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O coração na boca do mar

Uma jovem professora de pintura posa para suas alunas. “Primeiro, o contorno. A silhueta. Não muito rápido. Tomem tempo para me olhar”, diz ela. Em dado momento, inquieta, ela percebe a presença de um quadro no fundo da sala. “Quem trouxe isso até aqui?”. Uma aluna assume a responsabilidade, e pergunta: “Foi você quem pintou?”. A professora responde: “Sim. Há muito tempo.” “Qual o título?” “Retrato de uma jovem em chamas.” A câmera se aproxima da pintura com ímpeto. O vulto perfilado de uma mulher se distingue, pequeno em meio ao fundo obscuro: uma praia à noite, a lua cheia que desponta das nuvens gordas, a silhueta quase imperceptível de um rochedo. A barra do longo vestido da mulher está em chamas.

Eis o preâmbulo de Retrato de uma jovem em chamas (2019), escrito e dirigido pela francesa Céline Sciamma, e vencedor do prêmio de melhor roteiro e da Palma Queer em Cannes. Trata-se do quarto longa-metragem dirigido pela cineasta francesa de 41 anos, uma das fundadoras do Coletivo 50/50, movimento que defende a representatividade feminina no cinema. As questões de gênero pontuaram sua carreira como diretora desde Tomboy (2011), filme que acompanha os impasses de um garoto transgênero de dez anos. Em Garotas (Bande de filles, 2014), Sciamma passa a atentar para a questão da emancipação feminina, em narrativa sobre Marieme, jovem negra que vive na periferia de Paris e cujo processo de subjetivação é marcado por sua adesão a uma gangue de garotas. O César de 2020 rendeu ao novo filme de Sciamma apenas o prêmio de melhor fotografia, e laureou Roman Polanski como melhor diretor, o que gerou revolta por parte de diversas mulheres presentes na premiação — Adèle Haenel, estrela de Retrato de uma jovem em chamas, foi uma das tantas profissionais que deixaram a cerimônia como protesto.

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Uma jovem é levada numa pequena embarcação conduzida a remo por cinco homens, dos quais só vemos as costas. Trata-se de Marianne (Noémie Merlant), a mesma pintora da primeira cena, que está a caminho do casarão no litoral da Bretanha onde a maior parte do filme se passará. Estamos em meados do século XVIII e, como saberemos em seguida, Marianne fora contratada pela mãe de Héloïse (Adèle Haenel), uma jovem fidalga francesa, para pintar seu retrato. Héloïse está prometida a um fidalgo milanês, que só levará o casamento adiante se o retrato da jovem lhe agradar. Essa premissa anuncia um dos temas que perpassam a narrativa: a arte como forma de produção, por parte das mulheres, de uma independência corpórea e empírica com relação ao gosto e o crivo masculino.

O mar está revolto, e a caixa que guarda as telas de Marianne cai na água. Sem hesitar, a pintora tira o casaco e se lança no mar para resgatá-la. A passagem não revela apenas a familiaridade de Marianne com o mar — signo de maior importância na narrativa — mas também sua inclinação a encarar os perigos que o oceano e suas revoltas anunciam.

Marianne desembarca sozinha numa praia cravada de rochedos sinuosos. A paisagem remete às telas de temas litorâneos que Gustave Courbet pintou na Normandia e Bretanha no século XIX — e aqui estamos justamente na Bretanha, mais precisamente em Saint-Pierre-Quiberon, província que serviu de locação para o filme e cujo litoral é desenhado por escarpas e rochas ornamentais.

Carregando sua bagagem no lusco-fusco, Marianne escala as pedras que conduzem ao casarão, onde vai deparar com a empresa que estabelece o fio condutor da narrativa: a pintura do retrato de Héloïse, que chegará no dia seguinte de um convento. A jovem criada Sophie (Luàna Bajrami) que cuida da mansão alerta Marianne sobre o desafio da tarefa ao contar que um outro pintor esteve ali para pintar Héloïse, e não conseguiu. Já em seu quarto, na penumbra, Marianne descobre uma tela: o retrato de uma mulher cuja cabeça fora deliberadamente borrada, uma cabeça-mancha.

