Pouco Mais de um Mês, de André Novais (Brasil, 2013)

maio 16, 2013 em Cinema brasileiro, Em Pauta, Juliano Gomes

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Janela discreta
por Juliano Gomes

“Acendo a luz no quarto escuro; é um fato que o quarto iluminado já não é o quarto escuro, que perdi para sempre. E no entanto: não será ainda o mesmo quarto? Não será o quarto escuro o único conteúdo do quarto iluminado? Aquilo que não posso ter, aquilo que, ao mesmo tempo, recua até o infinito e me empurra para diante, não é mais que uma representação da linguagem, o escuro pressupõe a luz; mas se renuncio a captar esse pressuposto, se volto a atenção para própria luz, se a recebo –  então aquilo que a luz me dá é o mesmo quarto, o escuro não hipotético. O único conteúdo da revelação é aquilo que é fechado em si, o que é velado –  a luz é apenas a chegada do escuro a si próprio”.

Agamben, “Ideia da Luz”, in “A Ideia de Prosa”

Se o crítico é aquele que navega por entre as camadas das obras, buscando linhas que demarquem relações entre seus substratos, entre seus níveis, as obras que mais “dificultam” esta arqueologia são  aquelas cuja opção é pelo modo direto de colocar seus elementos. A sensação que se tem com Pouco Mais de um Mês, curta de André Novais, é a de uma experiência que se basta com o que está na tela, com o que nos é apresentado. O que havia a mostrar nos foi dado a ver: um casal, uma manhã, uma casa, uma despedida, pronto. A narrativa segue cristalina apresentando os problemas e os colocando em sequência sem sobressaltos: um casal recente, uma construção paulatina de intimidade que desemboca numa espécie de primeira “discussão de relacionamento”. Porém, há uma espécie de “a mais”, de suplemento, que povoa esta concretude, aberta pela imagem do reflexo no teto do quarto e que se infiltra na encenação até tomar a estrutura do filme em seu segmento final. É justamente este embate entre uma força direta e uma indireta que interessa aqui.

Primeiro, a ficção, a instauração de uma imagem arbitrária. No caso: um casal deitado sob cobertores na penumbra, na quase escuridão, no quarto, sob o som de suas vozes. É uma imagem que não se dá a ver facilmente, pois não há rostos, nem mesmo corpos, num primeiro momento. Ele se levanta, após alguns minutos em que só ouvimos a conversa que julgamos vir da imagem que vemos, quase imóvel. Ele se veste, uma leve sombra, ou uma leve luz, se projeta na parede, e ouvimos seu pedido para abrir a cortina da janela. A casa é dela.

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O tom, a forma na qual o filme se encadeia, já se pré-desenha aí, nessa sequência de poses tornada muito fluida, principalmente pela fala contínua e suave, que parece muitas vezes uma fala “sem conteúdo”, no sentido de uma enunciação quando não há nada a dizer. Esta talvez seja uma síntese justa de “Pouco mais de um mês”: quando não há nada a mostrar, mostremos alguma coisa (o papel da fala é essencial nessa direção). Porém este vazio, esta lacuna de preenchimento, de assunto, vai se construindo como um ambiente onde urge uma construção sólida (de relação, amorosa ou não, de continuidade espacial, temporal). No fundo, há um deslocamento de horizonte, pois se não há nada, há tudo a dizer, há um novo mundo a dizer, mas esse mundo parece pedir calma na colocação de suas peças, e revisão – o papel dela é central aqui -, caso haja desconfiança nos decursos. Calma não como sinônima de lentidão, pois, num certo nível, aqui o tempo sempre avança e os elementos se concatenam numa velocidade tenaz e subterrânea; há sempre algo embalando: um gesto, uma mudança de luz, de espaço. Os quadros são fixos justamente para melhor compor os movimentos, para multiplicá-los em diferentes velocidades e direções. Mas sim, pode-se dizer que o ato inicial da cena do quarto é também um pedido de “menos”: apagar as luzes, fechar as cortinas, para ver. Zerar para compor. É preciso escuridão

