhas de cineastas brasileiros feitas pela Janaína foram todas belíssimas. André Novais Oliveira, Grace Passô e Isael e Sueli Maxakali deram formas muito particulares para a noção de opacidade.

– Minas Gerais em alta, né? Achei as escolhas muito fortes também. E cada uma se relacionava com o tema de um jeito interessante. Mas posso arriscar aqui que o clichê da mineiridade tem algo a ver com opacidade. Pega por exemplo os filmes do André. São todos filmes sobre gente que tá sentindo coisas muito fortes mas não fala sobre, e o que eles falam é outra coisa. Temporada (2018), nessa revisão, virou completamente isso pra mim. Às vezes o plano continua porque ele tá atrás do sentimento, e dessa sismografia emocional que o cinema dele faz. Isso tem a ver com superficialidade. O cinema dele tem a ver com isso. O que tá mostrado indica que tem muita coisa não mostrada, e isso produz uma densidade particular, e requer certa sintonia fina.

– Minas é um troço escondido, né?

– Sim. E o trabalho da Grace tem muito segredo, né? Vaga Carne (Grace Passô e Ricardo Alves Jr., 2019) é sobre desigualdade entre corpo e voz. De certa forma, nessa linha que tô fazendo, os filmes do André são sobre a mesma coisa. O sentimento fica num espaço de embate entre o corpo e a voz. No República (Grace Passô, 2020), o duplo, a dupla, que emerge no fim, tem algo disso, dessa coisa eternamente recalcada, que emerge, esse afeto sem forma, cozido por muito tempo, essa mistura patológica de rancor, raiva, de tudo que foi acumulado desde sempre. Nos filmes de Isael, Sueli e seus colaboradores tem algo diferente, porque as coisas todas nos filmes são várias coisas. A superfície é só uma delas. Uma pessoa é uma lontra, um espírito, alguém do passado, e a própria pessoa do presente, que pode estar com uma camisa da Nike ou da Andrade Gutierrez. É riquíssimo se pegarmos pela ideia de opacidade. E no final, muito surpreendentemente, veio no trabalho da Grace o texto do Artaud, “Para acabar com o juízo de Deus”, no Ficções Sônicas (2020). Confesso que é a última coisa que eu esperava no que se constituiu ali como campo de referências, nos nove dias anteriores. Achei corajoso o Artaud entrar no caldo, porque de certa maneira tem tudo a ver. Ele tá falando de corpo, de cu, de matéria, tem tudo a ver mesmo…

– Sim, e esse texto do Artaud na época foi censurado, foi gravado para a rádio e nunca foi ao ar.

– Os cinemas de André, Grace, Sueli e Isael são muito materiais, né? O pensamento está sempre incrustado nas coisas, no corpo, na voz (e não necessariamente no verbo). Falando de voz, além do exemplo do Vaga Carne que é quase uma teoria da opacidade em forma de filme, vejo modulações por exemplo no modo como André trabalha com as melodias orais. Só o que conhecemos dos personagens do Fantasmas é a voz, e é fascinante porque sentimos imediatamente que conhecemos muito sobre eles a partir do que eles dizem, mas ao mesmo tempo resta sempre essa zona de indeterminação, essa frequência sonora com a qual a gente tem que lidar, e que está, aparentemente, desencarnada. É um filme ao mesmo tempo sem corpo e fundamentalmente corporal. E isso tem a ver com o modo como os personagens do André se recusam a traduzir o sentimento em diálogo, com o modo como os filmes às vezes precisam desviar para algo que seria lateral em relação ao drama. Nos Maxakali, a presença dos cantos é fundante, e cria uma espécie de camada sonora de palavras que se misturam às outras, mas que funcionam como uma frequência opaca. A narração da Sueli no Yãmiyhex, por exemplo, nunca ganha um destaque a ponto de abafar esses cantos, que são fundamentais para a experiência do espectador que não pertence à comunidade, e que não chega nem perto de entendê-los. Quando eles dizem no debate sobre os espíritos que podem e não podem ser filmados, ou sobre os cantos cujo registro é ou não permitido, acho que essa parte de segredo tem a ver também com a carne dessa palavra cantada que sempre constitui os filmes dos maxakali.