No primeiro encontro de Marianne e a mãe de Héloïse, a senhora esclarece a ela que o último pintor nunca chegou a ver o rosto de sua filha, que se recusara a posar para o retrato, já que reluta em se submeter ao casamento com o milanês. O plano, então, é que Marianne retrate Héloïse em segredo. “Ela pensa que você é uma companhia para caminhadas. Não pôde sair de casa desde que chegou”

Na manhã seguinte, a criada avisa que Héloïse está pronta para seu primeiro passeio. Fora de casa, Marianne segue no encalço da jovem, de quem só vemos as costas cobertas por uma capa azul com capuz. Desgovernada, Héloïse corre em direção ao mar, e se detém apenas quando chega ao limite de uma falésia. De súbito, ofegante, ela se vira para Marianne. “Há muito tempo que eu sonhava com isso.” “Morrer?”, pergunta a pintora. “Correr”, responde Héloïse. Nesse momento se insinua pela primeira vez a questão da liberdade, tangenciada tanto pela sombra da morte como pelo signo do oceano — cujo universo mobiliza, como pontua o historiador Alain Corbin em seu livro Território do vazio: a praia e o imaginário ocidental, tanto imagens e afetos associados ao caráter indomável do desejo, como às noções de desgraça e sacrilégio, além de ser frequente “a associação entre o mar e a loucura”. Aqui é importante lembrar que Héloïse carrega o espectro da irmã morta — sua antecessora no projeto matrimonial arranjado pela mãe, e de quem se sabe muito pouco, exceto que tenha optado, ao que tudo indica, pelo suicídio, quando lançou-se ao mar desde um rochedo. Cabe a Héloïse, portanto, arcar ou não com o vácuo social deixado pela irmã.

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Assim, a princípio, Marianne elabora a pintura nos fins de dia, a partir do repertório de imagens que consegue reunir depois de cada dia passado ao lado de Héloïse: as veias sutis da mão, a pele de um branco quase inapreensível em suas variações pelas poucas partes do corpo que eram permitidas às mulheres deixar à mostra. Os membros do corpo, aliás, estão sempre sob o risco da obliteração, como já anunciara a pintura com a cabeça borrada. Em sua segunda caminhada à beira-mar, Marianne e Héloïse se protegem da ventania com echarpes que deixam seus rostos parcialmente encobertos: como beduínos, seus lábios e narizes estão protegidos sob o tecido escuro. Os olhos, no entanto, estão à mostra, e um plano em que seus rostos estão perfilados, revelando-se e sobrepondo-se repetidamente diante do mar irascível, marca uma primeira sugestão não só de emparelhamento, mas de continuidade entre as duas mulheres e seus corpos. Em dado momento, Héloïse encara a câmera, convocando-nos e perfurando o ilusionismo ficcional. O filme, afinal, abordará a questão do atravessamento visual — num jogo de alternância de pontos de vista —, além de pôr em evidência as formas de mediação entre arte e experiência.

A questão do olhar, tão exaurida pelo pensamento em torno da arte e da representação, é tratada aqui de forma revigorante, que abarca os coeficientes do movimento, do foco narrativo, da memória e um questionamento sobre aquilo que é ou não possível deter, fixar nas retinas diante da continuidade da experiência. E é nas tentativas a princípio frustradas de retrato (e em alguns outros planos que remetem à problemática dessa representação) que o apagamento corpóreo se manifesta de forma mais simbólica: a cabeça feminina é borrada, apagada ou deliberadamente excluída do enquadramento. Imagem do intelecto e da individualização, mas também terreno onde o olhar se manifesta, a cabeça da mulher é constantemente configurada em situação de antagonismo.

O interesse pela fruição estética e intelectual — e a possibilidade dessa fruição no universo feminino — também pontua a narrativa. Depois de seu primeiro passeio, Héloïse pede um livro emprestado a Marianne. Mais adiante, as duas conversam sobre a experiência de Héloïse no convento, onde “se pode cantar e ouvir música.” Ainda mais à frente, numa cena que retomaremos aqui, Héloïse diz nunca ter ido a um concerto, e Marianne toca um velho cravo para que ela ouça uma música menos “soturna” do que aquelas ligadas ao universo religioso.