É notável extrema cautela na apresentação de cada elemento. A gradação, a fluidez das passagens (não só de um plano a outro, mas mesmo de nível, de articulação de linhas internas) é a ferramenta mestra com que se preservam este tom direto das composições e variações (sons da cena, corpos no espaço, mudanças de luz) e a eficiência do “salto” que o filme promove para dentro e fora de si em seu terço final – a comédia romântica e também um discurso genealógico sobre a possibilidade de uma imagem, sobre como fazer para que as coisas sejam vistas verdadeiramente, sentidas enfim. André, o visitante, quer ver, quer saber. Há algo ali que não parece estar certo, no lugar, que fere a cadeia de ligações harmônicas. Élida parece não querer comunicar, oferece resistência, não transparece seu interior. A revisão, que dispara o filme e marca o personagem masculino, encarnado pelo próprio cineasta, funciona no sentido de busca desse ponto onde o ruído se instaurou. Para ele, diante da dificuldade, foi necessário ver mais um filme, esperando a hora de descobrir o que queria, buscando o lugar de instaurar a relação, de encenar o desejo. Mas se tudo começou bem, se a comunicação se deu, algo desandou.

Essas duas narrativas – a do casal e a da aparição, desse “haver imagens“ – vão convergindo até se tornarem uma só ao fim. Se, num primeiro momento, o casal e nós paramos para ver a situação ótica da câmara escura, daí, todo o dado de aparição se contamina dessa carga de duplicidade. Não no sentido do falso, dos simulacros; pelo contrário: da multiplicação das vias e acessos. Do feixe primitivo de luz aos mobiliários de publicidade, há uma espécie de fagulha comum, de duplicação, de projeção, de inscrição mútua que precisa de decifração e pede, necessariamente atenção. A partir de abertura dessa caixa de Pandora (no momento em que o filme assume para si o enquadramento da câmera escura, fundindo-se), da possibilidade da escuridão que permite a imagem, Pouco Mais de um Mês se torna esse discurso sobre sua própria possibilidade de existência como imagem, se sustentando ao equilibrar-se entre a linha do enredo – dessa falta comunicativa, que ao avançar se ratifica, mas não se detém – e a linha desta forma de fenomenologia.

pouco mais. casal

O trajeto se sintetiza justamente quando o enredo se torna esse discurso sobre a possibilidade da luz, a comédia romântica se dá nesse casamento das imagens puras, soltas, do segmento final, nem presente, nem passado, nem futuro, on ou off, uma espécie de grande fusão ou suspensão que converge no instante cume da construção dessa profundidade absolutamente superficial: “rolou?”, ele diz, e entram os créditos. Antes disso, uma longa imagem da cortina entreaberta, o contracampo do número inicial, a origem da penumbra, a condição de iluminação, esse limiar, que permite o salto e preserva sua discrição, que desemboca num fade out imperceptível. Somos conduzidos ao nada, à voz pura (que se tangencia na primeira cena, mas necessitava-se realizar o trajeto para poder retornar a ela), essa voz encarnada que é talvez o sangue do filme em sua extrema qualidade melódica na construção de harmonia, ritmo e encadeamento.

pouco mais. camara

André Novais quer saber para onde isso vai e propõe um modo de condução. A fala, contínua, (também uma arma letal em Fantasmas, seu curta de 2010) é o agente disfarçado desta tomada de cena, deste espraiamento, desta criação de um ambiente harmônico e contínuo onde se cria espaço para a arbitrariedade inerente de uma sequência de planos, se aproximando da fala de Beckett mas se afastando dela em seu eventual excesso teórico, conceitual, onde esse pensamento “sobre” se sobrepõe à apresentação da matérias. Este é o espaço aqui, desse tom fino, dessa translucidez enamorada de opacidade, que deseja a escuridão, mas que precisa seduzí-la, e o faz dançando, marcando ritmos, crescendos, e contrapontos. Essa duplicidade da construção, essa força do par, do estrato legível, luminoso, e dos buracos negros, e a proposição singela e grandiosa de sua reversibilidade, parece apontar e destroçar antigas falsas encruzilhadas em cujas ruínas líamos “poesia”. Desse terreno novamente baldio, tudo pode recomeçar.

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