– Aqui lembrei de outra referência (desculpem pessoal, sou muito afeita a citações e sempre vou relacionando com textos de teóricos que sou apaixonada e me movem) mas o Barthes fala mesmo uma coisa bonita entre a distinção de dois tipos de cantos: o geno-canto e o feno-canto. O primeiro seria produto do “grão da voz”, tem a ver com a “rugosidade” da voz uma dimensão corpórea e erótica (vem da carne interior, dos músculos, das cartilagens, da vibração das cordas vocais) e que resiste a toda forma de representação. O geno-canto comunica não pelo significado, mas pela volúpia e pelo prazer, comunica-se com o corpo. Já o feno-canto nasce de uma voz vazia e oca daquele sujeito que é a voz do saber institucional, do burocrata ou do acadêmico, é a comunicação que informa de maneira clara e transparente, uma voz que carece de sedução e poesia. É o famoso “boring”, algo que não mobiliza os afetos. Enquanto o primeiro canto trabalha com o sensível, o segundo trabalha com o sentido.

– Será que esse par não é muito dualista? Corpo de um lado, razão do outro?

– Acho que eles não se excluem mutuamente. Existem pessoas que conseguem aliar as duas formas, tendo uma voz do saber-apaixonado, e, pessoalmente, vejo muito esse fenômeno nas falas da Grace Passô. Acho que nos cantos dos Maxakali tem algo também de geno-canto, que é ininteligível mas mágico, quase encantatório, que na verdade faz algo emergir e torna visível mais do que explicam ou representam algo, mais produzem uma vida do que contam uma história. Estão na ordem do acontecimento.

Jagdpartie (Ibrahim Shaddad/Sudanese Film Group, 1964)

– Gosto também do elogio à superfície do Deleuze, porque para ele a profundidade já está na superfície, já está tudo dado logo de cara. Há essa tradição que é uma coisa que vem da escolástica cristã (os “escolhidos” que sabem as verdades das escrituras) e deriva de uma ideia calcada na separação entre alma e corpo. A verdade estaria separada do corpo, que por sua vez é enganador e diabólico. Mas na opacidade, ao contrário, as verdades mais profundas são encontradas na pele, na superfície. E a pele é justamente o maior orgão do corpo, o mais erótico, mais em contato com o mundo externo. Voltamos então a essa experiência da volúpia como linguagem, como abertura para uma verdade. Acho que há uma metafísica do corpo nos filmes que vimos no Flaherty – por exemplo: a sede, o suor e o riso, o silêncio partilhado pelas personagem do filme Jagdpartie/Hunting Party (Ibrahim Shaddad, 1964), um filme quase sem diálogos mas cheio de comunicação. A performance no limite da morte que tem uma camada de violência prestes a explodir nos filmes do Athi-Patra Ruga também. São filmes-pensamento feitos por meio e através do corpo, pelos poros, gritos, cantos, ruídos, convulsões e espasmos. Talvez não tanto pelo símbolo e pela metáfora, mas mais pela relação de contato visceral mesmo com as coisas do mundo. A cena do homem saindo de dentro da casca de árvore no filme do Ibrahim para mim resume essa ideia (e que cena incrível!).

– Introduzindo um pouco de dissenso aqui na conversa, confesso que sinto um incômodo com uma certa proliferação de referências europeias, especialmente de autores que se tornaram clichês acadêmicos no Brasil, como Deleuze. Sinto que podemos estar perdendo de vista as obras e a potência das conversas específicas que tivemos nesses dias, muito contaminadas por um autor caribenho como Glissant e, principalmente, pela matéria sensível dos filmes de Grace Passô, André Novais Oliveira, Isael e Sueli Maxakali, Athi-Patra Ruga, Morgan Quaintance e do Sudanese Film Group, principalmente. Essa operação textual me lembra alguns problemas de outros dos filmes que vimos no Flaherty – como os de Denise Ferreira da Silva e Arjuna Newman ou Garrett Bradley – que é uma sobrevalorização da retórica em relação às imagens e aos sons. Acho que Janaína nos ofereceu uma oportunidade riquíssima de descentramento, de deixar um pouco de lado o Norte do mundo como parâmetro para as conversas. E quando leio essas referências aqui, sinto um recentramento.