Praticado eventualmente pelas três personagens — a pintora, a fidalga e a criada — o bordado tem um papel emblemático na história da arte: atividade tida, a partir do século XVII, como exclusivamente feminina e muitas vezes rebaixada ao status de recreação, foi um importante índice da posição liminar da mulher no campo das artes. A costura e o bordado, ainda que corroborassem para a construção de uma ideia estereotipada de feminilidade, transcendiam classes sociais e garantiam a possibilidade de expressão autônoma e de manutenção de alguma linhagem artística feminina, ainda que a princípio no âmbito doméstico. No cerne do impasse entre a arte e o artesanato, o bordado confinou, mas também formou gerações de mulheres, que pouco a pouco passaram a reivindicar um papel ativo na produção iconográfica e artística. Em um de seus passeios à beira-mar, Héloïse percorre os dedos pelas linhas de um bordado azul deixado inacabado pela irmã. Em seguida, há um diálogo sobre a herança, sobre o destino que sua irmã morta lhe transmitiu.

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Aos rumores do mar se contrapõem as imagens do fogo. Em todas as cenas noturnas de claustro incide a luz amarelada de uma vela ou lareira. O vácuo produzido pela falta de trilha sonora não é fortuito: os sons que vibram ao fundo das cenas são aqueles que provêm dos elementos naturais: o crepitar das chamas, a madeira que estala na lareira ou sob os passos de quem pisa o chão, o marulho das ondas, o vento. Estamos numa atmosfera que aguça as tensões entre natureza e cultura: a elaboração de uma obra de arte, fio condutor da narrativa, será atravessada pelo campo dos sentidos e dos afetos — tanto aqueles associados à observação que o retrato exige, como aqueles que invadem os seres sem pedir licença. A dinâmica hesitante que pontua a relação de Marianne e Héloïse parece mimetizar o movimento das marés: as mulheres avançam e recuam, seus olhos se procuram e então desviam. Os sentidos e os elementos naturais se animam mutuamente, e os signos da água e do fogo a um só passo acompanham, instigam e traduzem os afetos insurgentes. Um incêndio se anuncia; ou uma tempestade, como na peça que Marianne toca ao cravo para Héloïse.

A jovem Marianne segue em sua tentativa de produzir a pintura de Héloïse. Usa o vestido verde com que a fidalga deve ser retratada, como se procurasse mimetizar o corpo da outra, provocar em si uma imagem dela. Em outro momento, é a criada quem o veste, posando para Marianne, num anúncio da triangulação de relações que se estabelecerá entre as três jovens, que pouco a pouco se tornam cúmplices de uma experiência que é tanto estética como existencial.

Quando Marianne tem o retrato por acabado, pede à mãe de Héloïse que sua filha seja a primeira a vê-lo. Pede o fim do segredo, reivindicando a tentativa de alguma fidelidade, já que as duas, em seus passeios, vieram ensaiando uma aproximação e um mútuo interesse uma pela outra. A senhora consente. É então que uma das cenas mais emblemáticas do filme se desenrola. Na penumbra, à luz de uma vela, Marianne contempla a pintura, de muito perto. Corre a chama pela tela, por cada detalhe. Quando a chama se aproxima do seio esquerdo de Héloïse — de uma imagem de Héloïse que chegou à tela apenas por efeito dos restos do dia — Marianne, num gesto ambíguo, em que o ímpeto se confunde com a deliberação — deixa que o fogo toque a tela: o peito esquerdo, o coração de Héloïse, está em chamas, e Marianne o observa com os olhos da vingança (pois pouco depois, quando a câmera se afasta, descobrimos que trata-se da pintura produzida pelo pintor que a antecedeu, aquela em que a cabeça fora borrada).

O elemento do fogo surge, assim, como signo da paixão latente e do risco que ela implica, mas também de algo que é dificilmente configurável — as chamas não repousam, afinal. E destroem, ameaçam, mas também renovam e refundam a possibilidade da vida como experiência radical.

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No dia seguinte, novamente na praia, Marianne confessa a Héloïse o motivo de sua estadia — é pintora, veio com o objetivo de retratá-la. A reação de Héloïse é tão lacônica quanto simbólica: “então é hoje que vou entrar no mar”. Anteriormente, a jovem havia confessado a Marianne que não sabia se sabia nadar. Agora, numa atitude vigorosa, a jovem se levanta, tira o vestido e, usando só a combinação branca, entra na água. O gesto de Héloïse antecipa o mergulho destemido que a experiência amorosa interdita exigirá das duas. Segundo Alain Corbin, o imaginário ocidental em torno do oceano compreendia um senso de perigo e drasticidade: “Querer penetrar os mistérios do oceano é resvalar no sacrilégio”.

