48o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro – Dia 4

setembro 22, 2015 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Marcelo Miranda

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por Marcelo Miranda 

Curta 1: Quintal (MG), de André Novais Oliveira

O gesto que relaciona Ela Volta na Quinta (2014), longa-metragem de André Novais Oliveira, a este seu curta-metragem, realizado posteriormente, é o de filmar os pais do diretor (Norberto e Zezé) dentro de casa, como personagens de si mesmos, e daí adiante permitir a eles e aos filmes caminharem por conta própria. Há muito de controle no encadeamento das cenas dos dois trabalhos, só que esse controle é o da contenção, da essencialidade daquilo que se escolhe filmar, do olhar cuidadoso para o espaço e para os corpos, capturando o potencial de afeto, humor e amor que se desprende da relação com a câmera e o ambiente. Quintal, na brevidade de um curta-metragem de 20 minutos, tem isso com precisão desconcertante, por justamente se imbuir de um conceito sem fazer com que o filme tenha, ele mesmo, a materialização desse conceito.

O sobrenatural a invadir “mais um dia na vida de um casal de idosos na periferia” (como define a sinopse, também um primor de contenção) surge em cena exatamente como todo o resto se apresenta. Pintar as unhas, descascar uma laranja, malhar na academia, assistir a um vídeo pornô ou entrar num portal interdimensional em forma de vagina são atividades num mesmo nível de apreensão. O que torna a experiência de Quintal realmente perturbadora é que todas essas ações estejam sendo realizadas pelo tal “casal de idosos na periferia”, enxergados pelo filme na integridade e dignidade de um companheirismo que extrapola os sentidos não-naturalistas da encenação. O humor vem desse desarranjo entre aquilo que se espera ver de personagens tal como apresentados em cena (pacatos, lentos, num eterno “à espera”) e aquilo que o filme lhes propõe.

Quintal tem a força hipnótica do cinema de André Novais (também perceptível em Ela Volta na Quinta e em outros dois curtas, Fantasmas e Pouco Mais de um Mês), que vem de permitir às cenas existirem como formas de mundo e formas no mundo, como respiros da vivência e das experiências. A sagacidade da direção de André é conseguir equilibrar todos estes estímulos (filmar a própria família certamente é o maior deles, para mal e para bem) e transformá-los em puro prazer e gozo, numa relação de amplitude e generosidade que se expande para além da tela. É um cinema muito vivo e muito forte, nascido do comezinho e do rodapé diário, encantador por perceber esse rodapé como algo transcendente justamente por ser simples e comum.

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Curta 2: Afonso é uma Brazza (DF), de Naji Sidki e James Gama

O que mais chama atenção neste média-metragem sobre o mítico cineasta-bombeiro Afonso Brazza (1955-2003) é a energia das cenas de seus filmes apresentadas ao longo do documentário. Em contraponto à propalada falta de recursos do produtor, diretor e ator brasiliense, sente-se o vigor e a paixão de um profissional, vislumbrado por uma montagem que valoriza alguns momentos de sua relação com o trabalho sem fazer de Brazza um mito ou uma caricatura. É sempre cômodo “brincar” com personas peculiares do meio artístico (que o diga todo o imaginário em torno de José Mojica Marins); desafiador é extrair das peculiaridades as verdadeiras formas de arte e de invenção, tal como Jairo Ferreira fazia através da crítica e também de seus filmes em Super-8 no contato com a produção da Boca do Lixo paulistana. Afonso é uma Brazza é tanto homenagem e tributo quanto constatação de um tipo e de um talento, generosamente corporificado pelas relações entre as imagens de bastidores e as cenas completas dos filmes de Brazza, num trabalho de temporalidade que dá vigor às trocas de registro de captação e mesmo às entrevistas realizadas um tanto no improviso. É um filme no ritmo de seu protagonista, sem nostalgia barata, fazendo da alegria, da persistência e do fascínio o caminho para a celebração de uma memória. 