– Isso me lembra, por exemplo, uma intervenção no chat de alguém que se surpreendeu com o Human Being, filme de 1989 do Sudanese Film Group, dizendo que a linguagem do filme era “avançada”. Esse tipo de elogio deixa entrever duas coisas: um pressuposto colonial do parâmetro de avaliação (por que se surpreender com a sofisticação de um filme dos mesmos realizadores de obras-primas anteriores, que já tinham sido exibidas, como Jamal (1981) e Jagdpartie?) e uma dificuldade de lidar com a imanência dessas obras. Isso ficou muito claro numa pergunta que foi feita aos realizadores desse mesmo filme, indagando sobre como tinha sido a relação deles com a comunidade filmada, ao que o Ibrahim Shaddad belamente respondeu: “Qual comunidade?”. Esse tipo de pressuposto – de que qualquer filme africano ou sulamericano (mesmo um tão abertamente experimental como Human Being) tenha necessariamente de partir de uma ética do documentário, de uma relação com uma comunidade pré-existente, enfim – me parece ter a ver com o que André Novais Oliveira falou no primeiro debate em que esteve presente, sobre o direito à fabulação, citando um texto do Juliano. É como se, ao convocar tantas vezes esses autores ou esses parâmetros europeus, estivéssemos refazendo – “agora por nós mesmos” – uma divisão do trabalho simbólico colonial que atua em todos os lugares, dos festivais à crítica de arte, como pensa uma autora como Beatriz Sarlo. Essa divisão funciona assim: com “eles”, os do Norte, a produção das ideias, a gramática do cinema, a liberdade de criação sem amarras; “conosco”, os do Sul, a possibilidade de criar limitada por uma derivação dessas ideias e dessa gramática, e por outro lado um “cativeiro estético” – como gosta de dizer a Cíntia Guedes – que nos condena sempre às mesmas formas e procedimentos que esperam de nós, e que sempre tem a ver com o que temos a oferecer em termos de um suplemento de realidade subdesenvolvida. Vocês não acham curioso que as perguntas para os artistas do Sul muitas vezes manifestem esse desejo de saber mais sobre o contexto, a vivência, a realidade deles, enquanto que para os do Norte essa questão nunca se coloca?

– Acho que essa crítica ao cânone eurocêntrico é super válida, mas também não acho que seja possível apagar as referências do norte, obliterando qualquer influência. É claro que não devemos ver o norte como bússola de forma reverente, mas acho que inverter o argumento em prol de um pensamento do “puro” sul é uma falácia. Essa ideia estratificada de um sul x norte, margem x centro, é também arbitrária – como você mesmo disse: uma “comunidade fictícia pré-existente” é bastante questionável enquanto unidade. Boaventura de Sousa Santos (um português, desculpe, novamente cito o europeu, rs) lembra que há ilhas de norte que operam dentro do sul. Por exemplo: as elites locais econômicas que são herdeiras do sistema colonialista escravocrata, mas ainda assim são compostas por habitantes locais. Muitos autores do “sul global”, como o Achille Mbembe, vão se apropriar de Kant e do Foucault para descolonizar o pensamento deles a partir da sua própria lógica interna, desconstruindo a coisa depois de “dominá-las”, corroendo como que de dentro. Li um texto do Mbembe recentemente sobre “o que fazer com as estátuas coloniais” (que foi recolocado nas redes por conta do debate sobre o fogo da estátua do Borba Gato). Nesse texto, ele defende que as estátuas não sejam destruídas, mas levadas para um espaço outro, como uma espécie de museu do colonialismo, onde seriam expostas e contextualizadas historicamente com um olhar decolonial. Então a saída não seria por uma via negativa-iconoclasta, mas re-elaborando simbolicamente por cima do que já existe.

– Mas nesse caso do Mbembe a que você se refere ele sugere que as estátuas sejam retiradas do espaço público cotidiano, porque manter essas estátuas no lugar e da forma que foram colocadas é reproduzir a violência colonial. As estátuas são uma extensão escultural do terror racial, a expressão espetacular do poder de destruição que, do princípio ao fim, moveu o projeto colonial. Só um parêntesis.

– Ia dizer também que o Viveiros de Castro vai usar os conceitos de Deleuze para pensar as mitologias ameríndias, e elabora daí um conceito novo do perspectivismo a partir desse intercâmbio com a filosofia francesa. E também um dos principais defensores da não-interpretação, da descrição e da imanência ao abordar o cinema era justamente o Deleuze. Mas é claro que nenhum deles está blindado de críticas… E o Fanon também fala dessa contradição interna, que ele vai chamar de “complexo de inferioridade” (do ponto de vista psicanalítico), que inclusive está citado no filme do Isaac Julien, Frantz Fanon: Black Skin White Mask (1995), que vimos no Flaherty. Ele cita na própria biografia, como ele acreditava que por ter tido toda a educação formal de elite francesa e ter servido no exército da França, que ele seria aceito como um igual quando se muda para Paris. Qual a surpresa dele quando percebe que o lema da “igualdade, fraternidade e liberdade” não se aplicava a ele por conta da cor de sua pele e sua origem da Martinica. Então é uma contradição terrível que acho que todos provenientes do “sul global” têm que eventualmente lidar – essa angústia da influência.