Quando Marianne revela o retrato a Héloïse, a reação da jovem é de questionamento. “É assim que você me vê?”. Marianne procura se defender recorrendo a formalismos que orientam a arte da pintura. “Existem regras, convenções.” Héloïse, manifestando novamente sua disposição ao território da experiência, desafia a pintora: “Você quer dizer que não há vida? Não há presença?”. Mais tarde, Marianne repete o gesto do pintor do primeiro retrato, e borra o rosto de Héloïse, tomada pela raiva.

É a partir desse momento, tendo o segredo sido desvelado, que se estabelece um movimento de adesão e confluência entre a produção artística e a experiência, que passam a se mobilizar mutuamente: a pintura engendra a vida, a vida anima a pintura, e as questões do olhar, da correspondência e do ponto de vista passam a ocupar o primeiro plano da narrativa.

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Héloïse pede à mãe, que se enfureceu com a destruição do retrato, que deixe Marianne ficar por mais alguns dias. “Eu vou posar para ela”, diz a jovem. A mãe anuncia que partirá em viagem por cinco dias, e que, quando voltar, a pintura deverá estar pronta.

Depois de devidamente posicionada por Marianne, Héloïse se mantém estática diante da pintora. Elas se entreolham, e Marianne expõe a dificuldade em estampar o sorriso de Héloïse. A partir daí, se entabula um diálogo que põe em xeque a noção de objetividade associada à ideia de representação. Marianne começa a descrever aquilo que aprendeu de cor sobre os gestos e feições de Héloïse: “Quando você está irritada, não pisca.” A jovem responde: “Você sabe de tudo”, numa espécie de ironia do papel do artista observador, aquele que é capaz de produzir uma imagem fiel ou totalizante do mundo. “Me desculpe”, diz Marianne, “eu detestaria estar no teu lugar.” Héloïse, numa guinada discursiva, responde: “Nós estamos no mesmo lugar. Exatamente no mesmo lugar.” É então que um movimento paradigmático se desenrola. Héloïse convoca Marianne, chamando-a para perto de si, para o lugar do objeto artístico. Seus braços se tocam, seus peitos estão arfantes. “Olhe”, diz Héloïse, indicando a posição inicial da pintora. A cena investe numa dupla tensão: por um lado, coloca em xeque a questão do distanciamento entre sujeito e objeto, convocando o caráter intercambiável de tais posições. (Quem é — agora que pintora e modelo estão lado a lado, agora que o posto da artista está esvaziado — a presa, o alvo do olhar?) O posto daquele que detém, a princípio, a autoridade do fazer artístico, está esvaziado. Há um abalo na noção de sujeito e objeto da obra. “Se você olha para mim, para quem eu olho?”, diz Héloïse. Aqui, a jovem trata a questão do olhar sob o prisma da transversalidade, e não mais da objetividade, acenando até mesmo para algum perspectivismo, em que os olhares se transformam e mobilizam mutuamente, implodindo as noções hierarquizantes de sujeito e objeto. Numa inversão da máxima semiológica de Saussure, o perspectivismo compreende que ponto de vista cria sujeito — e não objeto. Deleuze, em sua definição de perspectivismo, vai além: “será sujeito aquele que aceder ao ponto de vista”. Assim, o processo de subjetivação se associa a um senso de contágio: torna-se sujeito aquele que acede — concede — ao ponto de vista, permite-se ser agenciado por essa categoria cujo cerne é o deslocamento.

A dupla tensão da cena se dá pelo fato do enamoramento estar profundamente implicado nessa concepção de olhar. Héloïse passa, nesse momento, a descrever os gestos distintivos de Marianne. Nas imbricações entre o olhar, a memória e o afeto, aprendemos o outro de cor (pelo coração, by heart, pelo coração em chamas) — esse outro que aqui não é mais sujeito nem objeto da paixão, mas sim corpo fértil de atravessamentos. A cena, acima de tudo, revela — dá à vista — o desejo pulsante e mútuo das duas: o desejo, promessa de embate e fricção entre dois corpos; o desejo, esse dispêndio, essa chance de perigo anunciada desde o início pela recorrência do fogo. O “seu lugar”, portanto, não é apenas o lugar do objeto da pintura, mas sim o lugar perigoso do sujeito desejante, ocupado aqui por ambas as mulheres; um beijo se insinua, mas segue latente.

