Pinta, de Jorge Alencar (Brasil, 2013)

dezembro 1, 2013 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Juliano Gomes

pinta

Voracidade e transparência
por Juliano Gomes

Não é incomum em primeiros longas metragens haver uma espécie de grande pressão da história do cinema, ou tentáculos de uma cinefilia que busca, pelos mais diversos caminhos, aceitação. A história, em sua porção conservacionista, é sempre um abrigo. Pinta, a estreia de Jorge Alencar no formato, parece afinal dobrar esta tendência, e invertê-la. Há a presença bastante nítida e reiterada de uma tradição (o filme se intitula uma “coreochanchada extemporânea”) mas ao mesmo tempo, uma atualização que parece ter encontrado um espaço relativamente inocupado e comum, compartilhado e ímpar. A força anacrônica de Pinta, que evoca desde Os Residentes (2011), Conceição (2008), Fim da Picada (2009), Doce Amianto (2013) até O que se move (2012), é justamente uma potência de dar uma leitura estética do presente, uma proposição, que se torna absolutamente intensa na medida em que o filme realiza essa resposta com seu funcionamento interno.

Pinta parece, a princípio, um filme de números. Cenas isoladas vão se sucedendo, com clara intenção coreográfica, como atrações que se bastam em si, cujo valor de conjunto seria somente o da acumulação e menos de uma relação interna. Porém, talvez sua força mais notável seja justamente seu esforço de construção de um universo coerente, vivo, e principalmente contínuo. Trata-se de um triunfo da ideia de continuidade, de sequencialidade. É muito notável como o esforço interno das cenas de modulação (todas têm clara ênfase dramatúrgica, micro conflitos do corpo no espaço) mas também dos acontecimentos mesmo, do “sentido da trama”, da costura. Há uma insistência do retorno: espaços que retornam, personagens que seguem do exato ponto de onde saíram na última cena, como por exemplo a dançarina negra, que tem um claro arco dramatúrgico, de redenção e queda, construído em momentos muito felizes da relação dos corpos com os espaços e os tempos do filme. As ligações são também de naturezas variadas, mas são sempre grifadas. Há uma marcante presença de raccords espaciais, mas também cortes de um pênis para uma cobra, de da mesma cobra para um vestido com estampa de onça. A continuidade pode ser plástica, dramatúrgica, cinética, espacial ou a combinação destas.

É notável a insistência nesta uniformidade das ligações por semelhança, que ganha relevo justamente pela opção clara pelas tintas icônicas, extáticas, na sua combinação com um certo desejo de fluência. Assim, o filme realiza o que talvez seja um dos maiores fetiches do cinema contemporâneo: fazer um “autêntico exploitation” (quem não quer fazer um filme de terror hoje?). Mesmo com suas variações de precisão na modulação do tom (em sua porção metalinguística, principalmente), há uma força de irrreverência estrutural em relação a certos procedimentos que de fato o torna um importante feito neste campo da busca de uma proposição narrativa e não naturalista.

O papel da voz em off é dúbio. Ao mesmo tempo em que é ela, em sua sequência de créditos, que mostra cenas do próximo capítulo que aparecerão no filme, algo que já funciona nesse ímpeto de criação de elos internos, ela parece se encantar demasiado com enunciar proposições estéticas: “difuso”,” periférico”, e toda atenção à questão do “enigma” e mesmo da “racionalidade”. Esta última porção de autoanálise é colocada na boca de um menino sereio, com uma bandeira do brasil atrás e mapas. A escolha inteligente de encenação (que já explicita com precisão um certo campo de intenções: saber; pedagogia; logos; ideia de nação; exuberância sexual transgênero e transespécie) parece diminuir de voltagem quando cai, mesmo que ironicamente, na cilada do inimigo. Pinta é, felizmente, um filme racional e cristalino, que reatualiza essas duas ideias fora de uma chave moralizante. Todo seu desejo de método parece melhor explorado na profusão especular das cenas, como na sequência inicial da cueca salpicada de quadradinhos de espelho que reflete luz pra todos os lados. Sua força reflexiva é direta, se dá em ato, internamente.

Como o título sutilmente indica, trata-se de uma obra absolutamente pictórica. A opção pelo tableau – como na cena musical absolutamente notável da piscina vazia – parece muito acertada na sua força de variação interna, que se esgota em muitos poucos casos. Há quase sempre transformação, reiteração, mas em outro ponto: às vezes permanece o elemento mas varia o ponto de vista, a dominância da chave perceptiva; às vezes, um fait diver, uma coreografia ou uma profusão de cores, como na cena da senhora cozinhando, em suas múltiplas e razoavelmente discretas variações de luz, até a virada pra dentro da travessa e sua exploração das gemas se tornando só amarelo.

A força do filme está em justamente implicar que seu material expressivo seja sempre objeto de mudança gradual, e que o tipo de mudança seja foco também de variação. E neste sentido, sim, trata-se de um filme de inventário, sempre focado no artesanato da cenas, nas sua distribuição nos espaços, na sua exploração da profundidade de campo e dos raccords espaciais, reatualizando a mise en scène de um Bang Bang (1971) em um regime de imagem não assim tão distante. Trata-se de um belo exemplo de um desejo voraz de ficção que parece, em seu aparente despropósito, avançar em terrenos em plena disputa hoje (cinema de gênero, força icônica, filiação ao Cinema Marginal, recuperação do sexo e do grotesco, do “boçal”) por um atalho que sem dúvida merece (pois suscita) atenção.

Share Button