– Me lembrei agora do debate com o diretor Ibrahim Shaddad do Sudanese Film Group em que foi dito que toda a formação dele de cinema se deu na Konrad Wolf Film University of Babelsberg na Alemanha. Me lembro nitidamente do incômodo dele quando perguntaram quais as influências cinematográficas dele, ele responder de má vontade que gostava de Bergman, e que sim, tinha visto esses filmes do cânone ocidental (como se precisasse “prestar contas” para a plateia dessa “dívida”). Mas, por outro lado, me lembro também de uma fala do Ailton Krenak que vi num congresso da Abralic em 2018 quando ele falou da importância de aprender a ler aos 17 anos e poder ler a Bíblia para entender como aquilo foi usado como arma contra o seu povo…E as lideranças indígenas são as que melhores sacam de leis, PLs e artigos da constituição. Então vejo a leitura e apropriação das “ferramentas do norte” também como formas de estratégias de guerra e sobrevivência.

– Acho insuportável como essa vontade de saber biográfica sempre vem com muita intensidade nos filmes do André. É um sentimento “do norte” muito presente aqui também. Acho que ele se referiu a uma fala minha, onde tentei fazer uma reação a isso. No fundo, parece muito difícil de imaginar que um homem negro possa só ser inteligente, que pense método, técnica, tenha constituído certo repertório e o aplique. O argumento essencialista reforça isso. Ela Volta na Quinta (2014) é um filme que é resultado de um conjunto de técnicas de produção de cena bastante variado e sofisticado. Quem não é branco tá condenado ao determinismo do ambiente, da biografia, pra sempre, é um inferno. Por isso, o “essencialismo tático” me parece um tiro no pé. A ideia de força da natureza quase nunca é dita sobre pessoas brancas, né? Esse imaginário é racista, não tem outra palavra não. É uma tara a partir da fantasia do natural, do não mediado…

– Yãmiyhex é um filme e tanto pra falar de opacidade. Aqueles planos que filmam as ocas de fora, insistentes, que ficam nos dizendo No trespass. Vendo no Flaherty o filme novo da Sueli, Encontro de Pajés (2021), me caiu a ficha de que eles fazem filmes musicais. No sentido da tradição mesmo do que costumamos chamar assim. Você tá lá, com seu pessoal, construindo uma cancela pros brancos não passarem e não trazerem suas doenças e, de repente, alguém começa a cantar e todo mundo canta, a coisa pára, e um outro estado se instala. É belíssimo. Estruturalmente, é igual aos americanos dos anos 40 e 50. Me tocou muito perceber isso. E sim, os filmes do André têm um ouvido da porra, é tudo sonoro. Acho que também é por isso que as pessoas estrangeiras curtiram, sabe? Isso passa, “o-passidade”. Não tem jeito. Isso também existia em alguns filmes estrangeiros exibidos também, não acha? Esse tipo de questão…

Miss Congo (Athi-Patra Ruga, 2007)

– Totalmente. Eu diria que especialmente nos do Sudanese Film Group e nos de Athi-Patra Ruga. Aliás, a oportunidade de descobrir filmes como Jamal, Hunting Party e Human Being é algo que vou agradecer à Janaína pelo resto da vida. São filmes que te fazem reorganizar a história do cinema inteira, imediatamente. O trabalho sonoro nos filmes do Sudanese Film Group é algo absolutamente impressionante. O som do Jamal, pra mim, se relaciona com a ideia de opacidade de um jeito muito particular. Você ouve aquele som, que é extremamente incômodo e, ao mesmo tempo, por uma via totalmente inesperada, produz empatia. Você fica inicialmente tentando decifrar o que é o filme em termos alegóricos, até que você se entrega a essa experiência radical, sonora, visual, que desloca a percepção de um jeito avassalador. E penso, também, num filme como Miss Congo (2007), de Athi-Patra Ruga. Vemos aquele corpo entre lugares comuns, numa espécie de happening, e de repente escutamos aquele grito insistente que parece reorganizar toda a experiência do espaço. Eu não entendo o que quer dizer aquele grito, mas ele certamente vai ressoar em mim por muito tempo.

– O grito vai se separando do corpo, né? Vai se autonomizando. É lindo…

– E nisso, acho que esses filmes são o oposto de alguns outros trabalhos que me parecem apontar numa direção que tem muito mais a ver com uma obsessão pelo discurso, pela palavra, por transformar cada imagem em uma ideia, até o ponto em que só o que parece interessar é a ideia fundadora daquela imagem. Estou falando sobretudo dos filmes de Denise Ferreira da Silva e Arjuna Newman, mas também percebo traços desse tipo de composição em Isaac Julien ou Garrett Bradley.