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Na ausência da mãe, as três jovens — Héloïse, Sophie e Marianne — estreitam seus laços e estabelecem um cotidiano compartilhado. A gravidez indesejada de Sophie faz com que a amizade entre elas se estreite. Aqui a questão da autonomia da mulher com relação ao destino de seu próprio corpo se coloca de forma emblemática. Sophie não deseja ser mãe, e os motivos dessa decisão não são em nenhum momento questionados. Assim, as três colocam em prática as estratégias de que dispõem para dar fim à gravidez. De dia, à beira-mar, fazem com que Sophie corra de Marianne a Héloïse e de Héloïse a Marianne, até cair de exaustão. O ritual abortivo, testemunhado pelas ondas, parece desafiar o senso de fecundidade associado ao mar, essa zona embrionária da vida terrestre.

Numa das cenas mais plásticas do filme, as jovens procuram ervas abortivas num campo de mato alto: se agacham e levantam alternadamente, desaparecendo e aparecendo como numa coreografia de alternâncias e equivalências imperfeitas. À noite preparam o chá, e o fogo da lareira é, aqui, um aliado. Sophie se suspende no teto, num plano em que vemos apenas suas pernas soltas no ar — a cabeça da mulher aparece novamente sob o signo da anulação Ainda que imagem remeta a um enforcamento e que o aborto represente, em certa medida, a cessação de uma vida, é por uma veia afirmativa que o esforço de Sophie e suas amigas deve ser lido. Trata-se de um movimento emancipatório, que pressupõe não apenas a liberdade feminina de se apropriar de seus próprios corpos, mas também de exercer um erotismo que não implica necessariamente a reprodução e a constituição de uma família.

O aborto como medida emancipatória se articula ao tema da autonomia da mulher no campo das artes. Numa das sessões de pintura, Marianne pergunta a Héloïse se ela também pinta nus. A artista lhe responde que não é permitido às mulheres pintar nus masculinos. “É uma questão de pudor?”, questiona Héloïse. A resposta de Marianne é emblemática: “É sobretudo para evitar que a gente produza a grande arte.” No início do filme, em que Marianne ocupa a posição de professora de pintura, a hegemonia masculina no mundo das artes fica clara: Marianne tem apenas alunas mulheres, o que sugere que seu crivo e ensinamentos só têm valor em meio ao universo feminino. Não foram poucos os casos em que obras produzidas por mulheres foram atribuídas a homens (como é o caso da relação de Marianne e seu pai, pintor célebre que assina obras da filha para submetê-las aos salões de arte).

Em 1877, a pintora e escritora russo-ucraniana Marie Constantine Bashkirtseff descreve, numa entrada de seu diário, a experiência como aluna do ateliê de um pintor. Ele [Julian], “diz que suas alunas são às vezes tão boas quanto seus alunos. Eu poderia ter trabalhado com esses últimos, mas eles fumam; fora isso, não há diferença. Havia diferença quando as mulheres trabalhavam apenas com modelos vestidos; mas a partir do momento em que elas entraram na academia, o homem nu é a mesma coisa.”

A personagem de Marianne está intimamente implicada nessa dinâmica hierárquica que pauta, até hoje, o universo das artes, e aborda o tema da alienação das mulheres com frontalidade. E é justamente numa passagem de alto teor alegórico — uma cena que coordena o fazer artístico a um senso de independência feminina — que Sophie encontra a senhora que será, finalmente, responsável pela realização do aborto. Marianne, Héloïse e Sophie se juntam a um grupo de mulheres reunidas à noite em volta de uma grande fogueira. Crianças, velhas, jovens, todas aparentemente de origem pobre. Como numa cerimônia espontânea e festiva, as mulheres começam a entoar um canto. Suas vozes se somam à medida que cada uma delas integra pouco a pouco a cantoria, compondo uma harmonia vocal e rítmica enquanto se entreolham, sorriem e batem palmas: a cena alude a rituais de fertilidade pagãos e ao universo da ancestralidade feminina. Héloïse e Marianne, cada uma de um lado da fogueira, se encaram com olhares inflamados pela emoção. Entre elas, as fagulhas ascendem. Héloïse dá alguns passos à esquerda e podemos ver que a barra de seu vestido está em chamas. A jovem permanece impassível, com os olhos fixos em Marianne, e é socorrida por duas mulheres que se apressam em abafar o fogo. Marianne corre até ela, e lhe dá a mão.