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Longa: Big Jato (PE), de Cláudio Assis

No cinema de Cláudio Assis, a câmera alta, a perscrutar os espaços, olhando os corpos embaixo como se numa radiografia da podridão humana, tornou-se gramática reconhecível em um curta como Texas Hotel (1999) e seus três longas-metragens anteriores (Amarelo Manga, Baixio das Bestas e Febre do Rato). Os plongées de Assis – nesses casos, arquitetados pela fotografia de Walter Carvalho – sempre tinham algo de fetichista na maneira como olhavam os personagens, criando as fissuras ao mesmo tempo mais estimulantes e problemáticas dos filmes (outro recurso de expressionismo duvidável era o uso de sombras nas cenas de violência). Em Big Jato, a câmera alta – agora assinada por Marcelo Durst – volta a ser usada, desta vez muito mais como referência autorista da particularidade do olhar de Assis do que elemento de organicidade dos planos ou da estrutura de narração. Big Jato tem o estranhíssimo sentido de negar e reforçar tudo que se conhece de seu realizador. O filme-família de Cláudio Assis se esforça a ser, em essência, um filme de Cláudio Assis “diferente”, mas ainda imerso no caldeirão reconhecível de seus trabalhos.

O maior problema disso (ao menos neste nosso primeiro contato com o filme) parece estar na frouxidão das cenas, no esquematismo um tanto automático que impregna a cadência dos planos e na forma como eles se apresentam quanto mais o enredo avança. É certamente o filme de maior abertura e facilidade em toda a obra de Assis, muito porque ele se fixa na trajetória de um protagonista inocente (o menino Xico) e nas interações com ao menos três figuras de referência na formação: o pai, bruto e alcoólatra; o tio, progressista e utópico; e o “príncipe” errante e romântico, fabular e poético. Essa trajetória, cristalina como apresentação dentro do filme, é incerta na dramaturgia. Quer-se convencer de que Xico é um aspirante a poeta, mas isso não está dado dentro do plano ou da forma; a poesia em cena é a poesia informativa, de dados externos que o filme não constrói nem assume para si, a não ser no grito (nunca há dúvidas sobre nada, pela reiteração constante de tudo). Em Febre do Rato, Zizo era poeta de fato e de ação: distribuir seus panfletos era o tipo de movimento que fazia o filme caminhar e impregnava a imagem de uma inquietação nunca devidamente resolvida. Big Jato quer-se fábula da juventude na errância do garoto, entre a merda das fossas limpas pelo pai e da música e dos delírios do tio, do fetiche com a nova garota da cidade e dos relatos de paixão do “doido da cidade” – só que tudo isso se enquadra no esquema de um filme desconjuntado e muito dependente da presença dos atores (em especial Matheus Nachtergaele e Marcélia Cartaxo), que precisam dar conta de algo que o quadro não consegue.

Essa limitação – ou talvez dificuldade de o filme se soltar do compromisso em dar credibilidade ao arco dramático de Xico – reverbera diretamente nas cenas quando isoladas do todo, com funções bastante evidentes de causa e consequência, mas sem expressão para além do informacional ou do tour de force do elenco (Nachtergaele em dois papéis bastante distintos, Jards Macalé como presença de luxo). A poesia (ou “poesia”, com aspas mesmo) entra a fórceps, como a gritar que o tema do filme é a poesia, e que se aceite que seja assim. Movimentos de grua dão exuberância esvaziada de sentido que não seja o exibicionismo. O uso da câmera alta, a tal “marca” evidente do Assis-autor, é a piscadela de um cinema autoconsciente de si mesmo e seguro de transitar em terreno que aparentemente conhece e domina. Big Jato é tudo, menos um filme da segurança. É muito mais da repetição infinda de relações dadas (o lema “Let it lie” dito à exaustão é o principal sintoma de que se gasta em excesso aquilo que se poderia economizar em força), de se querer a relação com o personagem e seu entorno como algo natural e esperado, assim como a decisão de ele sair da cidade e rumar para o mar (de novo, o mar).

O caminhão limpa-fossas que serve de mote a Big Jato é significativo à natureza do próprio filme: um objeto anacrônico a circular por um espaço parado no tempo, indo e vindo pelos mesmos ambientes, atendendo a quem lhe chama e limpando os excrementos que vêm de dentro do ser humano, a sujeira que não pode ser nomeada e que universaliza todos os viventes, o resto do que não foi aproveitado pelo organismo. O filme se limpa ao máximo (e tenta “limpar” o cinema de Cláudio Assis no processo) e, na busca do asséptico, não se impregna de mais nada. Acovarda-se de encarar a sujeira de fato, preferindo o bem-estar da redenção e do acerto de contas, rumo à libertação que é apenas de fachada, porque o filme assim a quis.

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