– Também sinto isso em alguns trabalhos que você citou aí em cima. Mas é isso, é o desafio do nosso tempo, necroliberalismo da informação. São filmes em que a experiência acaba batendo no teto do discurso. Apesar de bem diferentes entre si. Lembro no filme da Bradley, onde a protagonista-título se chama Alone (2017). Isso é muito forte. O símbolo e a metáfora “voltaram” com tudo.

– Pois é, acho importante pensarmos essas categorias da metáfora e do simbólico, que estão em alta atualmente. Às vezes vejo as pessoas falando “isso é muito simbólico”, como se ser simbólico fosse em si um elogio. É como se fosse uma boa forma para falar de coisas que realmente importam, que não são banais. Nesse sentido, sinto que o símbolo e a metáfora querem ocupar o espaço do “não discursivo” com um hiper discursivo, só que disfarçado. Essas dimensões da metáfora e do simbólico me parecem problemáticas porque na maior parte das vezes elas funcionam como elementos substitutivos, não aditivos. Ou seja, a imagem em sua materialidade e concretude muitas vezes pouco importa, o que realmente está em questão é o que ela pode significar em seus simbolismos e representações. Sinto que há um esvaziamento da imagem e da experiência numa hierarquização em que os sentidos e as intenções estão no topo.

– Falando dos filmes de Denise e Arjuna, Garrett Bradley e Isaac Julien, as intenções gritam em tudo. Há um certo barroquismo, um estilo que é bem presente, entretanto, o que é discursivo nos afeta com clara hierarquia. E assim, gosto muito do trabalho teórico da Denise, viajei pra SP de busão só pra fazer um curso com ela, foi bem foda, porém, nos filmes, é muito curioso como a coisa se dá. O filme até para, entra tela preta, pra ela falar aquelas falas, que em si são muito interessantes, mas têm relação muito fraca com os outros elementos. Produz um efeito de autorreverência que, ligada àquelas imagens, cria uma espécie de esterilidade generalizada, uma certa morte térmica da expressão porque é uma desativação das relações.

– Cara, quando a gente pega o Jamal como patamar, a coisa fica complicada demais. É sem dúvida um dos grandes filmes da história do cinema. É um filme da importância de, digamos assim, um Touki Bouki (Djibril Diop Mambéty, 1973), ou algo dessa magnitude. O problema é que em dois minutos ele já realizou mais associações de sentido do que somando todos os quatro filmes de Denise e Arjuna que vimos. Porque a associação não é discursiva. A montagem tem uma vitalidade desconcertante. E o ruído do camelo é o carro de boi do Vidas Secas (Nelson Pereira dos Santos, 1963), né? Aquilo tem um parentesco. Vamos fazer esse vídeo ensaio…. Mas a gente falava outro dia o seguinte: nos filmes dos Maxakali, cada coisa são muitas coisas. Nos ensaios de Arjuna/Denise, muitas coisas são uma só. Acho que isso tem a ver também com som, sabe? Temos um problema sério aqui, histórico: opções de som para filmes não convencionais. É um problema sério e que toca forte nesses artistas que você elencou e produz uma distinção importante nos programas do seminário. Acho que todos os filmes que me parecem os mais fortes têm algo de rico no som, pensam o som como camada expressiva. Em outra porção, a coisa parece estável demais. Fizemos até um trocadilho no zap: “why som serious?”. É aquelas texturas, aquele sintetizador, aquele eletrônico genérico. É mesmo uma pena. Teve um filme que confesso que mutei e a experiência ficou bem melhor. Som não dá pra ver né?

– Seguindo nessa questão do som, fico pensando no último trabalho da Grace, que foi criado tendo apenas a banda sonora, e depois a imagem foi acrescida (especialmente para o Flaherty). Me parece que aqui fica muito evidente essa questão da redundância que apareceu em tantos filmes e que vocês já falaram aqui. A instalação sonora Ficções Sônicas dialoga bastante, na própria proposição estética, com o Vaga Carne. Vozes e sons que vão se infiltrando em nosso ser, em nossa própria carne, que não está presa a uma linguagem definida, a um eu que centraliza e organiza tudo. A ficção sônica também se descola da centralidade da imagem e suas formas de representação, ainda mais com o texto do Artaud, que incorpora a matéria de que fala na forma, na textura da escrita. As imagens acrescidas à instalação sonora a meu ver são a negação do próprio trabalho. Se podemos dizer que a multiplicidade é a subtração da unidade, aqui o gesto parece o contrário, uma saturação que chapa as diferenças. No America (2019) de Garrett Bradley acontece o mesmo: a construção do épico da nação negra americana já está lá na própria dimensão pictórica, na composição das imagens, em seu ralentar, no diálogo e recomposição dos arquivos, na escolha do preto e branco. E aí vem a banda sonora cheia de graves e reverbs para adicionar mais uma camada épica ao épico, sublinhar a intenção. Essas redundâncias parecem não deixar muito espaço pra gente entrar.