Numa espécie de enjambement visual e sonoro, uma vez que há corte sintático com continuidade semântica, a cena da fogueira deságua na próxima. O corte, ainda que constitua uma disjunção, assume aqui um papel de encadeamento, e incorpora o caráter de corrente das mãos dadas: as mãos dadas do socorro de Marianne a Héloïse se transpõem, e são agora as mãos que se amparam mutuamente enquanto as duas se equilibram sobre os rochedos à beira-mar. Para além das mãos, o canto pagão também se espraia de uma cena pra outra, estabelecendo uma ponte formal entre os dois momentos: a paixão latente, que antes encontrava analogia no calor do fogo, encontra agora, prestes a consumar-se, a dureza do caminho de pedras. Estão novamente com os rostos cobertos por echarpes. Na praia, a câmera, que assume o ponto de vista de Marianne, revela aos poucos a fenda de uma rocha, onde Héloïse a espera. As duas se encaram, aproximam seus rostos, retiram as echarpes que lhes tapavam a boca e se beijam pela primeira vez. Diante do rompimento do interdito, Héloïse sai correndo.

O primeiro beijo acontece numa concavidade da paisagem, uma fissura da pedra, uma fissura que remete inevitavelmente ao sexo da mulher. Ainda em seu livro acerca do imaginário marítimo, Corbin lembra que o historiador Keith Thomas descreveu as elevações rochosas como signos do horror e da volúpia, constituindo, assim como o oceano, as “partes pudendas da natureza.”

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A menção aos homens é sempre objetiva e não muito frequente. Há o pretendente milanês; há os barqueiros que conduzem Marianne à terra firme. A figura paterna é aludida, mas não se avulta. Trata-se, aqui, de um ambiente em que as hierarquias se afrouxam e a presença masculina não parece jamais fazer falta. Mas é numa cena noturna, em que as três jovens leem em voz alta o mito de Orfeu e Eurídice, que a figura masculina é colocada em pauta. O final do mito é objeto de revolta por parte de Sophie, que não entende por que Orfeu, seguindo a trilha íngreme que os conduziria de volta ao mundo dos vivos, olhou para trás, para Eurídice, fazendo com que ela retornasse ao Hades. A tese de Héloïse é da ordem do páthos: “Ele está loucamente apaixonado. Não resistiu.” Marianne, por sua vez, explica o mito a partir de uma noção associada ao campo do éthos: “Talvez ele tenha feito uma escolha. Escolhe a memória dela. Ele não faz a escolha do amante, mas a do poeta.”

Assim, a figura masculina de Orfeu é associada por Marianne ao papel do artista emancipado, aquele que, por virtude, é capaz de abdicar da experiência amorosa e dos prazeres da carne em prol da criação de uma obra. A trajetória de nossas personagens, no entanto, propõe uma saída alternativa a essa bifurcação: o evento amoroso se confunde com a experiência estética, numa espécie de plexus, em que arte e vida se enredam e como que refundam os sujeitos nele envolvidos. O filósofo francês Alain Badiou, em seu ensaio “Para uma nova teoria do sujeito”, defende que o processo de subjetivação estaria ligado a uma atitude de fidelidade a um evento — nesse caso, o evento da paixão amorosa. Os sujeitos se fundam uma vez que se colocam como suporte dessa fidelidade, “logo, o suporte de um processo de verdade.” (Há, portanto, uma dimensão ética na maneira com que Marianne e Héloïse conduzem seu encontro e criam — dão forma — a ele. Desse encontro não surgirá apenas o retrato final de Héloïse, mas também duas mulheres cuja formação se deu a partir desse acontecimento. É crucial a fala de Héloïse em dado momento do filme: “Todos os amantes sentem que estão inventando alguma coisa?”