Alone (Garrett Bradley, 2017)

– Super concordo! Acho que depois de tantos filmes comecei a pensar numa distinção entre diferentes tipos de opacidade. Diria que há uma opacidade que trabalha na narrativa e outra prioriza a dimensão visual. A narrativa seria mais centrada no conteúdo, de filmes que não estão dentro desse esquema clássico historinha com começo, meio e fim, e moral da história. Já a visual seria pensada em termos de abstração da imagem, ou quebra de uma representação pictórica (o O Segundo Antes da Coragem da Grace me lembrou muito os quadros do Francis Bacon e do Iberê Camargo, é um bom exemplo dessa desfiguração). Vi muitos filmes no seminário que, confesso, me incomodaram por ter quase uma estética de moda, publicidade ou jornalística: os filmes Alone e AKA (2019) da Garret Bradley e os filmes do Isaac Julien, Fantôme Créole (2005), True North (2004), Fantôme Afrique (2005) e Paradise Omeros (2002), são alguns exemplos, com cartilhas de boas intenções e com uma trilha sonora “conceitual” (why som serious?) constante ao fundo. Mais do que afetar os meus sentidos, me anestesiaram. Então não vi propriamente opacidade nesses filmes, mesmo sendo rarefeitos em termos de narrativa, eles tinham uma estética super transparente e higienizada. Sem zona de indeterminação fica difícil acrescentar ou tecer qualquer consideração junto com o autor. A impressão é como se o diretor já se converteu ele mesmo no próprio curador e crítico de si e não oferece tanto espaço de dissenso para uma troca dialógica com outros, criando uma recepção muito controlada da própria obra. São filmes que não me convidaram tanto para pensar junto. Acho que essas formas discrepantes de encarar a discursividade podem ser exemplificadas pela diferença entre as aproximações da Grace Passô e da Deanna Bowen sobre os temas de identidade, raça e ancestralidade.

– Lembrei aqui de um momento do seminário em que isso apareceu de forma cristalina, no debate sobre o primeiro filme exibido no Flaherty da realizadora palestina Larissa Sansour, In Vitro (2019). Já mais para o fim da discussão, alguém de nome árabe fez uma intervenção mais abertamente crítica no chat, questionando a romantização das imagens do filme. Ao que a Larissa respondeu: “acho que o filme está sendo mal lido (misread)”. Eu cheguei até a comentar no chat que achava que deveríamos pensar sobre essa resposta. A possibilidade de que um filme possa ser misread pressupõe uma leitura boa, correta, programada (nesse caso, pelas intenções da autora). Isso me parece ser o oposto diametral de um pensamento da opacidade. Se você faz uma obra de arte para que ela seja “bem” lida, o circuito se fecha muito rapidamente, não tem graça nenhuma pra ninguém. A única leitura que importa é a má leitura.

– Minha hipótese é que isso é uma questão de modulação. De gradação, na verdade. É como se a intenção engrandecedora fosse um pouco ansiosa, tem que brilhar rápido, tem que ser grande rápido, aí vem com tudo, sem construir os degraus. E isso é uma questão de alteridade, porque degrau é para o outro, né? De certa forma, o programa teve muito sucesso em mostrar e exibir contradições centrais, que precisam mesmo ser pensadas. Ficções Sônicas é um belíssimo exemplo. Concordo perfeitamente contigo. Porque quando dizemos que as imagens são “publicitárias” (que é algo que poderíamos dizer dos trabalhos da Bradley, alguma coisa do Julien e sem dúvida da Larissa Sansour), nós estamos falando das relações entre as coisas, e também de algo sobre temporalidade. Publicidade é efeito rápido e prevalência da intenção, do briefing. No fundo, é uma relação substitutiva. A gente começa a ver o briefing em todo lugar, só que aqui, no caso, o briefing são outras coisas, o antirracismo na “América”, o imaginário sobre a Palestina, e os grandes heróis negros. A publicidade, acima de tudo, não pode esperar. O sentido não pode esperar. This is America. Isso tem tudo a ver com opacidade, né? Penso que a publicidade não pode suportar a dimensão inerente de ruído da opacidade A propaganda age no sentido de minimizar o incerto, e maximizar a mensagem. E o som tem uma relação direta com o sentido e com a apreensão, principalmente…

– Os filmes do Morgan Quaintance são uma bela resposta “do Norte” a esse problema.

– Sim. O primeiro filme que vimos dele, Missing Time (2019) tem essa coisa de justapor materiais de arquivo aparentemente muito diferentes, cujas conexões não são nada evidentes. Então o filme mantém certo mistério da conexão, obriga a gente a encontrar um lugar naquele universo que ele está construindo a partir da justaposição. É uma sensação muito forte de se perder no processo, um interesse pela deriva do espectador que está totalmente ausente desses outros trabalhos.

– Acho que o problema do som se associa ao problema da montagem. Se você compara o Miss Congo de Athi-Patra Ruga com o Soot Breath/Corpus Infinitum (2020) de Denise Ferreira da Silva e Arjuna Newman isso é muito perceptível. No filme de Athi-Patra Ruga, o grito corta o espaço, torna-o ainda mais material. Nesse filme de Denise e Arjuna, há uma figuração de vários desastres ao redor do mundo, mas nada, absolutamente nada, dói. Os desastres se equivalem porque um plano pode durar cinco segundos ou um minuto, que não vai fazer a menor diferença, pois só o que importa é a ideia que governa a figuração. Por outro lado, tem esse som que vai criando uma espécie de camada única hiper-saturada, que, no limite, o que faz é igualar qualquer imagem com qualquer outra imagem. A fala de uma pessoa que conta de uma facada que levou pode se associar a um pianinho e a um som industrial, e fica por isso mesmo. É até difícil falar de montagem para um filme assim, porque montagem é em primeiro lugar duração, ritmo, né? Nos filmes do Sudanese Film Group, cada duração importa. O corte desloca a experiência, cria tensão, produz energia. No Hunting Party, cada machadada no tronco dispara uma tensão que se espalha por tudo – o corpo, o desejo sexual, o racismo, a iminência da morte, tudo atravessa, esquenta e multiplica, ao invés de condensar, esfriar e igualar. Acho que essa energia morna fica muito evidente no filme do Isaac Julien com quatro telas, o Fantôme Créole (2005). Ainda mais online, pois por mais que a sua televisão seja gigantesca ou você tenha um projetor, vai ser muito difícil produzir algo na relação entre aquelas telas mínimas, ainda mais quando o som é tão pouco expressivo. Só o que sobra é a ideia. Não por acaso as conversas pós-sessão dos filmes de Isaac Julien e Denise Ferreira da Silva/Arjuna Newman eram, fundamentalmente, conversas sobre ideias, sobre o que estava por trás dos filmes, sobre as pesquisas teóricas dos autores, e quase nunca sobre os filmes.

– Quase nunca sobre a relação, pra usar um termo do Glissant. É na relação que mora a questão.

– Ótimo exemplo, essa coisa da montagem. Esse programa com trabalhos multitela do Julien foi realmente um exemplo dessa relação de um continuum e de uma equivalência geral. Inclusive de imagens muito bonitas, plásticas, belíssimas, dá vontade de emoldurar. O cinema dele tem essa coisa forte com o pictórico. Porém, o efeito é de equivalência, meio um jackpot, que o som reforça. Inclusive, eram alguns filmes colocados na sequência e gerava uma dúvida se era um só. Podia ser uma boa dúvida, mas acho que não foi. Acho que isso é muito o neoliberalismo, essa presença de um contínuo ligado a uma pluralidade de diferenças inofensivas. Nos filmes sudaneses, é tudo interrupção, as coisas se interpenetram, uma atmosfera de violência sensorial constante. Não tem nem individualidade direito. Nesse sentido, são o oposto da estética neoliberal: é multiplicidade ativa, ruidosa, associativa e coletivizante. Acho que é isso o que vivemos hoje, essa tentativa de produzir essa impressão da “convivência entre diferenças” mas sem atritos, “diversidade”. Aí o contínuo do capitalismo (ou do desenho de som) sempre prevalece. Me chamou atenção, por exemplo, quando a conversa entre Tina Campt e a Garrett Bradley foi programada como um filme, gravada, lá na mesma janela. E lembro da casa delas ao fundo, a paleta de cores de cada uma (já que era filme), uma unidade asfixiante…