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É também pela via da invenção que o aborto retorna ao centro da narrativa. Depois de executado — na casa da senhora que Sophie encontrara junto à fogueira —, as três jovens retornam ao casarão. À noite, reunidas num quarto enquanto a criada repousa, Héloïse decide: “nós vamos pintar.” Ela prepara o cenário. Marianne separa seu material. Sophie se deita no chão, abre as pernas, e Héloïse faz as vezes de quem executará o procedimento. O aborto é reencenado, recriado, enquanto Marianne registra a cena, que carrega um forte senso de ambiguidade, pois assemelha-se igualmente a um parto, numa construção formal que aponta duplamente para o campo da invenção: a invenção coletiva de um trabalho de arte, a invenção de uma vida.

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A dor, no entanto, é inevitável. Por mais que as amantes tentem fazer o tempo que têm juntas “durar mais”, o retorno da mãe de Héloïse se aproxima. Depois de uma briga, Marianne corre na praia à procura de Héloïse. O que ela vê, quando a encontra, é uma imagem exemplarmente pictórica: Héloïse, usando o vestido verde com que fora retratada, está de costas diante de uma série de rochas à beira-mar. As ondas azuis explodem ao fundo, e o oceano, aqui, já se anuncia não apenas como metáfora dos arroubos da paixão, mas também como palco das agruras da despedida.

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O retrato é finalizado com Héloïse ao lado de Marianne. As últimas pinceladas se dão diante do olhar compartilhado das amantes, que já sabem que sua experiência estético-amorosa está prestes a ser interrompida. Há, no entanto, uma espécie de pacto pela preservação da memória desse encontro. O mito de Orfeu, cujas implicações permeiam toda a segunda metade do filme — a exemplo das visões fantasmagóricas que Marianne tem de Héloïse, que vez ou outra surge vestida de branco em meio à escuridão noturna — também incide na despedida: prestes a atravessar a porta para ir embora, Marianne é surpreendida pela voz de Héloïse, que a seguiu até ali. “Vire-se”, diz Héloïse., cujo ponto de vista orienta a cena. Marianne se volta para ela com os olhos marejados. O ponto de vista se desloca para a pintora, e vemos, por um instante, Héloïse vestida de branco. A porta se fecha atrás de Marianne, a cena escurece num estrondo.

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A forma com que a narrativa se aferra, a partir de certo ponto, ao mito de Orfeu e Eurídice, é um índice da acentuada afinidade do filme de Sciamma com a literatura — e, mais precisamente, com o campo da poesia. Retrato de uma jovem em chamas é carregado de imagens metafóricas: o coração em brasa, uma pintura com a cabeça borrada, uma mulher que se joga no mar revolto para salvar suas telas, uma grávida que pende como enforcada e outra jovem que diz que não sabe se sabe nadar. Confrontados por esses enunciados portadores de sentidos muitas vezes conflitantes, somos forçosamente impelidos a fazer associações, expostos ao choque, obrigados a desarticular o conhecimento e, sobretudo, a reconhecer-nos como sujeitos de uma fruição implicada. Em seu célebre livro O arco e a lira, Octavio Paz nos lembra que, para o imaginário poético, “a imagem recria o ser”. O poder da metáfora reside no fato de que ela, por sua condição de denotação de segunda ordem, produz um desvio: na imagem metafórica, o sentido literal ou o referente se tornam, de alguma forma, ruína, e dão lugar a sentidos renovados, num movimento que privilegia o campo da invenção. A escolha de um discurso permeado (e até mesmo saturado) de imagens emblemáticas e metafóricas indica um comprometimento, por parte da diretora, em articular vigorosamente o tema e a forma da narrativa: para tratar da criação artística e amorosa, Sciamma nos oferece uma miríade de imagens de cunho metafórico, figura de linguagem que aponta justamente para o campo da invenção de sentidos novos (ainda que muitas vezes ambíguos ou equívocos) e a suspensão daquilo que reconhecemos como vulgar ou meramente referencial. As imagens metafóricas, emblemáticas ou alegóricas são fruto de uma linguagem que se dobra sobre si mesma, numa espécie de sacrifício do referente, ou do mundo em si, e aí reside seu caráter de tensão e recriação.