– Uma continuidade perfeita…

– Sim. E ali, há a cena do discurso, que nos rituais das artes visuais é muito forte e central na produção de valor. Essa porosidade das artes visuais com a academia vem também bastante daí. Como trânsito, acho maravilhoso, mas acho que tem nisso uma forte relação com controle da experiência através da discursivização, onde o trabalho plástico é um complemento. Porque numa imagem, num som, sempre se pode achar algo um pouco diferente. Você vê os filmes do Ibrahim Shaddad, eles são acima de tudo “perigosos”. Cheios de associações desobedientes. São contra e a favor “da luta” (se “a luta” é consenso). O camelo é comparado ao humano, mas não é tudo igual, né? Enfim, acho que o galerista do mercado financeiro se interessa bem menos por uma coisa que não produza um suplemento discursivo pra ele. E a moeda agora nesse campo é a “social justice” em sua mais límpida literalidade, permeada pelo vocabulário e imaginário da autoajuda. Então, tivemos este extremo contraste no programa, que me pareceu muito fértil. Porque serviu para delinear bem este tipo de problema que está hoje em todo lado, em todas as dimensões da vida cotidiana, inclusive. É “o” problema do nosso tempo.

– Sim, essas variações foram bastante eloquentes na relação. É impressionante como no programa os filmes “pobres” trouxeram uma dimensão muito mais encarnada nas suas proposições estéticas. Uma urgência, uma dor, uma pulsação disruptiva. O Morgan Quaintance verbalizou de forma bastante interessante essas questões. Fez questão de indicar inclusive o livro “Privatizing Culture” para pensar essa íntima relação dos trabalhos com o mercado de arte e de como isso vai afetando as proposições em diversos níveis ético-estéticos. Ele foi bastante enfático em uma certa negação do desejo de ser centro e uma convocação das margens como o lugar em que ele sempre esteve e onde deseja permanecer.

– É curioso, mas o Morgan Quaintance acabou de receber pela segunda vez consecutiva o Prêmio de melhor curta-metragem experimental aqui no festival Vila do Conde em Portugal, que acompanhei nas últimas duas semanas. E é justamente um prêmio dado por uma galeria de arte, o Centro de Arte Oliva. O que mostra que ele está bastante inserido dentro do circuito de arte europeu e que o discurso de “estar à margem” agrada bastante o mercado também.

– Olha, mas acho que o trabalho dele, o que eu vi, sustenta bem essa ideia da margem. Não acho que nenhum dos trabalhos dele no seminário compre esse imaginário. Tem sempre um desespero, uma desmedida, um desencaixe. Sustenta materialmente e eticamente, eu acho. Acho que a separação é importante. Porque o contínuo automático entre uma coisa e outra é justamente o que é o nó.

– É essa a contradição eterna da apropriação pelo capital, não dá muito pra fugir dela, tem que aprender a jogar com isso, dançar essa dança mortal.

– O projeto do status quo das galerias de arte – elas que são, em grande parte, um braço do mercado financeiro – demanda meio que “esforços publicitários”. Esse é um projeto de substituição do centro, sem dúvida. Não é de dissolução da estrutura do centro. Concordo que o trabalho de Morgan não me parece se deixar levar por essa coisa. Enfim, por isso acho pouco fértil qualquer expressão que termine com “centrismo”, ou a insistência nessa ideia de “protagonismo”, sabe? Acho que nossa imaginação política pode trabalhar mais. Porque isso não é distante do imaginário da autoajuda, da liderança, dos reis e rainhas, sabe? No caso das questões de raça, isso está posto, imaginado e estruturado. Os filmes de Athi-Patra tem isso muito em mente também. A textura da imagem é uma coisa estética e ética. Aí você pega a Larissa Sansour e… Caramba. É como se não houvesse uma reflexão realmente pra valer sobre ética da imagem, sobre a plasticidade e sobre os modos de produção, é muito curioso. Isso não é incomum no campo das artes visuais, acho. Esse desassombro com a herança da moda e da publicidade me impressiona, me repele e me fascina ao mesmo tempo. Mas é muito difícil não perceber. E a moda e a publicidade turbinam os sonhos do imaginário do capitalismo, isto é, do centro. A Garrett Bradley tá com uma série na Netflix sobre essa tenista Naomi Osaka. Acho que tem um contínuo entre todas essas dimensões. Mas aí vemos Athi-Patra: aqueles gritos, o corpo parado em cima no lixo em Miss Congo, ou a subida na igreja, a escalada em ... After He Left (2008), ironizando materialmente uma ideia de ascensão no templo da ascensão, aquilo é muito difícil de sintetizar em termos discursivos. Essa irredutibilidade, essa resistência me parece o ponto. Não gosto muito da ideia de resistência como ela é comumente usada, mas acho interessante pensar os sentidos que resistem ao discurso, que mantêm uma certa pirraça em se sintetizar. Há algo hoje a se pensar na relação entre intensidade expressiva e discurso. Opacidade, enfim…


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