O jogo de alternâncias de pontos de vista, profundamente atrelado à natureza da dinâmica amorosa, também coloca em evidência o fato de estarmos diante de um objeto de invenção: a noção de objetividade é posta em xeque pelas oscilações de perspectiva, ou aquilo que Adorno denominou variação da distância estética. Temos, portanto, de enfrentar a dissolução de um ponto de vista unívoco ou confiável — e, assim, a questionar também nossa posição de observador ou de observadora.

A importância que os elementos naturais adquirem no filme, ainda que por vezes de forma subliminar, também nos conduz ao universo literário: as substâncias que compõem o universo natural sempre foram fonte privilegiada na construção de imagens poéticas. O mistério de sua geração, seu caráter ao mesmo passo complementar e irreconciliável e a sua qualidade amórfica fazem do fogo, da água (e dos oceanos) e das pedras signos constantes nos enunciados poéticos, que não procuram reproduzir ou representar o real, mas sim apresentam — dão à vista — imagens que ultrapassam a própria linguagem, que acionam sentidos inapreensíveis, um algo a mais.

Assim, é crucial ter em conta a densidade que o fogo e o mar, elementos constantes no filme, carregam enquanto signos imagéticos. Se os oceanos são vestígios diluvianos, todo fogo é lembrança da promessa do incêndio universal que permeia o imaginário de tantas culturas. Do mesmo modo, tanto o fogo como o oceano guardam sentidos de renovação e regeneração, ainda que pela via da purgação. Abismal, misterioso e caótico, o oceano também remete à fertilidade e ao feminino; o fogo — associado exaustivamente ao calor vital — é, por outro lado, imagem da destruição e da conflagração final. Essa ambiguidade constitutiva dos elementos nos faz deparar com a natureza violenta do evento passional, e sobretudo do encontro interdito de Héloïse e Marianne: conjugando potência e vulnerabilidade, desejo e pavor, capacidade criativa e promessa de finitude, a paixão carrega também a intransigência das pedras — é “dura e inflexível como o inferno.”, como escreveu Santa Teresa D’Avila. E é no caminho das pedras que limitam a costa que o encontro dos corpos se cumpre num beijo, o primeiro.

Existe um senso de ecologia na dinâmica estabelecida entre as três jovens que habitam a mansão em seu momento mais vivaz: Sophie, Marianne e Héloïse, cada uma de origem e ímpetos distintos, inventam uma convivência dialógica e fértil — na ausência do sexo oposto, na impossibilidade e negação da reprodução, as jovens se apropriam do espaço e de seus afetos, dividindo leituras, afazeres e rituais: fundam uma espécie de nova civilidade, alternativa àquela que, no mundo ocidental, foi historicamente dominada pelo homem, desde a pólis grega. A passagem em que as jovens se unem ao grupo de camponesas em seu canto pagão à luz da fogueira é, nesse sentido, exemplar. Como assinala a escritora Anne Carson em seu ensaio O gênero do som: “[na Antiguidade clássica] as cerimônias femininas em que os gritos rituais podiam ser ouvidos em geral não eram permitidas dentro dos limites da cidade, e sim relegadas a áreas periféricas como as montanhas, a praia ou os telhados das casas, locais onde as mulheres podiam se divertir sem contaminar os ouvidos ou o espaço cívico dos homens.”

E é apenas no espaço desse novo convívio que o encontro entre Marianne e Héloïse, ainda que limitado em sua duração pelos imperativos sociais da época, pode se realizar de forma potente: arte e vida se interpermeiam, corpos e pontos de vista se alternam e mobilizam na produção de sujeitos de uma verdade: “captura em teu ser aquilo que te tomou e te arrebatou” — escreveu Alain Badiou. Seguir na toada de um evento de ruptura, “fora-da-lei”, eis o processo de fidelidade a uma verdade, e eis aquilo que inaugura um sujeito ético, capaz de agarrar ou fixar aquilo que há de inevitável nos acontecimentos que excedem sua estabilidade prévia.

Trata-se de uma aderência àquilo que chamei de vida como experiência radical. Como nos versos de T. S. Eliot — “E toda ação/ É um passo rumo ao cepo, ao fogo, à garganta do mar/ Ou a uma pedra ilegível” — o itinerário de Marianne e Heloïse, sempre articulado a uma natureza implacável, diz respeito àquilo que não permite recuo. Uma tempestade de verão se aproxima, o coração está na boca, o mar está em fúria, e não sabemos se sabemos nadar — mas nadamos.


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